Volume 1
Capítulo 7: O Bosque e A Menina
Po me fez trabalhar durante o resto do dia. Regando flores, aparando galhos, varrendo folhas… A menor brisa bastava para me fazer perder o equilíbrio. Estava exausto. Meus olhos estavam dispostos a se fechar, meus joelhos a se dobrar e minha cabeça a cair. Somente o orgulho me manteve em pé. Precisava demonstrar a Po que poderia lidar com tudo aquilo sem importar quanto esforço ele exigisse.
Contudo, após a janta, não pude evitar agradecer ao menino por não me fazer levantar da cama à procura de alguma outra planta. Não pude sequer pensar muito a respeito do dia. Narciso, Lars e Po foram engolidos pelo sono.
***
Quando acordei na manhã seguinte meu corpo e minhas roupas estavam como sempre. Como se nada houvesse acontecido no dia anterior. Um par de botas novas me esperava próximo a porta do armazém. O Sol brilhava silencioso sobre o jardim. O café da manhã estava a minha frente. Comi.
Me perguntei se voltaria a ver algum visitante. De repente, era como si passassem a fazer parte da rotina. É difícil ignorar a presença de alguma coisa quando você sabe que ela está lá. Seja próxima aos seus olhos ou não, ela continua lá. E os efeitos que ela pode vir a ter em seu entorno também. Mesmo você não tendo ideia de quais efeitos são esses. Os visitantes pareciam ser parte importante na rotina de Po e se aquele era seu jardim consequentemente também seriam importantes para ele. Por quê?
O menino já parecia ter suficiente com o jardim, então…
Após terminar a refeição, empurrei o carrinho de mão repleto de ferramentas para o leste do jardim. Não tinha visto a criança desda visita de Lars. Não tive oportunidade de fazer mais perguntas. Tudo o que tinha na cabeça eram suposições, perguntas e mais perguntas…
A terra próxima ao caminho de mármore deu passo a pequenas pedras cinzentas. Se não fosse pelo carrinho de mão andaria pelas pedras. Adorava ouvir meus passos rangendo sobre elas. O som normalmente me tranquilizava. Talvez era isso o que precisava naquele momento. Deixar de me preocupar com respostas que Po teria que me dar em algum momento. Me concentrar na jardinagem talvez.
Impossível.
Amélia tinha acordado essa curiosidade em mim e ela não parecia querer voltar a cochilar.
E isso era até bom de certa forma. Normalmente jardinagem era tudo o que ocupava meus pensamentos, junto a Po. Aquelas perguntas pelo menos pareciam engrandecer meu mundo.
As rodas do carrinho rolaram por cima de uma ponte de madeira clara. Um pequeno riacho corria sob a ponte, a água transparente refletindo os raios do Sol. Olhei para o disco brilhante no céu. Lembrei de Lars. De como ele tinha deixado claro não pertencer aquele mundo. Ao meu mundo.
No lugar de onde ele vinha não havia riachos como aquele.
Cheguei a uma bifurcação. Dobrei a direita, seguindo o caminho flanqueado por orquídeas. Suas pétalas roxas lembravam vagamente línguas presas a um caule. Como se a planta estivesse fazendo uma careta para qualquer possível admirador. Mais tarde deveria voltar ali para regá-las.
Então as línguas se transformaram em dedos. Enormes e firmes dedos vegetais se erguiam agora ao meu redor. Os troncos esverdeados eram altos o suficiente para evitar que eu visse o horizonte, mas não tanto como para me impedir ver o céu. Deixei o carrinho a um lado do caminho. Peguei minhas tesouras e uma pequena escada de madeira dobrável. Ouvi o reconfortante som das pedras baixo minhas botas e me internei no bosque de bambu.
Precisava podar as folhas de algumas das plantas mais distantes do caminho, me adentrando cada vez mais na vegetação. O espaço entre cada caule era o suficiente para que eu passasse, justo. Em pouco tempo, uma cortina verde cobriu minha visão. Já não importava para onde olhasse, não conseguiria ver o branco do mármore em nenhum lugar. Se não fosse pela rota que tinha desenhada em minha mente, provavelmente me perderia. Qualquer um se perderia ali.
Enquanto avistei a primeira planta que precisava ser podada, abri a escada e a ajustei próxima a ela. Subi devagar, com cuidado para não cair com a tesoura em uma mão. Uma vez em cima da escada me dispus a cortar as longas folhas que brotavam da ponta do caule. Cada tesourada cortando não só a planta, mas o silêncio do lugar. Os restos recém-podados rodopiavam languidamente como penas antes de deitar sobre o chão, aos pés da escada.
Não demorei a terminar a primeira planta. Desci, aproximei a escada de outro caule e recomecei o processo. Como dedos, o vento acariciou suavemente meus cabelos. Era agradável aquela sensação. Quando a frescor do jardim te envolvia em seus braços era difícil não se sentir bem.
Voltei a pensar em Lars. Em Ansei.
Em como para ele o soprar agradável da brisa era um privilégio.
Tive medo ao pensar que existem mundos como esse; ao pensar que eu poderia ter pertencido a um mundo como esse; ao pensar que existem mundos e não um mundo.
Tinha que perguntar muitas coisas a Po.
Terminei o segundo pé de bambu e repeti o que tinha feito antes. Contudo, tive que parar de cortar logo após a primeira tesourada.
Um grupo de caules balançou a minha frente. Me segurei na escada para não cair. Teria sido uma lufada repentina? Alguns bambus chacoalharam a minha esquerda. O movimento se distanciando, sacudindo uma planta atrás da outra. Desci até a pedras. Alguma coisa não parecia estar bem.
Tentei entrever de onde vinha a força que sacudia aqueles caules, cada vez mais distante. Deixei as ferramentas e me internei ainda mais no bosque. A velocidade com a qual o causante se deslocava entre a vegetação estava aumentando. Comecei a andar mais depressa. O som do rangido de pedras distantes alcançou meus ouvidos. Quem seria? Estava com pressa e…
De repente os ruídos cessaram.
Me inclinei e entrecerrei os olhos para tentar enxergar melhor. Uma pequena sombra escura estava parada a vários caules de distância. Mal conseguia distinguir sua silhueta entre aquelas cortinas esverdeadas, mas…
Então a sombra correu.
E por algum motivo, eu também.
Seria um visitante?
Se era assim parecia estar perdido e confuso. Devia recebê-lo e ajudá-lo antes que se machucasse ou machucasse alguma planta por engano. Devia recebê-lo…
A sombra se jogou contra os caules a sua direita, chacoalhando as folhas no topo das árvores. Fiz a mesma coisa. Contudo ela era muito rápida.
— Olá! — comecei enquanto corria — Ta tudo bem! Meu nome é Solano e só quero ajudar! Deve estar confuso mas…
Parei.
Já não ouvia ou enxergava movimento algum. Era como se o causante tivesse desaparecido completamente, mergulhado em uma saída daquele bosque ainda desconhecida por mim.
Me apoiei sobre meus joelhos, ofegante. Olhei ao redor. Corredores infinitos estendendo-se em todas as direções possíveis. Suspirei. Não seria fácil ajudar alguém que não queria ser ajudado. Levei as mãos à boca.
— Está tudo bem! — expliquei — Não vou machucar você! Não vou! — o estalar de um caule próximo me interrompeu.
Devagar me aproximei.
Outro estalo na mesma planta.
O tronco estava se curvando aos poucos para longe de mim.
— Me nome é Solano — continuei — Qual é o seu nome?
Mais um estalo.
E de repente o bambu se precipitou sobre mim.
O caule chicoteou meu rosto com tamanha força que cai de costas contra o chão, as pedras cravando-se em meu macacão. Cobri meu rosto rapidamente. Minha bochecha pulsava de dor, quente. Então alguém pulou sobre mim, sentando-se em minha barriga. Pequenos punhos atacaram meus braços.
Aquela pessoa não era muito forte, mas estava decidida a me machucar. Mesmo com a cabeça ainda dando voltas pelo golpe agarrei os punhos do atacante. Uma menina da idade de Po estava sentada sobre mim. Vestia roupas tão pretas quanto seu cabelo. Seus olhos eram de um roxo profundo. Tentou livrar os braços de meus dedos mas não conseguiu. Mordeu minha mão.
Gemi de dor.
Estava disposta a arrancar um pedaço de mim.
— Para! — pedi.
Seus dentes afundaram em minha pele. Podia jogá-la para longe, mas não queria que fugisse. Devia fazê-la entender que não era nenhum perigo. A menina arranhou meu rosto.
— Está tudo bem! Está tudo bem!
Ela golpeou minha testa com sua cabeça. E foi ai que a soltei. Podia sentir meu rosto inchar. Ela se incorporou e correu...ou isso tentou fazer.
— Não é assim que brincamos por aqui — disse Po, parado frente a menina. — Não machucamos nossos amigos. E nós somos amigos não é, Molar?
A surpresa paralisou a menina.
Ainda calada, levou as mãos para um estranho colar que levava pendurado em seu pescoço. Um coração de madeira escura, com uma enorme joia roxa cravada no centro.
— Molar não vai devolver — sentenciou ela.
— Hã? E quem disse que eu quero? — reclamou o menino cruzando de braços, o tom de sua fala acentuando a infantilidade de sua voz. De repente, parecia muito menor que instantes atrás.
Desconfiada, Molar olhou para mim e depois para o bosque no qual estávamos. Procurando qualquer tipo de ameaça. Não disse nada até conferir cada caule ao seu redor:
— O que você quer?
Po estendeu uma mão e inclinou a cabeça sobre um ombro. Seus olhos pareciam ter dificuldade de encarar a menina. Por primeira vez não sorria. Em lugar disso tinha as bochechas ruborizadas.
Pegou ar antes de responder:
— Brincar.