Volume 1

Capítulo 7: A Criança

Juliette acordou no meio do caminho e ficou quieta o resto da viagem. Acenava a cabeça para qualquer coisa que o pai perguntasse, mas se recusava a falar. Seguindo as instruções de Valentim (e depois de fazer duas curvas erradas), eles chegaram em segurança na casa do ruivo. Depois de uma longa despedida e várias explicações por parte de Symon, Juliette e Valentim entraram. Minutos depois, ela estava sentada na ponta da mesa da sala de jantar. Era a primeira vez de Juliette em sua casa, e pelo fato de não parar de observar as colunas, os móveis e as escadas luxuosas, era a primeira vez que visitava um local de tão grande porte. A sala de jantar era imensa, tinha uma enorme mesa retangular que ocupava a maior parte do centro do local. Os arredores eram repletos de quadros e estantes, estas que haviam talheres, pratos e copos muito finos.

O ruivo preparou um simples mingau de chocolate, e se assustou com a forma que Juliette se portava. Polida e minuciosa. Seus modos eram impecáveis, surpreendentes para alguém de pouca idade. Isso o deixou uma coceira inexplicável na nuca.

Daqui a pouco ia se encontrar com Loreley e Mármore no esconderijo. Era por isso que estava relutante em trazer Juliette. Não queria deixá-la sozinha, caso ela contasse para Symon que ficou só, ele teria um problemão. Mas, ele tinha uma ideia: mimá-la um pouco, quem sabe assim ela não contasse ao pai.

— Escute, eu tenho que dar uma saída urgente — disse Valentim, desencostando da parede. — Até eu voltar, pode fazer o que quiser. A casa é enorme, tem biblioteca, vários quartos livres e até um grande corredor onde você pode brincar.

Juliette alegremente assentiu com a cabeça. Sua bochecha estava manchada de mingau.

Valentim deixou seu casaco — a noite estava quente — e partiu até o quintal. Era, assim como a casa, enorme e bem cuidado. Cheio de plantas, árvores, e muito mais verde. Seu carro ficava estacionado num local com azulejo, longe da vegetação. Foi caminhando tranquilamente, pensando no estranho fato de que nunca ouvira Juliette falar numa conversa. Apenas escutou sua voz em melodia. Era tímida, e das poucas vezes que a viu abrir a boca, ouviu apenas ruídos. 

Finalmente ia dirigir seu carro. Valentim suspirou, abriu a porta do motorista, se sentou e fechou os olhos cansados.

— Hum. Belíssima casa, a sua.

Travou. O ruivo manteve os olhos fechados. A voz feminina veio do banco de trás e soava simples e calma. Era familiar. Tinha certeza de que já ouvira antes, mas não sabia exatamente onde. Inicialmente, não teve coragem de abrir os olhos, até que lentamente levou as mãos aos joelhos e abriu o olhar, encarando diretamente o retrovisor.

A pessoa estava exatamente atrás dele, o retrovisor não a revelava por completo, porém, os longos cabelos louros a entregaram.

— Juliette. — Valentim sentiu um estranho calafrio. — Como chegou aqui tão depressa?

— Pulei a janela e vim correndo enquanto me escondia nas árvores. A porta estava aberta, nem precisei me esforçar. — Jogou os cabelos para trás. — Você estava em outro planeta enquanto andava até aqui.

Não parecia a pequena garotinha de dez anos, era extremamente bizarro. Soava adulta e madura, apesar da voz finíssima. Ela manteve o olhar na janela, observando um pequeno pardal que pousou no tronco da árvore ao lado.

— Eu disse pra você ficar lá. Não posso levá-la onde estou indo.

— Ah, pode sim — disse Juliette, colocando a mão no rosto. — Até porque se o papai ficar sabendo disso, ele não vai ficar nada feliz. Você sabe o quanto ele me ama...

Uma pausa aconteceu. Os olhos de Valentim agora encaravam reto, em nenhum lugar em específico, pois sua mente inundou-se de pensamentos, indo de deduzir o que estava acontecendo até um possível plano caso tivesse que silenciá-la. Por fim, optou pelo básico.

— Quem é você? Não é a Juliette. Um símbolo? 

Ela caiu no banco em gargalhadas, tudo enquanto tinha a mão sobre a barriga, toda situação constrangeu Valentim.

— É claro que sou eu! — disse, se levantando. — Você é esperto, então se eu te mostrar, vai entender.

Num movimento gracioso, Juliette estendeu o braço, apontando para a janela oposta. Num movimento distorcido e deslizante, uma segunda Juliette apareceu, como se tivesse saído da primeira. Ambas formavam uma imagem simétrica, apontando uma à outra. Valentim não pôde fazer nada além de sorrir.

— Uma dúplice. Você, Juliette? Inacreditável. Seu pai sabe disso?

— É claro que não — respondeu a Juliette da direita. — Se soubesse, seria estranho.

— Você deve saber — disse a Juliette da esquerda. — Um dúplice herda grande parte da memória de seu antepassado. No meu caso, recebi a maldição no dia em que a mamãe morreu. Aí foi tudo de uma vez, meu segundo corpo apareceu, herdei as memórias dela, blá, blá blá.

— Pensei que se você herdasse as memórias do seu herdeiro, sua personalidade ia mudar completamente. Como se você tornasse aquela pessoa — disse Valentim.

— Não! Claro que não! — exclamou a Juliette da direita. — Sei muito sobre a mamãe, mas isso não me tornou ela. Já até esqueci bastante coisa. Mas... as vontades e os desejos... é, digamos que foi culpa da maldição.

Valentim estava fascinado. Nunca achou que teria a chance de ver um dúplice em toda sua vida, mas agora havia um no banco de trás. Um dúplice, um humano com dois corpos, e estes compartilham tudo: sentimentos físicos, psicológicos, tudo. Se uma tem fome, a outra também. Se apenas uma se alimenta, a outra não precisa. É uma cópia perfeita.

— Por que você foi amaldiçoada?

— Culpa da mamãe — responderam as duas, e se tornaram novamente uma só.

— Punição divina. Fez algo que não devia. Mexeu com a vontade de algum Deus, demônio, algo do tipo. Essa memória sempre foi embaçada. A maldição de dúplice sempre cai sobre os seus filhos, nunca você. — Juliette suspirou. — Só te contei isso porque eu te devo uma. Afinal, você e meu pai me salvaram. Então, estamos quites.

Valentim desviou o olhar do retrovisor e lembrou que tinha que ir para o esconderijo. Pensou, pensou muito. No fim das contas, ele sabia que não podia correr o risco de se explicar para Symon. 

— Vamos logo! — Juliette deitou no banco com as pernas para cima e apoiou os calcanhares na janela. — Aquele mingau ficou uma beleza. 

Em silêncio, o ruivo deu partida e colocou o cinto. Virando-se para trás para dizer para Juliette fazer o mesmo, ela já estava abanando a cabeça com um belo “não”. Suspirando, saiu dali em direção ao esconderijo.



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