Volume 1

Capítulo 12: O Governo

— Está se aproximando, preste atenção!

Loreley apontou para a grande janela. Ela e o novo aprendiz estavam em um dos andares mais altos da torre do Governo, onde era possível observar metade da cidade dali de cima, mas nenhum dos dois tinham tempo para ficar observando casinhas; o avião chegava cada vez mais perto e se chocaria com a torre em breve.

Era um avião comercial dos grandes, provavelmente um voo internacional. Loreley não tinha certeza, pois nunca tinha viajado em um avião antes, já que morria de medo. Na primeira vez que tentou viajar, desmaiou de preocupação antes mesmo do avião terminar o embarque, e a decisão foi deixá-la para fora, pois estava terrivelmente mal.

O som das turbinas começou a ecoar, fazendo Loreley voltar à realidade. A janela à frente tinha um grande e complicado símbolo desenhado, todo azul-claro. A mulher estava de pé, com o dedo indicador apontando diretamente para o cockpit do avião. Com a mão livre, segurava o antebraço para melhor estabilidade.

Aftomato Stochos Protasi — disse majestosamente. O símbolo na janela brilhouc com intensidade. Dele, um projétil reluzente foi disparado e segundos depois desapareceu de vista.

O avião repentinamente inclinou-se para direita e fez uma mudança na rota. Loreley e o aprendiz observaram o enorme veículo passar à esquerda deles e da torre, e seguiu seu rumo normalmente.

— Temos que fazer isso umas duas ou três vezes ao ano. — Loreley estalou os dedos e se espreguiçou. — É um símbolo de sugestão que faz a tripulação sofrer uma vontade súbita de desviar pela direita. Eles nem sequer se tocam que fizeram isso. É uma combinação de três símbolos, um que faz o projétil ser automaticamente redirecionado para a forma de vida mais próxima, além de nós, claro; o segundo faz o símbolo rebater em todos os tripulantes, para não haver problemas internos. Como a torre é invisível, se chocariam e isso causaria um problemão. 

Loreley virou-se para a saída, um elevador. O local que estavam era uma sala enorme, limpa e lisa. As paredes eram todas janelas, o andar inteiro era só essa sala, que servia de local de observação para a aproximação das aeronaves.

— Seu trabalho é nos avisar caso veja alguma coisa se aproximando. Não se preocupe com as aves, a torre inteira é enfeitiçada com um cheiro terrível que só elas sentem, por isso evitam circular por aqui. Mas, aviões não sentem cheiro. Se o símbolo de alerta falhar, é você que vai correr para nos avisar. Aí alguém habilidoso vem e cuida do problema.

Ela entrou no elevador e a porta se fechou automaticamente.

Loreley assobiou por todo o caminho que o elevador fez e ajeitou seu cabelo no espelho que havia atrás. Sua franja estava quase chegando aos olhos, um dedo e meio? Um só? Sei lá, nunca fica bom — pensou ela, e fez um bico de decepção com os lábios.

O elevador fez um som calmo, avisando que havia chegado ao destino. Sem sequer olhar para frente, Loreley andou e, quando se deu por conta, estava à frente do condomínio Blozheiss.

— Ah, cara! — gritou ela, chutando o muro do condomínio. — Diabos, diabos. De novo.

— Srta. Gantz! — gritou o porteiro do condomínio. — Quarta vez no mês que faz isso. Quando vai aprender?

Calado! — disse, e caminhou raivosamente até a portaria. — E quantas vezes preciso te falar? É sra. Gantz. Sou casada, palerma.

O porteiro gargalhou. Era um homem de cabelos longos e uma barba volumosa, parecia um vocalista de rock. Ele checou alguma coisa dentro da sua cabine com um sorriso no rosto e disse:

— Pronto, srta. Gantz. O portal já está aberto, só passar.

Ela nem se deu o esforço de corrigi-lo. Virou de costas e atravessou o muro do condomínio como se não estivesse ali.

Depois de um sentimento leve de náusea, ela reapareceu na recepção da Torre de Hefesto, a sede do Governo Simbolista.

Não se sabe quando a Torre de Hefesto foi construída. Ninguém sabe a real aparência dela por fora, afinal, ela é completamente invisível para quem não está dentro. Nem o símbolo de quebra mais forte pôde revelá-la. Ao longo dos anos, muitos tentaram estimar a aparência da Torre com base em seu interior, mas todos mostraram-se falhos.

A Torre de Hefesto não possui entrada física. Ela flutua cerca de vinte a trinta metros do solo, exatamente acima do condomínio Blozheiss, onde todos seus moradores são desenhistas, e a maioria trabalha para o Governo. Ninguém teme que um dia ela caia sobre o condomínio, visto que o flutuar dela é tão misterioso quanto a invisibilidade.

A recepção era um lugar estreito, parecido com um corredor. A largura permite duas pessoas ficarem lado a lado e nada mais. De manhã sempre há uma imensa fila dupla para os elevadores, que são o único meio de transporte para os demais locais da Torre.

Apenas Loreley estava ali. Ela murmurou consigo mesma que nunca iria cometer o mesmo erro, ia acabar com o seu costume de sempre descer para a recepção. Enfim, entrou em um dos elevadores e apertou o andar 33, onde ficam as salas de interrogatório.

— Está atrasada — disse uma voz forte, que fez Loreley pular de susto. Ao lado dela no elevador, estava Herman Paz, o líder da Tropa de Proteção e Segurança, seu único superior.

 

— Deus! — exclamou ela. — Não vi você aí, cara. Não me assuste assim. — Pôs a mão um pouco abaixo do pescoço. — Eu já estava a caminho. Acabei… tendo uns imprevistos.

Herman era baixo, mais baixo que Loreley, que não era tão alta. Vestia o mesmo terno de sempre — cinza escuro, quase preto. O formato da mandíbula dele sempre a incomodou, era muito visível. Tinha também um cabelo raso e louro.

— Você sequer sabe o que temos pra hoje? Não deve ter recebido as mensagens.

Loreley cruzou os braços e olhou para o alto. Era óbvio que ela não sabia.

O elevador fez um som suave e as portas metálicas se abriram, dando para um corredor branco cheio de portas cinzas, o local estava um tanto mal iluminado. Ambos começaram a andar.

— Você deve ter ficado sabendo da batalha que houve no teatro da cidade. Saiu em todo santo jornal. A criança que quase foi sequestrada está aqui, e vamos perguntar o que houve lá com os mínimos detalhes.

Atravessaram uma das portas e deu numa sala pequena, quase claustrofóbica. Havia uma mesa e três cadeiras, duas das quais estavam ocupadas. Symon e Juliette.

— Srta! — gritou Symon. — Ainda bem que chegou, tenho uma montanha de coisas para falar!

Loreley atravessou a sala, as paredes eram lisas, bege-claro. Havia uma única lâmpada no teto que emitia uma iluminação fraca e amarelada. A moça de cabelos azuis sentou-se na cadeira de metal livre, colocou as mãos sobre a mesa do mesmo material, e seu olhar perfurou a alma de Symon.

— Sabe — disse ela, apontando o indicador para o anel em sua mão esquerda. — Adoraria que você prestasse atenção antes de me chamar de senhorita.

— Loreley. Seu trabalho aqui é perguntar o que aconteceu. — Herman a repreendeu. Um silêncio aconteceu, e todos ficaram se encarando numa situação constrangedora, porém, foi cortada quando Herman deixou a sala ao fechar a porta com força.

— Desculpe-me. — Loreley tossiu. — Meu nome é Loreley Gantz, vice-líder da tropa de proteção e segurança.

— Symon Thomas. — Ele apontou para a criança ao lado. —  Essa é minha filha e vítima do que aconteceu, Juliette Thomas. Vamos filhinha, diga olá para a tia Gantz.

Juliette sorriu com os lábios. Ao ver que Loreley tinha uma expressão de “olá novamente”, ela abaixou a cabeça.

— Pois bem, pois bem — disse a mulher. — Podem começar do início.

No momento que Symon abriu a boca para falar, uma gritaria explodiu do lado de fora. Som de botas fortes caminhando seguido por tantas palavras que era impossível saber o que estava sendo dito. 

Loreley e Symon estranharam a situação e ficaram fitando a porta enquanto o som se aproximava, quando finalmente ela se abriu com força, as palavras ficaram compreensíveis.

— O que pensa que está fazendo?! — gritou Herman com alguém no corredor. — Não pode simplesmente aparecer aqui fazendo esse tipo de coisa.

A pessoa ignorou os gritos e adentrou a sala. Era Valentim, com Clinton desacordado em seus ombros. O ruivo encarou Loreley, Symon e Juliette antes de jogar o corpo do recruta no chão.

— É ele. Clinton é o sequestrador.

O acinzentado se levantou e Loreley ficou fitando Clinton despreocupadamente, que estava de barriga para baixo no chão. Juliette bateu a mão na testa e abaixou a cabeça pelas costas do pai.

— Valentim?! — Symon ficou trocando olhares entre o ruivo e o recruta. — Como assim?!

— É melhor o sr. Herman entrar, assim explico tudo a vocês.

O líder entrou na sala e fechou a porta. Valentim foi até um canto, se encostou na parede e contou tudo o que descobriu.

Symon socou a mesa de metal. Estava prestes a falar algo, mas ele sabia. Sabia que não tinha o que ser dito, estava tudo bem diante dele. Clinton ouviu que ela teria uma apresentação, envenenou Juliette com alguma substância que a fez dormir e tentou sequestrá-la, mas não contou com a habilidade de Valentim e Symon na hora do feito.

— O senhor confirma os fatos? — Herman questionou Symon.

— Sim.

Valentim nunca viu Symon tão sério. Tinha os olhos fixos no chão, mas pareciam que eles observavam além do piso, como se sua mente estivesse em outro lugar, pensando em outra coisa. O acinzentado, com a testa franzida, olhou para o líder da tropa e repetiu:

— Sim, eu estava presente quando tudo isso aconteceu. — E se sentou novamente.

— Muito bem, vamos primeiro prendê-lo preventivamente para interrogá-lo — disse Herman, agachando ao lado de Clinton desacordado. — Que símbolo jogou nele, sr. Schulze?

Apodynamono. Ele deve acordar daqui trinta ou quarenta minutos. — Valentim jogou as mãos no bolso. — Tive um ataque de raiva e realização na hora. Acabou sendo forte demais.

— Loreley, me ajude a levá-lo — ordenou Herman.

Por um instante, Valentim tinha esquecido que ela estava ali. Tão quieta, parecia pouco se importar com o sequestrador bem à frente. Suspirando, levantou-se para ajudar seu chefe. Apoiando Clinton no ombro de cada um, eles atravessaram a sala.

Ao passar do lado de Valentim, Loreley lançou um olhar fixo a ele, e seus olhos brilharam em azul-claro por um instante. A voz dela começou a soar na cabeça do ruivo.

Duas horas, no banheiro feminino do 213° andar.

De início, Valentim se assustou. Não notou movimento algum por parte de Loreley. Não viu em nenhum instante ela fazer um símbolo. Não é atoa que essa idiota virou vice-líder, pensou ele enquanto os dois saíam da sala, ficando apenas o ruivo, o acinzentado e Juliette.

— Eu já vou indo. Ainda tenho que trabalhar. — Valentim bateu a mão no casaco, limpando a poeira enquanto ia para a saída.

— Valentim — chamou Symon.

O ruivo parou, e voltou sua atenção ao parceiro.

— Muito obrigado, cara. Vamos filha, agradeça o tio Valentim.

Symon se levantou e Juliette foi logo atrás. A criança, polida como nunca, faltando apenas uma auréola flutuar sobre seus cabelos, disse num tom doce:

— Obrigada.

O ruivo, pela primeira vez, ficou em dúvida. Juliette era duas caras e era óbvio quando era sarcástica. Mas agora, observando ela curvada, Valentim sentiu uma estranha confiança emanando dela. Segurou um sorriso, e os olhos dele encontraram os de Symon antes de sair.

*

A água da torneira caía pelas mãos de Valentim. O espelho enorme à sua frente estava um tanto sujo, e refletia a sua imagem: a barba ruiva estava ressurgindo, e seus cabelos cresceram um pouco, com a ponta dos fios espetando seus ombros. Fazia tempo que não prestava atenção em sua aparência.

— Senhor, esse é o banheiro feminino. Poderia se retirar?

Era Loreley. Vinha vestindo seu sobretudo azul-escuro e estava idêntica ao dia que visitou Valentim. A mulher cruzou os braços e encostou-se na parede do banheiro.

— Ninguém vem aqui — disse  ela. — Então meio que tornei ele meu banheiro pessoal. — Fez uma pausa, olhando os arredores. — Aquele realmente é o sujeito?

Valentim fechou a torneira e passou a mão no pescoço e na nuca.

— Tem que ser. Não me restou dúvidas. 

— Bom… não interessa. Ainda bem que você deu as caras por aqui. Enviei uma carta-símbolo para o seu escritório, mas algo me diz que alguém a interceptou.

— Talvez. Me atrasei e a carta deve ter expirado. O que tinha nela?

— Dizia que os itens serão transportados hoje à noite — disse Loreley, despreocupada.

O ruivo forçou os dentes e suspirou.

— Você está me dizendo que alguém interceptou uma carta endereçada a mim dizendo uma informação confidencial?

Loreley ficou observando por longos segundos a lâmpada no centro do banheiro.

Puts… — respondeu ela. 

— Pelo Anjo, Loreley. Mármore já sabe disso?

Ela acenou a cabeça, confirmando.

— Hoje às onze e meia da noite. Vai levar cerca de duas horas até o local de entrega. Tem vários viadutos no caminho, só precisamos escolher um — disse ela, enquanto tirou um papel de seu bolso de trás e entregou a Valentim. Era um documento, mostrando a rota até metade do caminho que a equipe de escolta faria.

— Não te deram o trajeto completo.

— Não, apenas vamos seguir o furgão dos itens depois de certo tempo. Não podem deixar o local dos itens em um documento como esse. Apagarão nossa memória assim que entregarmos.

— Aqui. — Valentim apontou um ponto específico no mapa. 

— Beleza. Vou avisar meu marido. — Ela pegou o documento de volta. — Tenho que voltar ao trabalho. E acho que você também.

Loreley se espreguiçou e virou-se para a saída do banheiro.

— Ah, Valentim… — disse ela, parando e piscando. — Nós vamos conseguir. Temos que conseguir.



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