Volume 1
Capítulo 3: A Lagoa e O Narciso
O jardim era o mundo e o mundo era o jardim. Este e oeste, norte e sul eram engolidos por planícies repletas de plantas. Diferentes tamanhos, formas e cores se estendiam até onde alcançava a vista. E isso era suficiente; parecia ser suficiente. A final de contas, não havia nada mais ali. Caminhos de mármore cobriam como veias a paisagem vegetal, deitando sua cor esbranquiçada sobre cada região do jardim, cuidadosamente planificados para permitir o acesso a todas as áreas. Por algum motivo, mesmo sem ter explorado ainda toda a imensidão do lugar, tinha certeza de tal afirmação. Assim como sabia que qualquer planta que pudesse imaginar estava crescendo em alguma parte daquele solo.
O caminho sob meus pés brilhava entre a vegetação, fruto da luz do luar contra a superfície de mármore polido. Isso bastava para que visse o mundo ao redor. Um manto de luz azulada cobria a flora. Camélias avermelhadas, delfínios roxos e alamandas amareladas escorriam a ambos lados do caminho.
Devia me apressar.
***
Já fazia bastante tempo que andava quando finalmente cheguei aos salgueiros. Tranças de folhagem esverdeada pendiam dos galhos, projetando sombras sobre os troncos das árvores. Um muro de escuridão se erigia entre as plantas. Contudo, sabia que aquele era o caminho que devia seguir, mesmo sem o brilho do mármore para me guiar, sabia onde devia pisar.
A escuridão engoliu o mundo ao meu redor. Um cheiro amadeirado pairava no ar. Fazia mais frio que alguns instantes atrás. Uma umidade viscosa grudava em minha pele. Somente o sussurro de algum eventual cipó contra meu corpo quebrava com o silêncio do lugar. Escorreguei. Tive que me apoiar em um tronco para evitar cair e senti uma fina camada de limo entre meus dedos ao me incorporar. Limpei a mão no macacão. Mesmo tendo clara a rota que devia seguir, tinha que ser cuidadoso. Por esse motivo, decidi tatear a escuridão a procura de qualquer obstáculo. Primeiro as mãos e somente depois os pés.
Em pouco tempo, pude ver algo brilhar a distância. Uma forma oval flutuava a minha frente. Seu tamanho aumentava a medida que me aproximava, se arredondando a cada passo. Contive a respiração quando percebi que havia chegado.
Uma lagoa de água esverdeada lambia a margem de mármore a meus pés. A segunda lua refletida em suas águas iluminando um emaranhado de salgueiros que a cercavam, cujos galhos se entrelaçavam como dedos. A silhueta da margem oposta era apenas visível, estava longe demais para que os olhos pudessem distingui-la com clareza. Mesmo já sabendo do tamanho da lagoa antes de chegar lá, não pude evitar o suspiro de surpresa. Grandes vitórias-régias flutuavam espalhadas sobre a superfície, suas folhas esverdeadas delimitadas pela cor rosada de seus contornos. Pude contar dezesseis desde minha margem. Todas elas bem espaçadas entre a beirada e um pequeno pedaço de terra no centro do lago. Um salgueiro se retorcia solitário na pequena ilha, curvando seus galhos por cima da água. Lá encontraria a flor que Po queria.
Não duvidei em pular. Tinha que chegar lá o mais rápido possível e sabia que as vitórias-régias aguentariam meu peso. Escolhi a planta mais próxima da margem. Tinha metade do meu tamanho. Engoli saliva me distanciando do lago. Mesmo estando próxima de mim, não seria suficiente com um pulo comum para alcançá-la. Precisava do impulso de uma corrida. Seria difícil correr sem escorregar no mármore. Minhas pisadas deviam ser rápidas e firmes. E assim foram.
Respirei fundo e me precipitei em direção ao lago. Minhas botas gemeram contra o caminho antes de jogar meu corpo por cima da água. Senti meus pés afundarem na planta poucos instantes após. A folha balançou abruptamente, salpicando minhas roupas. Contudo consegui manter o equilíbrio e não cair na água. A planta aguentou meu peso.
Suspirei. Sabia quão profundo era o lago e quão fácil era ficar preso entre as colônias de algas que cresciam nele. Mesmo sabendo nadar, não confiava em me livrar delas sem a ajuda de Po. Não era coincidência que ele se encarregasse daquela região do jardim. Da mesma forma que duvidava que fosse coincidência ele me pedir que procurasse uma flor justamente ali.
Deslizei o olhar a procura do meu próximo apoio. A segunda vitória-régia estava a um pouco menos de distância que a primeira. Mesmo assim, não seria fácil pois não tinha espaço com o qual pegar impulso. O máximo que podia fazer era balançar a planta na qual me encontrava. Minhas pernas tremeram ao tentar me equilibrar sobre a vitória-régia enquanto sacudia a folha na água. Porém, seu caule aquático impedia com que se movesse muito. Pulei. Cai de joelhos na outra, me segurando a borda rosada para não afundar de bruços na água. Me incorporei, sentindo a oscilação sob meu peso. Olhei para trás, à margem de mármore agora distante.
Não demorei muito para pular à terceira, um pouco maior que a anterior. As pontas dos meus pés mergulharam no lago quando impactei de rosto contra a quarta. Foi difícil me reerguer sobre a superfície fibrosa, agora escorregadia. Calculei meu pulo à quinta. E então senti alguma coisa enroscando-se em meu joelho. Um tentáculo áspero e viscoso se aferrava firme a mim. Podia sentir o frio do lago atravessar o tecido e penetrar em minha pele sob a estranha atadura.
Olhei para minha perna. Uma corda escura se projetava da água envolvendo meu joelho. Me agachei para observar melhor aquilo. Pequenos fios esverdeados pendiam da corda, ensopados como ela. Levei minhas mãos à atadura para tentar desatá-la…Aquilo não era uma corda.
Como chicotes diversos tentáculos atravessaram a superfície do lago em minha direção. Meu braço; meu torso; meu pescoço; todos foram presa do ataque vegetal. Meu corpo foi arremessado para o ar antes de mergulhar na imensa lua líquida. Fechei os olhos e segurei a respiração, sentindo bolhas percorrerem minhas bochechas. Quando minhas pálpebras se levantaram novamente, um mundo esverdeado flutuava ao meu redor.
Raízes de vitórias-régias se desenhavam contra o brilho do luar formando uma enorme teia vegetal. Minha presença não tinha sido bem recebida pela flora, disso tinha certeza. Por isso, quando as raízes se precipitaram em minha direção, não duvidei em fugir.
Sabia nadar, mesmo sem nunca ter nadado antes. Espera. Aquela era a primeira vez que nadava?
Caules rosados brandiam suas espinhas, unindo o fundo do lago com o mundo exterior. Nunca detestei tanto aquelas plantas. Uma raiz sibilou a minha esquerda. Nadei na direção oposta enquanto tentava me aproximar a superfície. Precisava ser rápido, mas o peso de minhas roupas molhadas entorpecia meus movimentos. Algo chicoteou minhas costas. Cuspi uma nuvem de bolhas. Não aguentaria muito mais sem ar. E além do mais…Estava cansado. Precisava de algum local onde descansar antes de decidir o que fazer a continuação. Mas os espinhos impediam que me apoiasse nos caules e algas escuras espreitavam do fundo do lago, como línguas famintas, decididas a aprisionar e devorar a todo aquele que ousasse cair em sua folhagem.
Talvez essa fosse a armadilha das vitórias-régias. Me fazer afundar para um final asfixiante. Porém, por que precisavam me cansar? Dei uma braçada à direita para evitar outra chicotada. Outra raiz envolveu minha bota. Me livrei do calçado, decidido a ver o céu noturno. Por que não me arrastam logo para o fundo? Seria muito mais fácil para elas…Uma chicotada atingiu meu pescoço. A planta tentava se aferrar a minha pele. Então a puxei; e foi surpreendentemente fácil. Mais duas cortaram a água a minha frente. Com um gesto rápido as segurei. Tiveram dificuldade em se livrar.
Não eram fortes. Por isso a perseguição. Não tinham força suficiente para me arrastar ao fundo. Pelo menos quatro precisavam se unir para ter uma chance e... Como se uma força maior a detivesse, uma raiz que a poucos instantes se aproximava de mim abandonou a perseguição. O tamanho de suas raízes era limitado pela posição da planta da qual provinham. Não podiam simplesmente flutuar onde quisessem. Se eu nadasse para uma parte do lago distante das demais vitórias-régias conseguiria escapar. Isso fiz, sendo golpeado por algumas raízes frustradas por não conseguirem me imobilizar.
Quando alcancei o mundo exterior peguei tanto ar quanto pude de uma vez. Procurei me encontrar. Estava longe demais da pequena ilha do centro. Além do mais, várias plantas descansavam silenciosas próximas a suas bordas. Cuidadoso, nadei de volta para o mármore.
Um pequeno charco se formou ao meu redor quando finalmente me deitei na margem. Estava ensopado e respirava com dificuldade. Podia sentir meu coração bater com força atrás de minhas costelas. Precisava pegar essa flor tanto quanto precisava de um descanso. Talvez dormir um pouco. No entanto, sabia que não daria tempo. Ainda deitado, encarei o enorme salgueiro do centro do lago. Meu peito subia e descia revelando por instantes a árvore envolta em uma auréola azul.
Decidi explorar as margens. Talvez encontrasse um pedaço de terra onde…Nada. Apenas raízes de salgueiro emergindo do chão, mármore e lodo. Somente vitórias-régias e água se interpunham entre os dois pedaços de terra. Gemi frustrado. Po sabia que não conseguiria cumprir o pedido. Por isso tinha aceitado facilmente.
— As botas — me surpreendeu uma voz, de repente.
Eu conhecia aquela voz. Procurei ao redor. Estava completamente sozinho no mármore. Então…
— As botas — insistiu.
Onde tinha ouvido aquela voz? Água esguichou próxima ao caminho. Olhei para a pequena ilha e senti minha pele eriçar.
Em pé junto ao salgueiro, uma silhueta era esculpida pela luz do luar. Um rapaz de cabelo escuro me fitava. A cor verde de sua jardineira afundava em um par de botas pretas na altura de seus joelhos.
— Suas botas as machucaram. Deveria saber isso melhor que ninguém. — disse o garoto.
Engoli saliva. Minhas pupilas estavam em transe. Aquele…
— Está ficando sem tempo.
Aquelas eram minhas feições, meus trejeitos, minha roupa, minha voz… Eu. Aquele era Eu. Uma cópia tão perfeita, quanto o meu reflexo na água entre nós.
— Não terá problemas se tirar o calçado.
Permaneci imóvel.
— Po não vai gostar do seu atraso.
O nome de Po ecoou como um feitiço em meus ouvidos. Precisava que confiasse em mim. Segui meu conselho e retirei a única bota que calçava. O tato liso do chão sustentando agora ambos pés. Hesitei ao pular à vitória-régia mais próxima. Fiquei parado sobre ela a espera de que raízes surgissem da água para me atacar. Nada. Pulei para a seguinte. Me equilibrei. Pulei novamente. Para a outra. E para a outra. Cruzei o lago por inteiro sem ver sequer uma raiz.
Meus calcanhares afundaram com força no lodo da pequena ilha, quando a alcancei. Me apoiei no salgueiro para não escorregar. E lá estava Eu, sentado baixo alguns cipós contemplando a paisagem. Ou deveria dizer Ele?
— Eu disse que daria certo.
— Obrigado…
Meus olhos escudrinharam cada pedaço de terra a procura da flor. Não demorou para que desistisse. Não havia nada além de lodo lá. Procurei também entre a folhagem do salgueiro, sem sucesso.
— Você — tentei — viu alguma flor?
Meu outro Eu não respondeu.
— Estou precisando muito dela...
— Eu sei.
Silêncio.
— Então…
— Você acha estranho não acha? Tudo isso. O Po, as plantas se movendo... — começou, sem olhar para mim.
— Eu não sei.
— Acha. Talvez o Solano não tanto. Mas você acha — suspirou.
— Eu sou Solano. — disse confuso. — O quê você é?
— Você. Sou você… — Uma sacudida recorreu seu corpo. Sorriu para mim — Sou o Solano e sei que tem muita pressa. Faltam apenas algumas horas para o amanhecer.
— Sabe que não posso ir até…
Você vai reconhecer quando ver, explicou Po.
Por algum motivo tinha dificuldade em desenhar aquela planta em minha cabeça. Sabia que era uma flor de pétalas grandes tingidas de amarelo e branco, sustentadas por um delicado caule esverdeado, mas… faltava alguma coisa.
Me aproximei do outro Solano. Quanto mais o olhava, mais parecia comigo. Água dançava próxima do calcanhar de seus calçados e sobre a superfície líquida vi refletido um belo botão amarelado. A imagem tremeluzia, como se bastasse uma onda mal intencionada para dissolvê-la para sempre.
— Ainda tem alguma dúvida? — Me surpreendeu.
— Tenho.
— Por quê?
Não soube o que responder e ele sabia disso. Estendi a mão.
— Preciso levar você para Po.
Narciso se levantou, seus olhos fixos no meu rosto. Não havia ameaça naquele olhar, tão somente curiosidade. Sorria como se toda a felicidade do mundo lhe pertencesse e não pensasse compartilhá-la com ninguém. Seu hálito adocicado inundava meu nariz. Entrelaçou seus dedos com os meus.
— O tempo está acabando.
E, como o salto de água de uma fonte, Narciso se derramou. O corpo, que antes parecia ser meu, esguichou o chão do lugar dissolvendo-se em lodo. E então percebi. Estava segurando uma flor de pétalas amareladas.