O Jardim de Po Brasileira

Autor(a): Dramaboy


Volume 1

Capítulo 4: O Guerreiro e O Jardineiro

Escorreguei diversas vezes a caminho do centro do jardim. Tinha decidido abandonar minha única bota nos salgueiros, para não perder mais tempo me calçando. Além do mais, estava ensopado de todas formas. A borracha molhada apenas me faria cair com maior facilidade. Deslizei de bruços pelo mármore mais de uma vez, levantando a flor sobre a cabeça para não esmagá-la. A entregaria em perfeitas condições para Po. Porém, o Sol emergindo no horizonte parecia estar contra mim.

Por que era tão difícil fazer certas coisas?

Decidi então abandonar o caminho de mármore. Por mais curto que fosse, era escorregadio demais para que eu pudesse correr na velocidade que precisava. Entrei no campo de lavandas a minha direita, as pétalas roxas sacudindo-se ao meu redor. Um odor adocicado rodopiou pelo ar. Os dedos de meus pés pareciam abraçar o solo a cada passo. Não cairia. Podia ver o teto abobadado da cúpula flutuar sobre um campo de dentes de leão.

Meu coração estava prestes a sair por minha boca. O braço com o qual sustentava a flor sobre minha cabeça começou a enrijecer. Podia sentir a dor do cansaço martelando um lado de minha barriga. Não tinha certeza de se meu corpo aguentaria correndo até lá. Então meu joelho cedeu. Sustentei a planta em minha mão com força. Definitivamente meu corpo estava deixando claro: “Não, não vou aguentar muito mais.” Peguei ar ofegante, como se estivesse mergulhado até agora no lago.

Por que estava fazendo aquilo? Era tão importante pra mim ganhar a confiança de Po? Ou tinha outra coisa? Me incorporei olhando a paisagem ao redor. Raios de Sol salpicavam as planícies repletas de flores, gotas de luz dourada brilhando baixo o olhar do alvorecer. O jardim era o mundo e o mundo era o jardim… Um mundo sobre o qual eu sabia de muitas coisas. Conhecia cada caule, cada pétala, cada flor, cada cultivo, cada caminho, cada região, mas… nada sobre Po.

Por quê? Por que ele nunca falava nada? Por que ele sequer mencionou os visitantes? Qual o motivo daqueles visitantes? E por que, de repente, saber sobre eles parecia ser tão importante?

As palavras de Amélia retornaram a minha mente. Ela tinha dito que aquele era o jardim do castelo, mas não lembrava ter visto nenhum castelo por ali. Aliás, quando foi a última vez que vi um castelo?

Uma rajada de vento curvou as flores próximas a mim. Não podia perder mais tempo. Enchi meu peito de ar antes de voltar a corrida. A confiança dá as melhores respostas.

Por isso corri até minhas pernas cederem e meus joelhos dobrarem sobre a chão polido da cúpula. A estrutura esbranquiçada deitava sua enorme sombra em mim. Tinha chegado a tempo. Contudo, Po não parecia estar ali.

Respirei com dificuldade. Meu corpo inteiro parecia gritar por ar.

A minha frente, uma elegante mesa de madeira clara era flanqueada por um par de cadeiras. Babados escuros eram ostentados pela delicada toalha que cobria sua superfície. Enfeites florais costuravam-se no tecido, deixando entrever a cor clara da madeira no desenho de pétalas.

Me arrastei até uma coluna a procura de algum apoio. Me incorporei com a ajuda do cotovelo contra o mármore. E então vi: um pequeno vaso de vidro repousava no centro da mesa.

Com cuidado, coloquei o narciso no recipiente. Talvez então Po apareceria. Contudo, coisa nenhuma aconteceu. Dobrei o braço tentando mitigar seu enrijecimento. Doía. Minhas roupas estavam molhadas, meu corpo cansado, meu braço doído...e nada de Po por ali. Bem, a qualquer momento ele apareceria como sempre fazia...

— Onde estou? — Me surpreendeu uma voz grave.

Estava atrás de mim. Tentei olhar por cima do ombro.

— Quieto! — ordenou — Suas mãos, devagar. — Autoridade pulsava naquelas palavras.

— O quê?

— Me mostra tuas mãos!

Com os dedos tremendo, levei ambas mãos à lateral mostrando as palmas para o desconhecido.

— Pode virar. Devagar.

Obedeci. Onde estava Po!? Senti meu corpo encolher ao encarar o dono da voz. Ele tinha quase o dobro do meu tamanho e levantava uma espada de lâmina curva em minha direção. Uma armadura prateada cobria apenas a parte superior de seu torso, deixando seu abdômen musculoso a mostra. Uma saia escura cobria suas pernas, provavelmente tão musculosas quanto o corpo, antes de terminar em cima de um par de sandálias prateadas. Foi difícil olhar para seu rosto. É difícil olhar para o rosto de uma pessoa quando apontam uma arma para você. Você não vê alguém, mas somente uma ameaça.

— Onde estamos!?

— Na cúpula, no centro do jardim…

— Essas não são formas de tratar um convidado Solano — disse outra voz atrás de mim. — Primeiro devemos oferecer um lugar onde este possa ficar confortável.

— Uma criança? — balbuciou o desconhecido.

— Se sua majestade me conceder o honor de sentar... — continuou Po.

— O que está acontecendo? Conheço todos os oásis entre Alçarrah e Kamut, mas nunca tinha visto este.

— Sua majestade, este não é um oásis…

— Você não fala como uma criança deveria falar. É um feitiço?

A lâmina prateada se aproximou de meu pescoço.

— Não. — respondeu Po.

— Não recomendo brincar comigo criatura.

— Criatura?

— Cortei muitas cabeças de magos do deserto como para duvidar decepar agora seu amigo.

O frio do metal espetou-me a pele. Um pouco mais de força e começaria a sangrar.

— Po…

— Acreditava que sua majestade era mais educada. — Me interrompeu o menino. - Sabia que se deixava levar pelo momento mas…

— Responde! — bramou sua majestade. — Ou o rapaz morre.

— Está aqui por que precisa estar aqui, da mesma forma que eu preciso que seja educado... — Uma cadeira gemeu ao ser arrastada pelo chão.

E então, em um movimento rápido, o homem cortou minha cabeça.

Ou isso teria feito se Po não o tivesse detido. Com um toque delicado, porém firme, Po segurava o antebraço do homem a minha frente. Seus olhos avermelhados sorriam a minha esquerda enquanto o menino mantinha imóvel o braço do desconhecido. Os músculos do homem gritavam por se livrar da criança se contraindo sob sua pele, sem sucesso.

— A impulsividade nos faz perder várias oportunidades sua majestade… — anunciou Po. — Você não parece ser o tipo de pessoa que perde oportunidades.

— Sou um guerreiro. — murmurou o outro entre dentes, tentando livrar o braço.

— Exato. O verdadeiro guerreiro sabe quando se retirar. Já o tolo, por outro lado, se atira sem pensar sobre qualquer espada inimiga. — sentenciou o menino em um tom aveludado. Aquele sorriso em seu rosto estava decidido a não se inclinar perante nada, nem ninguém.

E então sua majestade desistiu. O som metálico da espada caindo no mármore ecoou pela cúpula.

— Meu pai dizia algo semelhante. O coiote que mais sobrevive não é aquele com dentes mais afiados, mas aquele que sabe quando não mostrá-los. — declamou.

— Aquele que sabe aproveitar uma boa conversa — completou o menino, soltando o braço do atacante. — Solano, puxa a cadeira para nosso visitante.

Não pude evitar continuar imóvel. O que tinha acabado de acontecer? Meu pescoço ainda lembrava da lâmina agora jogada no chão.

— Solano! — Me repreendeu Po.

Reagi. Com o corpo ainda em estado de alerta puxei a cadeira para o desconhecido. Segundos atrás ele quase me decepou mas lá estava eu, acomodando-o. Po apontou a coluna a minha direita. Entendi. Diligentemente permaneci em pé, apoiando meu corpo cansado no mármore a minhas costas. Minha barriga gemeu mas nenhum dos dois sentados a mesa parecia se importar. Foi então quando finalmente reparei no rosto do visitante.

Feições angulosas eram circundadas por uma enorme cicatriz rosada. O corte teria sido feito de seu queixo até a sobrancelha esquerda. Por pouco não perdera um de seus olhos amarelos. A luz do Sol do jardim refletia contra sua cabeça careca, inclinada em direção a Po. Pude entrever uma bainha de couro alaranjado ser espremida entre suas costas e a madeira da cadeira enquanto ele tentava encaixar seu enorme corpo no assento.

— Sua majestade parece ser alguém razoável. — Apontou Po — Impulsivo mas razoável. Por que temos a sorte de contar com sua presença?

O homem coçou a cabeça.

— Ainda não entendi o que está acontecendo… — confessou. — Então você é mesmo um mago?

A criança cruzou as pernas e apoiou os cotovelos na mesa.

— Isso importa?

— Gosto de conhecer com quem converso.

— Po. Meu nome é Po. E você…

— Lars Vermelho. Governante das terras ao este de Alfriz. — respondeu em tom solene. — Mas você já sabia disso.

Po deu de ombros. Depois olhou em minha direção.

— Solano. Só.

— Peço perdão garoto.

Não quis responder. Para ele aquilo talvez não fosse nada demais, mas para mim…

— Meu ajudante está acostumado. — suspirou o menino.

Tive que lutar contra minhas feições para não fazer uma careta.

— Tudo bem. — Quase engasguei.

— Onde estamos? Achava ter visto um oásis enquanto cavalgava para o sul...

— No meu jardim. — explicou Po — Este é meu jardim. E você está aqui porque precisa. Estava indo ao sul a procura de alguma coisa, não é verdade?

Confusão tingiu o amarelo nos olhos do homem. Devagar, ele acenou.

— Então, vossa majestade Lars Vermelho, Governante das terras ao este de Alfriz… O quê você precisa?

Senti minha pele eriçar e sabia que ele, Lars, também tinha sentido aquilo. Sabia que aquelas palavras tinham penetrado em seus ossos. O homem permaneceu em silêncio. Cada músculo em seu corpo a procura de uma resposta adequada, a altura da pergunta de Po.

Ele somente abriu a boca após pensar durante um bom tempo.

— Uma decisão.



Comentários