Volume 1

Capítulo 1: A Silhueta

O silêncio era predominante naquela noite na vizinhança, quem saísse do aconchego de casa era recebido por uma névoa fina e congelante que aparecera de repente. Ela recobria os postes, estes que emitiam uma luz fraca e trêmula, fazendo-os parecerem inúteis.

Na rua, um homem de casaco de couro corria mancando, seus cabelos eram grisalhos e seu rosto enrugado. A todo momento lançava um olhar por trás de seus ombros. Quando se aproximou de um dos postes de luz, seu joelho não resistiu e ele foi ao chão, raspando-se na calçada.

Atrás dele, passos foram se tornando audíveis. Lentamente, uma silhueta de uma pessoa foi se formando na névoa, o que fez o homem caído grunhir em desespero. Ele tentava se mover, mas seu corpo não obedecia. Foi condenado a assistir a figura se aproximar lentamente.

O perseguidor então tornou-se visível. Era um homem alto, agradavelmente pálido e de cabelos avermelhados feito lava. Vestia um enorme casaco de pele, jeans pretas e calçava botas fortes.

— Socorro! Alguém por favor me ajude! — repetiu o homem caído pela centésima vez.

— Silêncio — disse o ruivo, formando um vapor quente à frente de sua boca devido ao clima gélido, sem ousar abaixar a cabeça para falar com o homem no chão. — Não adianta.

As mãos da pessoa caída estavam trêmulas e ele as colocava inconscientemente na frente do rosto, como se estivesse se protegendo.

— Valentim, por favor, eu sou... — disse o homem de meia-idade ao ruivo.

A frase do homem foi interrompida por um olhar de extremo desdém de Valentim. O ruivo retirou a mão direita do bolso e a ponta de seu dedo indicador começou a brilhar num tom muito branco.

O homem caído observou o brilho, e não teve escolha senão agir num ato de desespero.

Apodynamono! — gritou o homem, estendendo o braço na direção do ruivo. Como se houvesse um painel invisível à sua frente, desenhou rapidamente com o dedo indicador um círculo negro com dois riscos. Quando finalizado, o símbolo brilhou por um instante, e então voou em alta velocidade na direção de Valentim.

O ruivo continuava com seu olhar de desprezo, dessa vez, fixado no símbolo que vinha em sua direção. Levando a mão à altura do peito, Valentim fez um movimento singular, desenhando no ar uma linha vermelha-vinho de baixo para cima. Quando o círculo se aproximou, o desenho de Valentim brilhou, e o símbolo lançado pelo homem rapidamente trocou de trajetória, inclinando-se aos céus. Em instantes ele desapareceu na névoa.

— Vou perguntar uma última vez. — Valentim recolocou a mão no casaco — Onde está o Medalhão?

O homem grisalho engoliu no seco.

— Se eu te contar... você vai me poupar? — Ele se levantou lentamente, com dificuldade. — Juro que não falarei disso a ninguém!

O olhar de Valentim tornou-se descontraído e soltou um leve sorriso, sentiu-se mergulhado numa onda de satisfação.

— Mas é claro. Usarei um símbolo de esquecimento em você logo depois. Eu lhe disse para não se preocupar.

O homem, que estava meio agachado, ficou de pé hesitantemente. Sua mandíbula castanholava loucamente, mas Valentim não tinha certeza se era pelo medo ou pelo frio.

— No lugar onde as relíquias mais importantes são guardadas — sussurrou o homem.

O vento passou cortando. No primeiro momento, Valentim desacreditou e seu estômago embrulhou. Perguntou-se se tinha ouvido errado, não conseguia acreditar que estaria no local óbvio.

— Porém... não sei exatamente onde — continuou o grisalho. — Os superiores dizem que fica em um lugar específico, escondido, sabe...

— Isso é tudo? — perguntou bruscamente Valentim.

O homem assentiu com a cabeça enquanto mirava o ruivo. Valentim deu passos frios e apontou o dedo para o homem.

— Agora... só apague...

Thanatos — interrompeu Valentim, desenhando um símbolo horripilante. O símbolo adentrou o peito do homem, fazendo-o perder a vida imediatamente.

Apesar de sua fúria, Valentim tinha uma expressão completamente neutra no rosto. Cada dia que passava, ele se decepcionava cada vez mais com o Governo Simbolista.

 

 

O dia passou. Valentim quase se arrependeu de ter matado o homem: fora entupido de trabalho. O Departamento de Assassinatos Mágicos foi acionado pela terceira vez em um único mês. Três homicídios mágicos ocorreram em pouquíssimo tempo, e o pior: todos os falecidos trabalhavam no Governo Simbolista. Valentim agora tinha que agir como detetive no assassinato que ele próprio cometeu.

O ruivo erguia-se de pé na frente da prefeitura da cidade, local onde o Departamento mascarava-se de uma simples sala de tirar xérox. Apenas pessoas que possuem o símbolo específico podem entrar. O ruivo estava apoiado no muro ao lado da construção com um cigarro em sua boca. A calçada estava do jeito de sempre, muito movimentada. Homens e mulheres de terno andavam para lá e para cá. Ao dar uma última tragada no cigarro, Valentim ouviu uma buzina. Ele então jogou o cigarro no chão o a apagou com a sola do sapato. 

Ao entrar no carro, Valentim quase se arrependeu novamente: sentado ao seu lado, no banco de trás, estava Clinton, um oficial magro e estranho ainda em treinamento. Apesar de ter mais de vinte anos — idade mínima para se tornar um recruta —, Clinton parecia ser um adolescente comum, com seus óculos retangulares e a acne infestando seu rosto. Um rápido olhar ao jovem era o suficiente para fazer Valentim sentir ânsias, por isso evitava o contato direto. 

No banco do passageiro sentava-se seu parceiro de longa data, um francês de cabelos acinzentados, sobrancelhas finas e um rosto magro chamado Symon. Ele foi transferido à Alemanha há dez anos e terminou seu treinamento na mesma época que Valentim. A dupla era comumente chamada de “O Pombo e o Fogo”.

O motorista sempre era alguém diferente que apenas estava lá para dirigir, por isso o ruivo nem se deu o trabalho de cumprimentá-lo. Valentim disse olá para Symon e acenou a cabeça com um sorriso forçado a Clinton.

— Para a cena do crime, por favor — disse Symon ao motorista, que imediatamente começou a levá-los ao destino. — Três em vinte e oito dias... falei que os chefes deviam considerar um serial killer desde a segunda morte. Se fosse eu...

— Os superiores finalmente querem que trabalhemos assim? — interrompeu Valentim. — Não fiquei sabendo.

— Pois é. A coisa anda tão corrida que nem te contataram. Eu mesmo só fiquei sabendo por causa de Clinton.

— Atribuíram uma dupla a cada assassinato — disse Clinton, fazendo Valentim virar o rosto para o vidro. — Vocês vão ficar com esse último.

— E quanto a você? — perguntou Symon, virando-se para o banco de trás.

— Ficarei revezando entre as duplas.

Valentim deu graças a Deus mentalmente. Segundos depois, Symon bufou.

— Se vão nos encher de trabalho, pelo menos gostaria de uma promoção... — Ele colocou a mão sobre os olhos, tapando-os, parecendo cansado.

O acinzentado então mexeu nos botões do painel do rádio, colocando uma música de qualidade duvidosa.

— Ah, rá! É isso aí! Sabe quem tá cantando, Valentim? A minha filhinha Juliette! A gravadora tá fazendo ela botar pra quebrar!

— É sempre a mesma coisa. — Valentim jogou as costas no banco.

— Dá um desconto! — sorriu. — Ela despertou esse interesse por canto tão jovem! Sua mãe ficaria orgulhosa se visse que a filha seguiu os passos dela.

Valentim passou o resto da viagem pensando se garotas de dez anos realmente podiam aparecer em rede estadual de uma forma tão humilhante. Cerca de vinte minutos depois, o carro estacionou.

Estavam na rua do ocorrido, Valentim desacreditou que o local poderia ficar tão claro. A névoa tinha sumido, dando uma visão ampla das casas: eram pequenas, porém belas, a grande maioria sendo de madeira. Todas tinham um grande quintal, e se não houvesse um cadáver em uma das calçadas, as crianças certamente estariam se divertindo por lá. Na esquina, viram que uma faixa policial amarela impedia a entrada de jornalistas e pessoas curiosas. Dentro da cena do crime, havia de dez a vinte oficiais.

Symon disse ao motorista para esperar ali e os três detetives deixaram o carro. O tempo estava nublado, pouquíssimos raios de sol batiam na rua. Foram se aproximando, indo no canto da faixa, local onde havia menos pessoas.

— Proibida a entrada de civis, senhores — disse um dos policiais quando os três chegaram próximos à faixa.

— Olá, eh... podemos falar com seu chefe? — perguntou Symon, tentando olhar o que acontecia ali atrás.

— Ele não está aqui no momento.

— Está, sim. — Symon desenhou um estranho símbolo de interrogação cinza no ar, que sumiu pouco depois de finalizado.

O oficial piscou várias vezes e olhou à sua volta, parecia bêbado. Virou-se de costas para o trio e saiu andando lentamente em busca de seu superior. Passados poucos segundos, um homem corpulento foi de encontro ao trio.

— Viemos checar a cena. Detetives Symon, Valentim e Clinton — disse Symon enquanto desenhava o mesmo símbolo antes mesmo que o homem corpulento pudesse dizer uma palavra.

— Ah, claro — disse o homem, gaguejando. — Podem entrar... passem por baixo...

— Com sua licença. — Symon foi o primeiro a passar pela faixa. — Se possível, espalhe a notícia que chegamos. E trabalhamos melhor sozinhos, não deixe ninguém se aproximar.

O oficial não respondeu, apenas virou-se para trás e, um pouco atordoado, foi andando na direção de um grupo de policiais.

— Seus símbolos de manipulações são magníficos, senhor — disse Clinton enquanto passava pela faixa.

— Ah, que isso. Tenho certeza que Valentim se sairia infinitamente melhor que eu.

Valentim concordou mentalmente.

Passando pelos outros oficiais — havia cerca de 10 —, os três chegaram ao corpo. Ele permanecia deitado no chão ao lado do poste. Estava extremamente pálido, sem nenhum ferimento e com os olhos incolores. Além disso, uma escrita estranha estava no muro da casa mais próxima:

Nos veremos em breve.

O estômago de Valentim congelou e seus olhos comprimiram muito. Ele não escrevera aquilo. Uma brincadeira de mal gosto? Ou tinham de fato o encontrado? Não, era impossível. Se fosse o caso, suas mãos já estariam atadas e impossibilitadas de utilizar símbolos.

Uma gota de suor percorreu sua têmpora até o pescoço, a tinta preta estava muito bem fixada à parede, e a escrita era perfeita demais para mãos comuns. Engoliu no seco, com certeza era o efeito de um símbolo. Sentiu-se estranho, não conseguia tirar os olhos da mensagem. Alguém o descobriu, e esse alguém o verá em breve.



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