O Druida Lendário Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 8: Corrida dos Ratos

Era uma manhã chuvosa de segunda-feira. Daniel havia acabado de acordar. Ainda deitado na cama ele esticou o braço até a cabeceira e alcançou o celular para conferir as notícias do dia.

Mal sabia ele que a primeira reportagem já acabaria com seu dia, pois seu antigo avatar, Dante, seria arrematado em um leilão judicial no fim do dia.

Apesar de abalado, ele levantou-se da cama e espreguiçou-se, fazendo estalar os ossos do corpo. Faltava uma hora para o início do expediente em seu novo trabalho.

A verdade era que Daniel não arranjou um emprego porque precisava se sustentar.

Apesar de perder grande parte das suas economias com o processo judicial, ele ainda conseguiria viver confortavelmente durante um tempo, porém, ainda faltava muito dinheiro para realizar seu novo objetivo de vida: fundar uma organização profissional.

E para que pudesse realizá-lo, ele aceitou a melhor vaga que conseguiu, a de auxiliar em uma empresa contábil no centro de Florianópolis.

Daniel tomou seu café da manhã, acompanhou as notícias da manhã passando no televisor e se vestiu como um lacaio corporativo se vestiria. Então parou em frente ao espelho e suspirou ao ver aquela figura irreconhecível.

De súbito, lembrou-se do quão divertido foi o fim de semana. Havia conhecido Skiff, o novato divertido; Artic, o cavaleiro reclamão, mas com muita iniciativa; e Niki, a assassina pirada, mas talentosa em combate.

A hora de ir trabalhar havia chegado, ele pegou um guarda-chuva, trancou o apartamento e saiu. Como tinha vendido o carro para economizar e cobrir parte das dívidas do processo e do apartamento, restou-lhe apenas o bom e velho ônibus de linha.

Mesmo com o guarda-chuva, Daniel chegou ao ponto de ônibus encharcado do joelho para baixo. Todo mundo no ponto tinha aquela mesma expressão melancólica, encarando a paisagem urbana e os carros de luxo passando enquanto seus ouvidos absorviam o ruido reconfortante da chuva.

A sorte sorriu para ele, não demorou cinco minutos para o ônibus chegar. Daniel embarcou, vislumbrou o interior e bufou porque teria de ficar em pé. Mas a situação iria piorar, pois todo mundo no ponto subiu naquele ônibus.

— Vida de proletário de merda! — resmungou, pouco se importando se alguém ia ouvir.

Mas o destino havia-lhe guardado uma surpresa. O ônibus arrancou com força, os passageiros cambalearam para trás e, quando todo mundo se ajeitou no lugar, alguém decidiu tocar música em seu celular, sem usar um fone de ouvido.

O som propagou pelo ar independente do gosto musical alheio. Meia dúzia de pessoas resmungaram sobre a atitude do garoto, mas o rapaz pouco se importou.

Foi uma longa viagem

***

No escritório onde iria trabalhar, Daniel foi apresentado a seu supervisor. Um sujeito mais velho, talvez em seus 35 anos, bem-vestido e com um olhar de alguém que levava o trabalho a sério. Daniel supôs que esse trabalho era a vida dele.

Deus me livre de viver assim, pensou.

O superior estendeu o braço e o cumprimentou:

— Olá, seja muito bem-vindo. Meu nome é Mário, sou responsável pelo setor fiscal da empresa.

— Muito prazer.

Em seguida o chefe o apresentou o restante da equipe. Ao todo eram doze pessoas distribuídas em cubículos individuais.

Ao menos as celas são espaçosas, refletiu.

Seu cubículo ficava no meio da primeira fileira. Ele largou suas coisas sobre a mesa onde havia um computador e um tablet.

— Samara? — O supervisor chamou a garota no cubículo à direita.

— Pois não? — ela falou.

— Você poderia mostrar ao Daniel o nosso fluxograma e tudo mais que ele precisa saber para começar?

— Claro, será um prazer ter mais alguém aqui com a gente.

Puxa saco, Daniel disse a si mesmo.

A garota parecia uma versão mais nova do supervisor.

Outra que vive para trabalhar, para agradar os outros.

— Vou voltar ao meu escritório. — Mario falou, dando-lhes as costas. — Se precisarem de alguma coisa, podem vir me procurar.

— Pode deixar — disse a garota.

— Entendido e… obrigado — Daniel simulou cordialidade no tom de voz.

Samara empurrou sua cadeira para dentro do cubículo de Daniel, ficando ao seu lado. Ela ligou o computador e ajustou a tela para projetar a imagem de um canto da divisória à outra.

— Podemos começar? — ela falou, sorridente. A mão direita alisando os cabelos castanhos.

— Claro.

***

O expediente terminou às 18:00, às 18:12 Daniel chegou ao ponto de ônibus. A chuva tinha parado. O chão estava molhado e repleto de pequenas poças d’água. Aquele foi um primeiro dia sobrecarregado.

O tempo passou rápido, talvez porque tudo era novo para alguém que viveu dentro de um jogo durante uma boa parte da sua vida, mas o que mais o incomodava era que não tinha entendido metade do que Samara tentou o ensinar.

Ele sentia-se exausto, mentalmente esgotado. Estava louco para voltar ao apartamento para se jogar na cama com o televisor ligado com qualquer coisa passando, podia até ser um programa de fofocas.

Parando para pensar, talvez nem iria entrar no jogo, pois chegaria razoavelmente tarde da noite, mas talvez, se tivesse sorte, poderia gastar uma horinha em Nova Avalon Online.

Era possível que Artic, Niki e Skiff estivessem online agora mesmo. Isso o fez lembrar da aposta firmada com Artic e Niki. Seria necessário bolar um plano ousado para alcançar o nível 20 antes deles.

Para sua satisfação o ônibus não tardou a chegar. Ele entrou e se largou no primeiro assento vago que encontrou. Da janela contemplou a cidade à noite. As pessoas lá fora ou estavam exaustas do trabalho, ou alegres por saírem dele. Daniel sentia ambas as sensações, por isso exibia um tímido sorriso no rosto. E, para melhorar, não havia ninguém tocando música alta no celular.

***

Depois de entrar em seu apartamento ele fez tudo que havia planejado. Sobrou até mesmo aquela horinha para gastar dentro do jogo. Quando pensou em se levantar da cama, o celular vibrou ao tocar um aviso de notificação. Era uma mensagem de sua antiga colega de equipe.

Júlia: Oi Daniiiiii!!! Podemos conversar?

Extrovertida até em texto. Em vez de responder à mensagem, ele ligou para ela.

— Dani? — Júlia falou assim que atendeu.

— Queria falar comigo?

— Sim… — Ela tentou encontrar as palavras certas. — Eu só queria saber como você está… depois de tudo que aconteceu.

Daniel olhou de relance para a capsula de imersão em seu quarto.

— Que tal a gente conversar dentro do jogo?

— Hein? Como assim? Você já está evoluindo uma conta nova?

— Pois é… Eu pensei em parar depois de tudo aquilo, mas algo bem estranho aconteceu.

— Fala logo, você está me deixando nervosa.

— Eu te conto dentro do jogo. Me mande o ID da sua nova conta, eu te adiciono.

— Tudo bem, eu já envio. — Ela desligou.

Instantes depois veio a mensagem com o número de ID dela. Daniel foi até a cápsula de imersão, se acomodou nela, e entrou no mundo jogo.

***

Antes de adicionar o avatar da amiga, Daniel, que agora controlava Ragnar, vasculhou sua lista de amigos para ver se Artic, Niki ou Skiff estavam online, mas infelizmente, não estavam. Entretanto, ele pôde ver que Artic e Niki estiveram jogando, pois haviam subido um nível.

Então voltou para o que importava, Ragnar abriu a janela de adicionar amigos e inseriu o ID fornecido por Júlia. O convite foi aceito em poucos segundos. O novo avatar dela chamava-se Julie. Não demorou para uma série de mensagens surgirem.

Julie: Me mande suas coordenadas que eu venho até aí.

Julie: Como assim seu novo avatar se chama Ragnar? Dante era muito mais legal!!!

Julie: Que porcaria é essa de druida? Ah, vou guardar minha indignação para quanto a gente se encontrar.

Ele enviou as coordenadas da cidade de Bremer. Apesar de estar no Santuário dos Lírios, suas pendências ali foram resolvidas no dia anterior, quando reportou a missão dos druidas perdidos à Protetora.

Não querendo deixar Julie esperando, Ragnar se transformou em urso e disparou rumo à cidade. A velocidade adicional da forma animal o fez chegar à cidade muito mais rápido do que a pé.

Haviam dezenas de jogadores próximos ao portão de Bremer, a maioria vestia o traje inicial de tecido e portava alguma arma de madeira. Alguns conferiam o mapa, outros conversavam entre si, enquanto o resto estava parado, esperando por sabe-se lá o quê.

Ragnar voltou a forma humana e caminhou rumo à cidade, mas quando esteve a vinte passos do portão, um trio de aventureiros se destacou da multidão. Eles ostentavam vestes suntuosas, armaduras polidas e seguravam armas prateadas nas mãos.

Ragnar buscou refúgio posicionando-se atrás de um clérigo estudando um mapa, então fixou o olhar na garota liderando o trio, e a inspecionou.

Ela chamava-se Havoc, uma espadachim nível 16 que pertencia a uma guilda chamada Pata Negra.

Aquela era a guilda que o estava caçando. Como Ragnar pouco sabia sobre eles, preferiu manter distância dos três, não estava disposto a arranjar encrenca contra outro espadachim, ainda mais quando precisava se encontrar com uma velha amiga.

Deixando os Pata Negra para trás, caminhou até as coordenadas que enviou à Julie. Ele aguardou em frente aos portões da cidade, analisando cada novo avatar que aparecia para garantir que não era um capanga daquela guilda.

Um grito enérgico propagou no ar:

— Ei!

Todo mundo ao redor dele virou-se para ver quem tinha gritado. Uma silhueta dentro da cidade disparou ao encontro de Ragnar. O semblante feminino foi-se revelando conforme avançada.

Os fios do cabelo castanho amarrados em um rabo de cavalo chacoalhavam ao vento, cada pisada no chão lançou nuvens de poeira, algumas vezes atingindo um NPC inocente ou um aventureiro desavisado.

— Daaaaaaaaaaaaniii! — ela gritou.

Ragnar estremeceu ao ouvir seu nome real, ele fez sinal de silêncio, e falou constrangido:

— Quieta!

A poucos metros do druida, a garota derrapou no chão para tentar frear a corrida, mas o que resultou disso foi uma gigantesca nuvem de poeira no ar e Ragnar caído no chão. Ambos tossiram ao inalar aquela poeira.

A nuvem se dissipou, Julie se colocou ao lado do amigo e estendeu-lhe a mão.

— Desculpa, Dani.

Ele respondeu assim que ela o ajudou a levantar:

— Eu te desculpo se você parar de me chamar por esse nome.

— Oh… entendi, Ragnar. — Ela pôs a mão no queixo. Já entendi. Você pretende anunciar seu retorno de forma bem dramática, acertei?

— É lógico que sim, mas é também para não chamar a atenção dos figurões das grandes guildas. Eu não vou ter um minuto de sossego quando souberem que estou de volta.

— E para onde você quer ir? Tem algum bar ou taverna decente nessa cidade?

— Tinha uma estalagem, mas o lugar era uma porcaria — disse olhando de relance para uma placa escrita “Taverna Alce-Coice”.

— Tinha? O que aconteceu com essa estalagem?

— É uma longa história. Você se importaria se a gente conversar lá fora? Eu estava pensando em subirmos de nível juntos, como antigamente. Eu te conto a história da estalagem no caminho, enquanto você soca a fuça de alguns goblins remelentos.

— Combinado, é um encontro à moda antiga. — Ela levantou a mão para ele, e falou: — Toca aqui.

Mas Ragnar se aproximou e a abraçou:

— Eu senti muito sua falta.

Ela o envolveu em seus braços.

— Eu também.

Então caminharam juntos para fora da cidade.

***

Ragnar e Julie decidiram caçar em uma planície verdejante, repleta de insetos e pequenos acampamentos goblins. Entre uma fala e outra, Julie socava alguma criatura enquanto Ragnar lhe fornecia suporte.

Ela era nível 18 e ele estava para alcançar o 8. Por conta da diferença, Ragnar recebia apenas uma porcentagem da experiência total de cada abate, mas ele não se importava.

— Eu estou chocada com essa história do taverneiro — ela falou ao nocautear um goblin com um soco na testa. — Eu já encontrei muito pilantra dentro do jogo, mas nunca vi alguém agindo de má fé com quem está começando.

Então ela mudou de assunto.

— Mas vem cá, você acredita mesmo que esse seu contato misterioso não é só alguém tirando uma com a sua cara?

— Eu desconfiei até eles me contatarem depois de criar este avatar. Por acaso você teria algum palpite sobre o tipo de gente que estamos falando?

—  Eu também não faço ideia. Será que estamos falando de um hacker do bem? Ou seria do mau?

— Tomara que do bem.

Julie puxou um goblin remelento pela perna e o atirou contra Ragnar, que por sua vez conjurou um Raio contra a criatura enquanto ela estava no ar. Com o último goblin do acampamento morto, Ragnar parou para admirar o novo avatar da amiga.

— Quer uma foto? — ela falou assim que percebeu seu olhar.

— Só estava admirando seu talento e paciência para criar uma cópia exata da Júlia do mundo real.

— É questão de autenticidade. — Ela respirou fundo e perguntou algo que a tinha deixado curiosa: — Como é ser um druida?

Ragnar exibiu-se com a lança, girando-a entre os dedos, passando-a embaixo da perna, lançando-a no ar e apanhando-a com os pés.

— É muito divertido. A lança é uma das armas mais divertidas de manusear, também parece ser a melhor escolha para o tipo de druida que pretendo criar. Apesar da classe não ter os golpes e os movimentos ofensivos do cavaleiro, as formas animais compensam essa falha.

Mas a expressão no rosto dela havia mudado, os olhos estavam semicerrados e ela mordia o lábio inferior.

— O que foi? — Ragnar se aproximou até ficar de frente a ela.

Julie respondeu olhando-o no olho:

— Eu preciso te contar uma coisa… — ela coçou a nuca e desviou o olhar. — Eu aceitei uma proposta semanas atrás… um convite de uma equipe profissional.

Na mesma hora, Ragnar cancelou a conjuração do feitiço de cura. Seus olhos arregalaram, mil coisas vieram-lhe à mente, mas perguntou aquilo que mais o chamou atenção:

— Mas já? Seu avatar ainda é fraco para o cenário competitivo.

— Eu acabei aceitando porque estava com medo de perder relevância enquanto eu ficasse fora do mundo competitivo. Assim eu tenho um contrato que garante um salário caso acontecer alguma coisa.

O semblante triste, o nervosismo na voz e a hesitação dela em falar, tudo isso só poderia significar uma coisa.

— Você entrou para a Red Crows?

Ela confirmou com um tímido balançar de cabeça.

— Eu entendo perfeitamente — disse Ragnar. — Na sua situação eu também aceitaria um convite de nosso arquirrival. Quando a Dark Age morreu, todos nós saímos de mãos vazias porque o filho da puta do Emerich roubou nossos avatares.

Ela virou-se bruscamente, seus olhos expressavam uma frieza destoante da insegurança de antes. Sem hesitar, ela cuspiu a verdade entalada em sua garganta:

— Dante está com o Gustavo.

Ele permaneceu quieto, pensativo, por longos segundos ficou apenas olhando para a grama, até dizer de uma vez:

— Eles contrataram você e compraram meu antigo avatar a um preço milionário. Vocês serão oponentes formidáveis.

— Oponentes? — ela perguntou.

— Sim. Eu pretendo fundar meu próprio time.

 



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