O Lobo Negro Brasileira

Autor(a): Kannon


Volume 1

Capítulo 1: A Ruína

O mundo está mais selvagem do que antes, ou é o que dizem. Suponho que deve existir alguma verdade nisso, considerando os eventos passados. Faço parte da selvageria desde que posso me lembrar de alguma coisa, e ela já se tornou parte de mim a muito tempo.

Estão dizendo que é culpa da guerra. Durante anos as pessoas passam fome até o estado de loucura e praticam atos terríveis para sobreviver, sem a chance de voltar a ser o que eram antes. Mesmo que essa afirmação seja verdadeira, não há nada que se possa ser feito em resposta. Guerras estão sempre acontecendo, em todos os cantos do mundo.

Há vinte e sete anos o mundo entrou em caos com o início da primeira grande guerra, onde o número de órfãos e desabrigados alcançou recordes jamais imaginados antes. E hoje em dia encontramos outro motivo para matarmos uns aos outros, na chamada “guerra do inverno”.

Na primeira ocasião, houve um herói desconhecido que encerrou a primeira grande guerra. No entanto, homens de honra como ele parecem não existir mais.

Ou é o que dizem.

.…

Faz frio na cidade de Kingsback, localizada na fronteira do atual tensionado continente humano com o continente inimigo. As escuras ruas não emitem sinal algum de movimento, provavelmente pelo anoitecer que se mostrava a todo esplendor. No entanto, não quer dizer que não há nada de interessante acontecendo na cidade.

A velha taverna está cheia como o habitual. Pessoas eufóricas exibindo suas melhores risadas, virando várias canecas cheias de cerveja de uma vez e conversando sobre as aventuras heróicas e mágicas que tiveram enquanto se aconchegaram naquele balcão de madeira que rangia com frequência. Ouvi alguns aventureiros jurarem que testemunharam um dragão elemental antigo que derrubava vilarejos inteiros com seus rugidos, soldados comentavam sobre as batalhas travadas entre humanos e elfos por conta da guerra que estava acontecendo e os bardos exibiam seus melhores poemas sobre a famosa queda dos rubros — uma espécie que se assemelha quase que completamente aos humanos, se ignorarmos os chifres e olhos vermelhos. — e de seu rei Ahrknir na primeira grande guerra.

Em geral, é um bom lugar para se divertir, mas eu estava interessado em outra coisa: Tesouros.

Como já se pode deduzir, as tavernas contam sobre todo tipo de história, principalmente sobre túmulos e templos escondidos no solo ou cavernas que escondem o ouro de um pirata famoso. Estava apoiado sobre o balcão e ouvi a conversa de dois homens à minha esquerda, as vozes lentas e emboladas pelo álcool.

— Eu juro para você, eram runas élficas! Perto da fronteira entre os continentes. Não consegui chegar muito perto, mas tenho certeza do que vi e pode ser que tenha um monumento élfico lá perto! — O primeiro homem disse, com as bochechas rosadas de tanto beber.

— Besteira, homem. Esses lugares não são abandonados, até pensar em invadir é suicidio. Além disso, você não deve ter visto nada e só estava bêbado demais no turno de vigia do exército, só isso. — O segundo disse, ajeitando sem sucesso as roupas esfarrapadas.

Me aproximei lentamente dos dois, jogando uma brilhante e prateada moeda na bancada.

— Cavalheiros, gostariam de me contar mais sobre isso? — perguntei com um sorriso.

O território humano se localiza no continente Ancathen, e a única forma de passar da fronteira e adentrar o território dos elfos é pela “ponte das lágrimas”, um estreito caminho natural que interliga os dois continentes.

Obviamente a estrada é vigiada constantemente, mas passar despercebido não foi nenhum desafio para mim.

Ah, e eu roubei um cavalo dos estábulos também. Era um animal castanho e bem dócil, o que me ajudaria com a discrição e facilitaria a viagem.

Acho que não consigo mudar os velhos hábitos.

Talvez seja o senso comum não acreditar na palavra de um bêbado de taverna, mas eu sei que ele não estava mentindo por conta de seu batimento cardíaco. Quando uma pessoa mente, o batimento tende a se acelerar pela tensão corporal e a respiração fica alterada.

Escutar batimentos não é algo comum, e para conseguir isso preciso me concentrar bastante. Não sei ao certo o porquê sou diferente das outras pessoas, mas não vou reclamar disso enquanto me for conveniente.

Demorou uma semana para chegar ao local indicado. Estava faminto e paranoico, comendo apenas carne seca durante todo esse tempo e torcendo para não me encontrar com nenhum soldado elfo.

O motivo que me leva a fazer tal coisa é bem simples: Monumentos élficos não são habitados há muito tempo, mas os tesouros permanecem como lembrança. Roubar relíquias antigas pode ser bem lucrativo para um ladrão, e também pode me ajudar com a fama para entrar na história.

Apenas imaginar o nome de Erith Dragonir ser comentando em todos os lugares me deixava animado.

Enfim, quando finalmente cheguei no local próximo percebi que não seria tão fácil. Elementos flutuantes no coração da floresta indicavam uma barreira mágica a cem metros na minha frente, salpicadas pela cor verde. Descendo do cavalo e estalando a língua, abri minha mochila e peguei um pergaminho velho e esfarelado pelo tempo. Haviam várias runas escritas e moldadas no enrugado papel, que pulsava assim que sentia a barreira mágica por perto.

Pressionei o papel sobre a barreira, que se desfez após um leve tremor. Suspirando aliviado, continuei meu caminho.

Sendo um ladrão de tesouros desde criança, nunca aprendi a ler runas. Sei o que fazer nessas horas por conta da experiência em invadir lugares protegidos com magia.

É bem mais lucrativo do que aprender o alfabeto, então decidi priorizar isso. Foi bem difícil sinceramente, mas eu peguei o jeito depois de muito tempo.

Claro, eu gostaria de aprender o alfabeto convencional humano também se tiver tempo, mas eu sempre preciso de mais dinheiro.

Enfim, continuando:

Assim que a barreira se desfez, o que entrou em minha visão foi uma grande ruína. O que antes poderia ter sido um maravilhoso e imponente castelo agora só carregava vagas semelhanças com o passado. Paredes escuras e destruídas, destroços de pedras e madeira para todos os lados e o cheiro pútrido da morte pairando sobre o ambiente como uma espécie de espectador. Os cômodos eram iluminados apenas pela luz do céu noturno, deixando claro que aquele lugar cheio de vida não existia mais.

Quando adentrei, senti meu corpo ficar tenso e arrepiado. Túmulos élficos estavam espalhados no chão da ruína, cheios de homenagens póstumas e amuletos espirituais. No centro estava um grande monumento que se destacava, no que julgo homenagear o mais importante falecido daqui.

Era feito de ouro, com grandes ornamentações hexagonais como relevo. As letras, que esbanjaram luz assim que sentiram minha presença no lugar, criaram uma espécie de voz grave e baixa que me trouxe certa ansiedade. O conteúdo da frase era algo que não consegui compreender, então deduzi que era a linguagem élfica.

A voz continuou por um tempo, grave e firme. Acredito ser uma espécie de declaração para homenagear os mortos, uma última despedida. Assim que a voz cessou completamente, me concentrei em meu objetivo inicial e observei o ambiente com atenção.

Haviam pontos brilhantes e dourados nas lápides, fazendo meu coração acelerar rapidamente. Apenas duas lápides incrustadas em ouro e diamante me fariam um homem rico, o suficiente para viver em pleno luxo por anos.

Quase suspirando de emoção, retirei da minha mochila um velho e acinzentado anel de espaço oculto que eu costumo usar para armazenar tesouros. Assim que preparei todas as contramedidas e pensei que havia tirado a sorte grande esbocei um sorriso, até ouvir um barulho atrás de mim. Antes que pudesse me virar completamente, uma espada se aproximava da minha posição.

Defendi implacavelmente, o som de aço sendo arranhado foi transmitido por toda a ruína. Depois de uma troca de golpes, consegui ver meu inimigo após recuar forçadamente e quase cair.

Cabelos negros e despenteados que faziam um contraste à sua pele branca, roupas negras
com sobretudo e uma bainha de espada vazia, mas o diferencial era outra coisa. Seus olhos eram vermelhos carmesim, e grandes chifres estavam erguidos orgulhosamente
em sua cabeça, o que significava um rubro.

— Mas que saco. Saio por cinco minutos e alguém já quer invadir a ruína, a princesa não vai gostar de saber disso. — O rubro respondeu, com uma cara de aborrecimento.

— Acreditaria em mim se eu dissesse que me perdi e errei o caminho para chegar aqui?— Falei com uma voz descontraída.

—É sério? Se esse é o caso, pode ir embora. A saída é na terceira porta à esquerda. — Ele disse, com uma voz ainda mais sarcástica.

Avancei com uma finta rápida, executando três golpes consecutivos. Ele bloqueou todos com uma certa facilidade, o que demonstra sua experiência. Com a troca consecutiva, nos movemos em torno da ruína, andando para frente e para trás enquanto lutamos.

Só preciso de mais dez trocas de golpes.

Canalizei mana em minha espada, que começou a brilhar com uma leve luz azul. Imediatamente, continuei nossa dança com ainda mais vigor. As espadas que se chocavam soltavam faíscas pela velocidade e força, mas ninguém diminuiu o ritmo.

Cinco trocas.

Mais faíscas se soltavam a cada troca de golpes, rodopios e fintas. Ele é claramente mais forte e experiente do que eu, mas ganhar não é meu objetivo nisso tudo.

Quatro trocas.

A cada batida, a luz azul ficava levemente avermelhada e brilhava ainda mais. A pressão que o rubro exalava era forte demais, me fazendo suar profusamente.

Três.

Seus olhos brilharam na escuridão. Ele começou a ficar sério. Seus ataques logo começaram a ficar mais precisos e poderosos.

Duas.

Uma troca.

Assim que a contagem acabou, saltei para trás e suspirei pesadamente de alívio. O som de algo ativando e se movendo era escutado.

— Eu já esperava ter alguém de guarda aqui, afinal é um território bem vigiado. Não me subestime demais, ou pode acabar como os nossos amigos elfos ao redor.

Dei um sorriso torto. Debaixo dos pés do rubro, o piso abaixo dele era uma armadilha preparada antecipadamente por mim assim que cheguei aqui. Com um dos meus pergaminhos, criei uma armadilha de pisar em falso. O corpo do rubro foi imediatamente para baixo, expondo apenas a parte superior de seu corpo.

Seu rosto demonstrava uma reação surpresa, como se não pudesse acreditar que realmente havia baixado a guarda. Decidi que era hora de fazer algumas perguntas, mas primeiro usei meu anel de espaço oculto para recolher as lápides uma por uma, sentindo o olhar de desprezo do rubro em minha nuca.

— Muito bem, vamos começar: O que um rubro faz protegendo uma ruína dos elfos? Seus olhos me fitavam com desgosto.

— Eu sou um prisioneiro obrigado a trabalhar com o reino lycan. Minha missão atual é proteger a ruína histórica e seus tesouros, como prova da aliança entre o reino lycan e o reino élfico. Meu nome é Geralt Strokes, tenho vinte e sete anos, meu tipo sanguíneo é vermelho. Ainda sou virgem, estou me guardando para a pessoa com quem vou casar.

—Ei, ei. Eu te perguntei o motivo de estar aqui, não uma biografia sua. — interrompi sua apresentação, mal conseguindo esconder a voz chocada.

— Oh, me desculpe. Eu só estava ganhando tempo para conseguir me soltar. — Imediatamente depois, minha armadilha explodiu e se desfez. Não tive tempo de reação suficiente para desviar do golpe que recebi logo depois. Um soco, bem dado no estômago que me fez arquear e tremer de dor.

Tudo ao meu redor se distorceu e fui arremessado para trás. Trombei em algo sólido que julgo ser uma parede atrás de mim, que quebrou imediatamente pelo impacto. Sinto meu corpo inteiro doer, e até respirar parecia difícil.

— Eita, acabei quebrando a parede também. — Mesmo confuso, consegui ouvir a voz de Geralt a alguns metros.

O desgraçado me pegou de surpresa, mas também sou culpado por subestimar um rubro. Talvez se eu fosse um pouco mais forte…

— Tenho certeza que usei a pedra de Comunicação para chamar reforços, eu me pergunto quem vai aparecer…

Em meus últimos resquícios de consciência, pensei ter visto uma figura animalesca e demoníaca se aproximando. Sua respiração ofegante e repulsiva se aproximava cada vez mais, e a minha impressão é que ele está faminto.

Depois disso, tudo entrou em trevas.

Eu estava em um lugar totalmente escuro. Meu corpo estava leve e flutuante. Enquanto tentava me acostumar com a nova sensação, observei uma figura que tomava forma à minha frente. Era uma espécie de lobo, negro e de olhos brancos, com dentes afiados e tortos. Ele tentou falar, mas tudo o que saia de sua grande boca eram grunhidos e rosnados.

As sombras que formam seu corpo logo começaram a se transformar em uma figura humana, que para minha surpresa, era uma cópia exata da minha. Cabelos lisos e castanhos com a pele branca, rosto bem formado e sorriso zombeteiro. Mas nem tudo era realmente igual, e as diferenças o tornavam algo sobrenatural.

Os olhos eram totalmente negros com pupilas brancas, o contrario dos meus habituais e claros olhos azuis. Era como um abismo engolindo o último resquício de luz que havia sobrado em seu corpo.

— Assim está melhor. Bom, por onde eu começo? É claro, pela apresentação. É um enorme desprazer te conhecer, eu sou a existência que vai comandar o seu corpo de agora em diante. Bem, é a primeira vez que possuo um humano, então ainda estou meio enferrujado em falar. — Sua voz era idêntica à minha, mas com uma aura de ser séria e sombria.

— Quem é você? Onde é esse lugar? — perguntei.

— Oh, você diz a minha casa? É uma área da sua mente que eu ocupei, concordo que está meio vago, mas é uma casa nova e não tive tempo para arrumar. — Ele disse com um sorriso. — Quanto a quem eu sou, eu já disse. Sou a existência que possuiu você, é tudo que precisa saber sobre mim. Você é Erith Dragonir, tem vinte e um anos de idade. Tem cabelos castanhos e olhos azuis, que você acredita que puxou de sua mãe. Você teve uma perda de memória e não se lembra de nada de seu passado antes dos cinco anos de idade, apenas se lembra de acordar nos becos da capital do reino humano. Sinceramente, isso é tão trágico que parece uma peça de drama.

— Como você pode saber disso?— perguntei com espanto. Minha mente estava uma loucura, com pensamentos a milhão.

— … Acho que você é mais idiota do que parece. Eu estou em sua mente, obviamente sei seus pensamentos e emoções. — assim que ele deu um passo à frente, seu corpo desapareceu. E logo depois apareceu atrás de mim como um fantasma. Sua mão se fechou em volta do meu pescoço, e seu toque era frio como o gelo.

— Mas deixando isso de lado, eu estou muito ansioso para sair, então será que poderíamos apressar as coisas?

Era como se minha cabeça estivesse sendo estilhaçada por algo. Minha mente ficou pesada e meus olhos se fecharam lenta e involuntariamente.



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