Volume 1
Capítulo 6: Sangue e Mármore
Lars não escondeu sua desconfiança. Franziu a testa, torcendo a cicatriz que lhe atravessava o rosto.
— Me disse que não era um mago — apontou o homem.
— Achava que quisesse respostas — rebateu Po.
Uma delicada brisa soprou do jardim. Me perguntei como o mundo podia continuar tão impassível e belo perante alguém frente uma decisão tão cruel. As cores vibrantes que se estendiam em todas as direções não pareciam ter perdido o brilho de antes de Lars contar sua história.
Com os dedos trêmulos, o homem retirou a flor do vaso. Tão amarela quanto instantes atrás. Lembrei de nossa pequena conversa na beira do lago, de como cada pétala da planta tinha me imitado a perfeição. Minha aparência, minha voz, minhas obrigações... Estaria prestes a ver dois guerreiros idênticos a minha frente?
— O que devo fazer? — perguntou o homem.
Po se limitou a levar o dedo baixo o olho. Dei um passo à frente. Queria ver bem o que estava por acontecer. Já Lars parecia começar a duvidar. Então a flor se retorceu entre os dedos do guerreiro.
Surpreso, ele a deixou cair próxima a espada. O pequeno caule esverdeado se contorcia sobre o mármore, como uma pequena serpente. Como garras, as pétalas se cerraram antes da planta rodar a um lado. Podia ver o pequeno broto rodando de um lado a outro, esbarrando nas colunas que sustentavam a cúpula. Suas pétalas aumentavam de tamanho a cada instante, engolindo o caule que antes coroavam.
Pude ver a expressão de Po divertindo-se com nossas reações. Aquilo devia ser rotina para o menino.
Então o som de tecido rasgando-se preencheu o espaço. Farrapos amarelados pairavam no ar. E, frente a nós, uma criança magra de feições carcomidas pela fome estava parada. Uma franja prateada cobria sua testa e vestia apenas uma desgastada saia marrom. Costelas afiadas se desenhavam em seu torso, dispostas a cortar sua pele para sair de seu cativeiro. Quase tinha a altura de Po, sendo maior por alguns dedos.
Quem era aquele menino?
Procurei ao redor por pedaços da planta. Os farrapos que a poucos instantes pairavam no ar, tinham dado origem a poças de água no mármore. Já não havia rastro nenhum da flor no local. Aquela criança parada frente a nós era o narciso.
Porém, por que não parecia com Lars?
Antes que pudesse perguntar qualquer coisa a Po o menino deu um passo a frente. Seu corpo parecia pequeno demais ao lado de Lars. Como se bastasse uma rajada de vento para jogá-lo ao chão. Aquela criança precisava de ajuda.
Porém, o homem frente a ela não parecia pensar assim. Pânico enrijecia seu rosto. O narciso fechou e abriu os dedos das mãos algumas vezes. Estava tão surpreso quanto o guerreiro.
— Então é isso — murmurou a flor.
— Como você...? — perguntou o homem a Po, sem tirar o olhar do narciso — Como isso me ajuda?
Po deu de ombros. Não responderia tão facilmente.
A flor viu a espada próxima a seus pés. Se agachou e empunhou a arma. Brandiu a lâmina algumas vezes. A empunhadura era tão grossa quanto seu braço. Teve que usar ambas mãos para conseguir levantar a arma, arqueando as costas com dificuldade.
A criança se precipitou em direção a Lars.
Aquilo era absurdo. Ela não teria chance alguma contra o guerreiro. No máximo…
Lars deu um pulo, distanciando-se da flor. Suas sandálias agora se apoiavam contra uma das colunas do lugar. Porém, o narciso arremessou a espada. Rapidamente os pés do homem empurraram a coluna sob si, projetando seu corpo através da cúpula. Lars rodopiou no o ar sobre nossas cabeças, pousando atrás de Po.
A lâmina da espada vibrou ao chocar contra a coluna.
— Era isso que você queria dizer com ajudar? — inquiriu o homem.
A criança ainda sentada na cadeira fez uma careta. Era daquela forma como ela queria ajudar?
Um grito ecoou no mármore. A flor tinha recuperado a espada e a brandia em direção de Po. O narciso pulou sobre a mesa antes de levantar a arma para Lars. Ao dono do jardim pouco lhe importou ter uma lâmina próxima a sua cara. Ele sabia que não ia lhe ferir. Não era a ele quem o aço procurava.
Apoiando os pés descalços no encosto da cadeira, a planta arranhou a armadura do homem. Gemeu. Deu uma estocada. Outra. Os dedos do guerreiro envolveram o calcanhar da flor. Puxou. Levantou. Arremessou o menino contra a mesa a sua frente.
O móvel virou. Cacos de vidro espalharam-se sobre o mármore. O vaso onde antes repousava a flor acabava de se estilhaçar. Pontas ameaçadoras cercavam o pequeno corpo da criança atacante. Lars se aproximou do narciso, cauteloso.
Por que tanta cautela? Tinha vantagem sobre o adversário.
A flor mostrou os dentes. Estava ofegante. Se incorporou. Não tinha soltado a arma. Não parecia disposta a fazer isso. Atacar ao homem que encarava era o único que a movia.
Uma pontada de preocupação atravessou meu peito.
— O coiote que mais sobrevive não é aquele com dentes mais afiados, mas aquele que sabe quando não mostrá-los — repetiu Lars para o garoto.
O narciso não respondeu. Se limitou a encarar o homem.
Com os braços tremendo de cansaço o menino andou em direção a Lars. Pude sentir o vidro lamber a sola dos pés da criança. Dedos afiados roçaram seu calcanhar.
— Ele vai se machucar, Po — avisei — Você tem que fazer alguma coisa — pedi, sendo ignorado.
Um pedaço de vidro rangeu contra mármore ao afundar no pé da flor. Estremeci. Ela continuou andando sem demonstrar dor alguma.
Gritou.
Se abalançou contra Lars.
E cortou o polegar do homem.
O dedo rodou pelo mármore, mas sua Majestade não reagiu. Em lugar disso, seus braços envolveram o atacante e…o abraçaram. A planta lutou tentando se libertar. Porém não conseguia mover as extremidades. Aos poucos, o cansaço tomou conta dela. Soltou a lâmina suja de sangue. O líquido escuro escorria da mão de Lars, tingindo de vermelho as costas do menino.
Ninguém disse nada.
A respiração ofegante do narciso era tudo o que se podia ouvir.
Po quebrou o silêncio.
— Já tomou uma decisão.
***
Quando Lars enveredou pelo caminho rumo aos campos de caqui não pude evitar me sentir triste. Nenhuma decisão que tivesse tomado seria fácil. Contudo, o céu fitava seu caminhar silencioso mais azul do que nunca.
A bainha vazia se sacudia em suas costas a cada passo que dava. Não havia feito menção sequer de recolher a espada ou o polegar antes de partir. Envolveu o corte com um pedaço do tecido de sua saia, agradeceu e se despediu.
Sem forças, me joguei ao chão. Minhas roupas estavam quase secas. Mesmo assim cada prenda pesava como se estivesse feita de ferro. Precisava descansar urgentemente.
— O que está fazendo? — perguntou Po inclinando-se sobre mim.
— Descansar? — tentei.
— Quem acha que vai limpar tudo isso? — suspirou.
— Mas não durmo desde…
— Disse que queria ajudar. Isso é ajudar. Sabe onde encontrar os utensílios de limpeza — disse, se distanciando.
Cobri o rosto e esfreguei meus olhos tentando esquecer quão cansado estava. Po nunca tinha deixado claro como ajudaria. Depois de limpar tudo provavelmente esperava que fosse cuidar do jardim. Me teria trabalhando tanto quanto quisesse. Por isso não duvidei em perguntar:
— O que ele decidiu?
— Isso não é da nossa conta — deu de ombros.
— Você não sabe? — estranhei, deitando de barriga.
A criança negou com a cabeça.
— Isso não é importante. O jardim não tem interesse no que os visitantes façam depois. Ele só oferece a fruta, você decide como comer.
— O narciso é a fruta? — questionei, olhando para a enorme poça de água suja de sangue na qual a flor tinha se transformado após o abraço de Lars.
Po suspirou, como se a pergunta tivesse sido tola demais para ser respondida. Ainda assim disse:
— O que é mais importante na hora de tomar uma decisão?
— Eu perguntei antes — protestei — Pensava que o narciso imitava as pessoas. Por que não imitou Lars?
— Imitar? — bufou Po — Solano, foi só isso que você viu?
Tentei lembrar do meu encontro com a flor no lago. Ela estava me imitando não estava? Até sabia que tinha que levá-la até Po. Ela...
— Narciso não imita pessoas ou aparências — começou enquanto se distanciava da cúpula — Ele mostra quem elas são. Sua essência. Narciso é a essência daqueles que o convocam. Não importa o que você mostra ao mundo, mas o que você é. Não há melhor esconderijo para uma criança magoada que um adulto violento.
A imagem do pânico nas feições de Lars voltou à minha memória.
Eu era pequeno e fraco. Um golpe de cauda teria bastado. Nunca mais veria minha família.
O sabor amargo daquelas palavras deslizou por minha língua.
— Agora consegue responder? — inquiriu Po, sendo engolido pela distância — O que é mais importante na hora de tomar uma decisão?
Olhei ao redor. À mesa virada, aos cacos de vidro, ao sangue, à água… Diversas palavras cruzaram minha mente. Lars tinha resolvido tudo abraçando a criança. Lembrei novamente do pânico em seu rosto, do menino em seus braços lutando para se libertar, mas desistindo logo após… Aquilo não tinha sido fácil para nenhum dos dois.
Conciliar ambas partes; lembrar de quem são.
O pequeno tinha cortado o polegar direito do homem. Ele nunca mais seguraria uma espada. Pelo menos não com a destreza do passado. Entender quem de fato eram talvez fosse o primeiro passo para uma boa decisão. De onde vinham, o que tinham vivido e como isso os transformou em uma carcaça de músculos.
Se isso resultaria em mais violência, eu nunca saberia.
Po desapareceu antes que eu pudesse sequer abrir a boca.
Pouco tempo após fui ao armazém a procura de panos e baldes com os quais limpar a cúpula. Passei a manhã inteira contendo a vontade de vomitar enquanto esfregava o sangue. Levantei a mesa, as cadeiras e olhei ao redor.
Andei pelo lugar.
Prescrutei todo o mármore.
Cada curva, cada rachadura...
Procurei inclusive no campo de dentes de leão próximo a cúpula.
Tanto a espada quanto o polegar de Lars haviam sumido.