Escolhido Brasileira

Autor(a): Bárion Mey


Volume 1

Capítulo 20

Luke

— Faça de novo, Arial — uma voz afetuosa entoa em meus ouvidos.

 Há um homem segurando um graveto grosso como se fosse uma espada parado à minha frente. Sua aparência é desgastada e magra, como alguém doente que está passando fome durante dias, porém seu olhar e pose passam uma aura intimidadora com seus longos cabelos castanhos amarrados em um coque ao balançar do vento…

— O que é isso? — pergunto a mim mesmo. — Outro sonho?

TAP!

— AI!

— Não diga bobagens, fedelho. Isso pareceu um sonho para você? — diz me batendo com o graveto no braço.

Eu o olho confuso.

TAP!

— Preste atenção e fique em posição! — TAP! — Venha de novo. — Avanço para cima, mas sempre recebo uma gravetada no braço. — Arial, está levando o treinamento a sério?

— Hã? Isso… era um treinamento? Arial? Arial?! — Levo a mão ao rosto. — Esse… sou eu?!

Olho para frente e uma figura borrada entra no meu campo de visão. Há um homem parado na frente do cara que me batia, com uma lâmina fincada em seu abdômen. Cabelos cinzas compridos e pele pálida. Ele está me encarando com um sorriso.

— Você sempre será fraco! — diz.

— Não! Não! Isso não!

— Você não salvou sua família! Não salvou seu mestre! — Ele se aproxima de mim. — Não salvou a si mesmo!

Fico ajoelhado na frente dele. Meu corpo parece regredir cada vez mais, levando-me a ter o corpo da minha infância novamente. Ele ergue a espada e desce diretamente nas minhas costas, atravessando meu peito.

— AAARGH!

— AAAH!

Acordo subitamente com a mão pregada no peito, como se a dor que senti fosse real. Meus olhos vibram e meus ouvidos estão zunindo. Aquele era… Ekóz… e… Delgron. Mesmo depois de morto, ele ainda me persegue.

Eu só queria… esquecer tudo isso. Se eu pudesse trocar minhas lembranças passadas por um pouco de paz, eu o faria. Só para me livrar desses pensamentos malditos que percorrem minha cabeça todos os dias. Ver minha mãe, minha irmã… meu mestre e todos aqueles que amei morrerem de novo nos meus sonhos… será que se eu morrer, tudo isso acaba?

— Eeiii! Está me ouvindo pelo menos? — Escuto a voz de uma garota ao meu lado. Ela coloca a mão em minha testa. — Céus, está ardendo em febre. Chacinarei o vovô depois disso.

— Quem é você?

— Sou Hannah. É um prazer te conhecer, primo — diz com um sorriso aberto.

— Como é?

Meu olhar indignado parece com o de um peixe morto desentendido. Mexo no meu cabelo, o bagunçando tentando entender o que está acontecendo.

— Tu é um fantasma? — questiono, apertando as bochechas da garota. Ela fecha o punho e me dá um cascudo bem forte.

— Pelo visto você está bem! — Caminha em direção à porta. — Vou ali… — Olha para trás. — Matar o vovô. — Seu sorriso forçado soa em um tom tranquilizador, mas sua voz e olhar demonstram uma aura ameaçadora.

— Glup! — Arrepio dos pés à cabeça.

(...)

Arkus, Hannah e eu estamos sentados nas poltronas da sala, em frente a uma lareira acesa de leve, bebendo chá quente. Sinto uma pequena brisa quente passar.

— O que houve com seu rosto, velhote?

O rosto de Arkus está coberto de arranhões e band-aid com desenhos floridos na testa. Direciono os olhos para Hannah, vendo-a beber o chá calmamente, toda plena, como se não tivesse nada de errado com aquela situação bizarra.

— Isso foi apenas um mal-entendido por parte da minha querida neta…

— Mal-entendido uma ova — interrompe ela. — Isso é para você aprender a não fazer mais esse tipo de coisa!

— Mas minha queridinha…

— Não me venha com esse papo de queridinha, contarei tudo para a mamãe quando voltar para o castelo.

— EEEEH! — Arkus salta com os joelhos pregados ao chão. — Minha netinha querida. — Abraça suas pernas como se agarrasse um travesseiro macio. — Você não está sendo um pouco dura demais com seu avô?

Que tipo de cena bizarra dos infernos é essa que estou presenciando agora? Esse é o mesmo velho que me deu uma surra com sangue nos olhos? Arkus se senta novamente, pega a xícara de chá e volta à postura marrenta de sempre.

— Sei o que se passa em sua cabeça agora, criança. Darei as respostas que procura. — Sim, eu tenho dúvidas. Como essa garota é minha prima se ele mesmo disse que o clã Drakhar já foi extinto? Isso não faz o menor sentido. — Acontece que Hannah é filha de Darnys, que foi adotada por mim quando tinha três anos de idade. Nos registros consta que ela é, de fato, minha filha. Apenas o rei e nós sabemos sobre essa verdade oculta.

— Agora entendi o motivo dessa menina não ter as mesmas características que possuo em relação a você.

— Essa garota aqui tem um nome, sabia? Pode começar a me chamar de Hannah daqui para frente, entendeu?

— Sim, sim, senhorita Hannah.

— Uurgh! Mal te conheço e já sei que não vou te suportar. — Seus cabelos começam a se mexer como cobras raivosas e ela cerra os punhos de tão nervosa que fica.

Sai da sala e vai para algum outro lugar, mas espero que seja longe.

— Garoto — fala Arkus, seu rosto está triste e sua voz calma —, quero pedir que, não importa o que digam, não mude o jeito de como conversou com ela agora pouco…

Isso soou mais como um pedido desesperado. Ele chama minha atenção com um gesto. Conta que Hannah teve uma vida complicada. Desde seu nascimento, as pessoas só se importavam com seu sangue. Por ser da realeza, ela nunca teve amigos verdadeiros. As pessoas que sempre estavam ao seu lado mantinham segundas intenções.

Sem amigos, sem familiares que se importassem de verdade com ela no castelo, foi obrigada a criar uma máscara para esconder a solidão que a rodeava. Os únicos que se importavam com ela de verdade eram Darnys e Arkus. Nem mesmo Drake ou Arkion davam a atenção necessária que ela precisava.

Conheço bem esse sentimento, mesmo antes de reencarnar. Sinto sua dor, pequena Hannah.

— Você não precisa se preocupar com esse tipo de coisa, velho. Não pretendo tratá-la diferente somente por uma causa dessas.

(...)

A manhã chega e, como de costume, acordo coberto de suor. Esses pesadelos… após tomar o banho matinal, visto uma roupa casual: uma bermuda, um sapato e uma blusa branca de botões de manga curta.

Ao chegar na sala de jantar, me deparo com Arkus sentado à mesa, bebendo seu chá da manhã.

— Bom dia — falo com um bocejo e ele retribui com um sorriso.

— Bom dia, garoto. — Faz um gesto com a mão. — Mandei preparar algo para você.

Magda, a empregada mais velha, surge da cozinha com uma jarra transparente, portando um líquido amarronzado dentro.

— Isso é…

— Faça bom proveito, jovem mestre. — Ela me serve uma xícara, saindo logo em seguida.

Levo a xícara com todo um suspense em volta, lentamente, sentindo o cheiro vindo de dentro. Não há dúvidas! Isso é… Isso é café!

— Umu, umu. — Faço um barulho engraçado com a boca, saboreando cada gole. — Isso sim que é uma bebida apropriada para mim. Como senti sua falta, meu cafezinho.

Arkus começa a ter uma crise de risos. Nunca viu um homem apreciando uma boa bebida? Céus… Jya chega em seguida, contendo o riso ao me ver apreciando meu belo café.

— Já tomou café, Jya?

— Não, nunca.

Sirvo um pouco em uma xícara vazia e a entrego. Bebe sem cerimônias, fazendo uma careta impagável.

— É um pouco... amargo, só que doce.

— Você se acostuma com o gosto, não há nada melhor do que um bom café.

Após o café da manhã, Arkus se levanta e me diz que vamos sair. Posso notar a ansiedade o tomando aos poucos. Na entrada da mansão, Hannah desce as escadas, com um vestido vermelho e sapatilhas brancas. Ela vira a cara no momento que me vê e segue reto.

— Bom dia pra você também…, esquisita.

Ela para e enrijece os ombros como se estivesse pronta para me xingar de todas as formas possíveis. De alguma forma, quero ver onde isso vai dar. Tenho que parar com essas minhas manias de atentar os outros… Nah. É divertido, pelo menos para mim.

— Bom… Bom dia…

Como é que é? Ela… sorriu agora pouco, né? Fico alternando o olhar entre ela e Arkus, mas o velho está tão maravilhado com o sorriso da própria neta que está paralisado até agora.

Eu entendo, sinceramente. Pelo que Arkus disse, Hannah é conhecida como a princesa aborrecida e solitária que nunca sorri. Ela praticamente desferiu um golpe certeiro no coração do avô. Esse velhote… te contar, viu!

Nós três entramos na carruagem. Jya espera na porta até sairmos de vista. O cocheiro nos guia pela passarela do jardim da mansão de Arkus. Ao sair, avisto sete pessoas montadas em cavalos. Agnes, Claus e Arlo, acompanhados por mais quatro cavaleiros da família Pendragon.

— Luke! — grita Agnes acenando.

Coloco o rosto para fora da janela da carruagem, vendo o semblante alegre de minha amiga ao me encontrar.

— E aí, pirralho.

— Já faz alguns dias, criança — fala Claus.

De lado, consigo ver a surpresa de Hannah. Com certeza deve estar pensando em como conheço essa gente e até mesmo o quarto general de Dream.

— Como vão, irmã Agnes e senhor Claus?

— Estamos bem — responde ele.

— EI! — interfere Arlo. — Estou aqui também se não percebeu, pirra… Garoto.

— O-ho, sua personalidade ainda continua a mesma bosta pelo visto, hein?!

— Isso é atitude para uma criança de cinco anos ter? — Escuto Arlo murmurar.

— Ei, vovô. — Ouço Hannah chamar Arkus sussurrando. — Ele realmente falou isso para o quarto general de Dream? Nem eu, que sou filha do rei, ousei falar assim com Arlo, e olha que ele é bastante amigo do meu pai e o considero meu tio. Que diabos de feitiço esse garoto usou? — Arkus apenas sorri.

— Velho…

— Ve-velho?

As expressões da Hannah chegam a ser engraçadas de certo modo.

— Fique à vontade — Arkus responde.

Subo pela janela da carruagem ainda em movimento e tento ir para o teto. O automóvel começa a diminuir a velocidade até que Arkus diz:

— Não precisa disso, continue!

Sento no teto, virado para Agnes.

— Vocês estão indo para o mesmo lugar que a gente? — Fico com as pernas cruzadas. Meu cabelo balança por causa do vento forte e meu corpo fica tremendo conforme a carruagem passa pela estrada esburacada.

— Aonde vamos estará repleto de pessoas de todos os cantos — fala Claus.

— Hoje vai acontecer um grande evento, ninguém vai querer perder — complementa Arlo.

Evento? Que festividade é essa que estará cheio de pessoas de todos os cantos? Espero não ser um teatro… odeio teatros.

— Ei, ei! Tenho uma novidade para te contar, irmãozinho — diz com entusiasmo.

— Você arrumou um namorado? — brinco.

Agnes bufa, arranca uma das botas que usa e a taca em mim. Antes que atinja meu rosto, eu a seguro.

— Estou falando sério aqui, viu?

— Sim, sim. Então, o que foi? Atingiu o terceiro estágio?

— Tehe?! — Ela bate do lado da cabeça se fingindo de sonsa. Que tipo de reação eu tenho que ter agora? Isso é simplesmente incrível!

Tá… tá falando sério?

Ela apenas sorri. Seu sorriso é impagável. Meiga e gentil… certas vezes. A carruagem diminui o ritmo conforme avança pelas ruas de Mighur. Há multidões indo para uma grande estrutura, similar a um enorme coliseu.

Fico de pé e a observo. É feita de pedras modeladas com símbolos estranhos, parecem ser runas antigas, construídas com algum propósito além de serem apenas enfeites. É similar com as estruturas onde eram exibidos grandes teatros em Zendrut.

O olhar de todos são direcionados para minha direção, ou melhor, para a carruagem de Arkus. Em seguida, veem a família Pendragon seguir logo atrás de nós. À frente, há uma fila gigantesca de inúmeros veículos que aguardam a permissão de entrada. Agora é sério… O que vai acontecer aqui?

A carruagem para e eu me sento novamente, aguardando a demorada entrada naquele coliseu estranho. Observo de longe e vejo um grupo de pessoas vestidas com véus verdes e azuis, com panos transparentes e longos cabelos amarelados com orelhas pontiagudas.

Elfos? Pelo que li, os elfos residem em Oredhel, isso fica muito distante de Dream. Para eles estarem aqui, não é apenas um "evento" como todos estão dizendo. Longos minutos se passam e finalmente chegamos na entrada.

Dois guardas a protegem com lanças bem afiadas e vestindo armaduras banhadas a ouro. Um deles me encara.

— Este garoto está com o senhor?

— Sim…

— Senhorita Hannah — diz o guarda. — Seu pai está a esperando na área vip.

O vigia gesticula com a mão para que o cocheiro siga em frente e me encara novamente com olhos semicerrados. Eu o encaro de volta. É como um duelo para ver quem pisca primeiro. Obviamente ganho esse duelo patético. O guarda desvia o olhar antes mesmo de entrarmos completamente dentro do coliseu.

Adentrando a grande estrutura, consigo ver, no centro, algo parecido com um palco. É uma pedra fina e redonda extremamente polida. Observo ao redor e vejo inúmeros assentos. A frente possui uma estrutura de três andares, com janelas abertas e assentos de couro revestidos em madeira pura.

O cocheiro abre a porta da carruagem, e sai Arkus e Hannah logo em seguida. Desço do teto e me prostro ao lado do velho.

— Vamos entrar — fala Arkus.

Nós subimos para o terceiro andar, onde o rei e a rainha estão nos esperando. Arkus caminha até eles junto com Hannah, eu apenas os sigo. Sinto o olhar deles ser direcionado a mim aos poucos.

— Seja bem-vindo, pai — fala Darnys o abraçando.

O rei o cumprimenta com um aperto de mão forte, abraça sua filha e passa ao meu lado me ignorando completamente. Por algum motivo, quero esbofetear a cara dele… Nós três somos levados a assentos um do lado do outro. Quando vou sentar, alguém me puxa para o canto, é Darnys, e Drake surge logo em seguida.

— Garoto — diz ele olhando para o lado. — Você…

Meus olhos encontram os dele, e não consigo sentir nenhum pingo de maldade.

— Sim, é isso que estão pensando. Sou Luke Drakhar, filho da Lúcia. 

Os dois se espantam. Então sorriem e seus olhos começam a brilhar. Drake coloca a mão em meu ombro, olhando em meus olhos.

— Não acredito que você realmente esteja bem.

Ele me abraça forte, e Darnys se junta a ele. Percebo o olhar curioso de todos em volta e vejo Arkus dar um leve sorriso vendo essa cena. Não sei exatamente que reação ter… então acho que vou retribuir o abraço.

— Não sabe o quanto estamos felizes em saber que está bem — fala Darnys acariciando meu rosto. — Quando soube que minha irmã havia fugido…, eu… não sabia o que fazer.

As lágrimas começam a surgir e Drake entra na frente para que ninguém a veja chorando. Levo meus pequenos dedos abaixo dos seus olhos limpando as pequenas gotas que saem. Pelo visto você é bem amada…, Lúcia…

Do lado de fora, um homem surge no meio do palco orquestral. Usa um terno preto elegante e possui cabelos ondulados levemente baixos. Vou até meu assento, localizado ao lado do rei e da rainha.

Inúmeras pessoas estão sentadas na frente da orquestra. O teto é aberto, está uma linda manhã, com nuvens gentis e um sol refrescante sem aquele calor exorbitante. O homem retira uma bengala de dentro do terno — Deus sabe de onde — e começa a fazer um discurso — um pouco chato — que faz as pessoas bocejarem em resposta.

De repente, na entrada em que todos passaram, um grupo de pessoas vestindo túnicas pretas surge, carregando cetros de madeiras maiores do que seus próprios corpos com uma esfera transparente na ponta.

A multidão olha assustada. “Mas o que é isso?”, “Quem são eles?”, perguntam uns aos outros confusos. Na última posição está um homem velho, carregando um cetro de madeira escura, com uma esfera roxa, diferente da dos outros.

— Senhoras e senhores! — orquestra o homem. — Hoje é um grande dia! Todos sabem que este local é considerado um templo desde a era mítica!

Templo? Desde quando isso aqui se parece com um? Nem em sonhos… um templo? Isso? Haah, que história é essa, meu senhor…

— Estes assentos não existiam antes do amanhecer — continua. — Esta construção foi moldada para este grande dia. O que vocês estão vendo é, de fato, o templo Abyss!

As pessoas começam a cochichar entre si.

— Eu me perguntava onde o templo tinha ido, mas em pensar que eles moldaram o templo de Abyss para um evento que ninguém sabe ao certo o que é…

— Sim, que evento será esse?!

Esse é o templo de Abyss?! Aqui é onde…

— Exatamente! — a voz do orquestrador interfere nos meus pensamentos. — Este é o templo de Abyss…, onde o grande herói, Arthur Pendragon, foi invocado quatrocentos anos atrás!

Todos fazem um silêncio inquietante.

— Velho…, o que vai acontecer aqui hoje?

— Hoje… é o dia em que todo o continente vai virar de cabeça para baixo.

 


 

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