Volume 1

Capítulo 10: O Motivo

Valentim saiu às pressas. Depois de tanto ser arrastada, Juliette simplesmente cedeu e ficou imóvel com a cara completamente emburrada enquanto o ruivo a levava forçadamente.

— Eu podia muito bem ir andando.

— É um castigo por ser uma peste.

Chegando do lado de fora, ele soltou o braço de uma das Juliettes, essa que rolou para o lado e juntou-se à outra, formando uma só. Abriu a porta e esperou a garota entrar, mas a criança continuou imóvel no chão de pedrinhas. Apesar de ter sido arrastada por tantos metros, seu vestido continuava completamente branco.

— Notou? É um símbolo de limpeza especial — disse Juliette, percebendo que Valentim notou a clareza de sua roupa.

— Deixe de birra, entre no carro.

— Tá bem, tá bem...

Esforçou-se muito para levantar. Depois de dez segundos arfando, jogou as costas no banco de trás. Valentim bateu a porta e sentou-se no lugar do motorista.

— Ruivo, como você descobriu que era o herdeiro?

— Quê?

— Isso mesmo. Como ficou sabendo que só você podia ter o Medalhão?

Valentim tinha escutado muito bem a primeira frase, apenas disse aquilo instintivamente. Nem Loreley nem Mármore haviam mostrado interesse por isso, mas Juliette sim.

— Por que quer saber?

— Não tô com sono, e o caminho até a sua casa é longo… — A última palavra saiu arrastando-se. —  Me entretenha com uma história.

— Motivo fútil.

Juliette soltou grunhidos, incomodada. Ficou rolando de um lado para o outro no banco de trás enquanto o carro se movia.

— Maldito pai — disse Valentim, repentinamente.

Foram palavras lentas e frias, que fizeram Juliette aquietar. De bruços, olhou para Valentim, a mão que estava na marcha ficou repleta de veias, como se estivesse prestes a implodir. O rosto fixo na rua, a respiração um pouco lenta, claramente com raiva.

— Fico feliz sabendo que a alma dele está sendo eternamente atormentada. Não me arrependo de nada.

Juliette ergueu o tronco devagar, prontíssima para ouvir a história de Valentim. Ele revirou suas memórias para contá-la.

*

Era uma noite chuvosa e trovejante. Valentim estava trancado em seus aposentos, com os olhos fixos em um livro de capa dura e páginas amareladas que pareciam esfarelar apenas ao toque. Ajeitando-se em sua cadeira e puxando o caderninho que estava ao lado do livro, ele escreveu:

Esviolinekron.

Finalmente. Todos os meses de estudo não foram em vão. Valentim pôs as mãos em mais um símbolo proibido. Esviolinekron. Um símbolo extremamente complexo com uma consequência: a alma do corpo em que fosse lançado seria eternamente atormentada. Em quem quer que fosse lançado, o espírito daquele corpo nunca poderá descansar em paz.

O homem fechou o livro e apanhou seu casaco. Colocando o caderno no bolso, ele abriu a porta com tanta pressa que se esqueceu de fechá-la. Com passos fortes, Valentim seguiu até a frente de sua enorme casa, onde seu carro o esperava.

Dando partida, ele seguiu até o topo de uma colina silenciosa. O único som era os respingos da chuva sobre o teto do veículo. Estacionando o carro ao lado da estrada de terra, Valentim saiu. À sua frente estava uma sepultura de mármore muito luxuosa, com o nome de seu pai cravado nela. Abner Schulze.

— Espero que entenda, pai. Eu preciso testar esse símbolo, e você é o mais apto a isso — Valentim desenhou um símbolo triangular, fazendo a sepultura se abrir lentamente.

O corpo de Abner estava intacto. Símbolos de preservação são frequentemente utilizados em figuras poderosas, fazendo-as parecer idênticas ao momento da morte mesmo vários anos depois. 

Ao som de relâmpagos e chuva, Valentim desenhou um complicado símbolo com sua mão direita logo acima do corpo de seu pai.

Esviolinekron.

O ruivo sentiu seu cérebro revirar, e, por um segundo, pareceu perder a consciência. Quando abriu os olhos novamente, viu-se em um lugar completamente diferente.

Valentim estava de pé, completamente seco, em uma sala de escritório muito limpa. No centro dessa sala estavam sentados dois homens frente a frente, separados por uma mesa de madeira chique.

Essa era a memória mais importante de seu pai? Uma conversa de trabalho? Valentim olhou em volta novamente, era impossível de se acreditar. O símbolo falhou? Também improvável, ele estudou muito para esse momento.

— Sr. Schulze. É um prazer revê-lo — disse um dos homens, com uma voz grossa.

Nesse momento, Valentim reconheceu-o. Era Julius Hommer, o atual presidente do Governo Simbolista. Estava mais novo, seus cabelos ainda não eram grisalhos.

— O prazer é meu, sr. Hommer. Vim aqui para uma discussão rápida — disse Abner, colocando uma maleta preta em cima da mesa. — É a relíquia.

— A relíquia? — perguntou Julius. — Não me diga...

— O Medalhão, exatamente. — Ele abriu a maleta, revelando um medalhão prateado, extremamente brilhante e lustrado. Diversos símbolos estavam cravados nele. Era menor do que Valentim imaginava.

“Ano que vem, meu filho completa trinta anos. A lealdade do Medalhão de Alícia será  mais minha, e sim dele.”

— Sr. Schulze, e não seria correto passá-lo ao seu filho?

— Não. Valentim não está pronto, e, sendo sincero, nunca estará. Eu o mimei demais. Quero que você guarde o Medalhão em um lugar seguro. É muito perigoso. Se destruído, causa uma explosão mágica de raios inimagináveis — Abner se levantou, indo em direção à saída. — Conto com você, sr. Hommer.

Valentim nem sequer viu seu pai deixar a sala. Seus olhos estavam fixos no Medalhão. A relíquia que era contada em lendas, contos... todos a queriam. Todos desejavam que existissem. Ela estava bem diante de seus olhos, e, ainda por cima, ele era o único em todo o mundo que podia desfrutar de seus poderes.

Não está pronto, Mimado. Essas palavras ferveram o sangue de Valentim. O ruivo agora observava a maleta ser fechada com extremo ódio. Eu sou o herdeiro. Eu mereço tê-lo. O Medalhão... é meu. Pensou.

O cérebro de Valentim revirou novamente. Voltou à sepultura de seu pai, completamente encharcado.

Ele encarou por mais um momento o corpo do pai antes de cuspir dentro da sepultura. Apesar do ódio, um sorriso de canto apareceu, afinal, o ruivo pelo menos fez a alma do pai ser eternamente atormentada.

*

— E quando isso aconteceu? De você invadir as memórias do seu pai — perguntou Juliette, depois de ouvir toda a história que Valentim contou. Cada palavra dele parecia deixá-lo mais perturbado.

— Cinco anos atrás. Revisitei aquela memória infinitas vezes, nunca descobri nada.

— E por que demorou tanto pra agir?

— Chega de perguntas.

Juliette suspirou e grunhiu desapontada. Enfim, voltou a deitar-se no banco, balançando as pernas.



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