O Druida Lendário Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 6: Legionário Post-Mortem

O grupo se reuniu ao redor de uma mesa de madeira para discutir o próximo passo da incursão ao Covil das Serpentes. O rosto de cada um era iluminado pelas chamas das tochas presas nas paredes.

Skiff, que sentava à esquerda de Ragnar, disse em tom confiante:

— Aposto que vamos enfrentar o responsável pelo barulho de corrente arrastando.

— Eu também acho — disse Artic, cruzando os braços. — E como a gente está em uma masmorra não listada, as recompensas atrás daquela porta serão inéditas para todo mundo.

— Não listada? Como assim? — perguntou Skiff.

Niki sentou na mesa antes de responder:

— Isso quer dizer que ninguém sabe os itens que há na masmorra.

— Masmorras não listadas são muito cobiçadas — Artic adicionou. — Um grupo de jogadores pode descobrir um lugar oculto como este, mas decidir não o divulgar para que só eles possam obter as recompensas desse lugar.

— É comum guildas fazerem isso — Ragnar completou, alisando as escamas da serpente amiga parada ao seu lado. — Inclusive, as maiores possuem grupos dedicados a vagar pelo mapa em busca de locais ocultos.

— Mas esse jogo existe há anos, não tem como ainda ter segredos a serem descobertos — Skiff contra-argumentou.

— Não é bem assim — Niki respondeu lançando uma adaga para cima com uma mão e a pegando com a outra. — Existe um módulo do jogo dedicado a gerar esse tipo de conteúdo. Então, se uma guilda descobre e completa uma missão secreta, outra é gerada automaticamente.

Storyteller, esse é o nome do módulo que faz Nova Avalon ser especial — Ragnar respondeu batendo a mão no queixo. — Mas ele não gera só missões secretas, ele também altera, retira e adiciona masmorras quando julgar necessário. Dizem que ele também distribui as classes lendárias. Porém, ninguém sabe como funciona, o algoritmo por trás dele é um dos maiores segredos do século.

— Ou isso pode ser tudo balela e, na verdade, eles têm um prédio com dezenas de milhares de escravos programando tudo manualmente.

A piada de Skiff causou um ataque de risos em Artic, contagiando Ragnar e Niki, mas a assassina tentou abafar tapando a boca com suas mãos. Senhor Plissken ficou apenas olhando.

Quando o grupo recobrou a postura, Artic falou olhando para Ragnar:

— Grande líder, você tem algum plano para enfrentar o chefão dessa masmorra?

— Não tenho nada em mente. É como você falou, estamos diante de um oponente não listado, tudo atrás daquela porta é novidade. No máximo eu posso recomendar que tenham cautela e estudem cada ataque e padrão inimigo. O resto é improviso.

Fez-se silêncio. Niki sacou suas adagas e caminhou na direção da porta de ferro que os levariam à última sala do covil. Os três a acompanharam.

Ragnar tocou a superfície da porta e a empurrou para dentro, abrindo-a, revelando uma área quadrada. A fonte de luz vinha de um raio luminoso saindo de um buraco no teto do tamanho de uma bola de basquete.

Eles avançaram com cuidado. Artic liderava o grupo com seu escudo semi-erguido, pronto para bloquear no primeiro sinal de perigo. Niki e Ragnar andavam em paralelo, observando as laterais, enquanto Skiff cuidava da retaguarda.

Quando alcançaram o centro do salão, próximos de onde a luz do teto tocava no chão, um arrastar de correntes ressoou do canto mais escuro do local.

Skiff recuou e virou de um lado para o outro em busca da fonte do ruído.

— Lá! — Niki apontou para a direita.

Da penumbra na extremidade oposta, um morto-vivo humanoide de pele cinzenta se revelou, media mais de dois metros de altura e trajava uma cota de malha danificada.

A criatura não possuía expressão, sua face era uma massa de carne disforme, sem olhos, orelhas ou nariz, e com a mandíbula deslocada para a direita.

Ragnar, apesar de enojado, parou para analisar as estatísticas do chefão:

Legionário Post-Mortem

[Chefão] [Nível: 6] [Vida: 2.632/2.632]

Além da quantidade absurda de vida que o chefão possuía, Ragnar percebeu duas coisas importantes para comunicar ao time.

— A arma principal é a espada na mão direita. Tenham cuidado com a corrente enrolada no braço esquerdo, aposto todo meu dinheiro que ele irá usá-la para alguma coisa. Então, Artic e Niki, tomem cuidado no início, não partam para cima após o primeiro ataque que ele der.

O cavaleiro resmungou baixinho, Niki acenou com a cabeça.

O legionário morto-vivo soltou um alto e longo resmungo, depois mudou de postura e avançou em disparada na direção do caçador da equipe.

Skiff foi pego de surpresa, seu corpo gelou e as pernas falharam. Com terror nos olhos ele viu a criatura se aproximando para dilacerá-lo. Mas um lampejo cinza tomou seu campo de visão. Era Artic, que avançou para protegê-lo com seu escudo.

— Faça alguma coisa! — disse o cavaleiro.

Skiff cambaleou para trás, seus olhos percorreram o salão até se encontrar um altar com a estátua de uma mulher serpente, ao redor havia uma bancada presa à parede, uma mesa e cadeiras.

Uma ideia veio à mente do caçador, vinda da lembrança da briga na taverna Alce-Coice. Ele foi até a mesa do altar, derrubou-a no chão e puxou as cadeiras para formar uma mureta improvisada.

— Boa! — Ragnar disse baixinho ao ver a iniciativa do amigo. Em seguida, levantou a lança e conjurou uma Brisa Curativa no cavaleiro para recuperar o dano que sofreu ao proteger Skiff.

Lançado o feitiço de cura, o druida girou o bastão, e avisou:

— Niki, pra trás! — A assassina golpeava ferozmente o inimigo, mas ao ouvir o aviso do líder do grupo, ela parou e recuou executando uma pirueta para trás.

Com o caminho livre, Ragnar conjurou um Raio. O feitiço acertou o inimigo, atordoando-o e deixando vulnerável aos golpes subsequentes da assassina, do cavaleiro e do caçador.

O Legionário Post-Mortem estava com 1.994 dos 2.632 pontos de vida. Ele soltou um rugido de fúria tão poderoso que provocou uma onda de choque capaz de empurrar os quatro para trás.

O chefão estendeu o braço esquerdo para frente e soltou a corrente enferrujada presa no braço. Com o canto do olho, Ragnar viu a assassina se aproximar do inimigo pelas costas, porém, no meio do caminho, a criatura girou a corrente.

Niki gritou ao ser atingida pelo golpe.

— Caralho, que dano! — ela resmungou ao ver que 30% de sua vida ser arrancada de uma só vez.

Ragnar recuou para uma posição segura e curou ela com seu feitiço.

— Eu vou provocar ele — disse o cavaleiro.

Todos ficaram em posição. Artic avançou contra a criatura, ergueu o escudo e utilizou a habilidade Provocar batendo o mangual contra o escudo. Por meio minuto o Legionário Post-Mortem iria focar seus ataques nele.

Porém, uma aura vermelha irradiou do chefão. Os quatro aventureiros recuaram até à parede do salão, próxima da entrada.

 Em fúria, o morto-vivo executou uma combinação de ataques de espada. Foram seis cortes frontais, enquanto girava a corrente ao redor, mas como a arena era quadrada, os elos de ferro não alcançavam as quinas das paredes.

Niki foi atingida por dois golpes de corrente. Artic, por estar frente-a-frente com o inimigo, recebeu quatro espadadas, mas a maior parte do dano foi mitigado por seus bloqueios bem executados.

Skiff ficou inteiro graças a sua barricada improvisada, mas ela fora destruída no último giro de corrente. Ragnar conseguiu evitar os golpes recuando até a quina à esquerda da entrada por onde vieram.

 O legionário tirou uma trombeta de bronze do alforje em sua cintura, e a pôs entre seus lábios decompostos. Apesar da mandíbula deslocada, ele acumulou o ar em seus pulmões perfurados e tocou o instrumento, produzindo um ressoar que fez a arena vibrar. O Tocar da Trombeta fortaleceu em 30% seu dano e defensa.

— Estamos mortos — disse Ragnar, desesperançoso.

Skiff começou a disparar flechas o mais rápido que podia, isso acabou chamando a atenção do chefão assim que efeito do Provocar de Artic terminou.

O Legionário Post-Mortem avançou contra o caçador, o cavaleiro tentou salvá-lo mais uma vez, mas era tarde. Skiff foi atingido por uma sequência de espadadas, seus pontos de vida zeraram e seu corpo foi ao chão.

— Merda! — Ragnar praguejou.

— Desculpa, pessoal… — Skiff ainda podia se comunicar com o grupo, mesmo com seu avatar derrotado.

Como o caçador era uma das principais fontes de dano, Ragnar decidiu usar Senhor Plissken para ajudar na batalha, mas ao mandá-lo para cima, a serpente apenas virou a cara, uma mensagem surgiu, dizendo:

Ação indisponível
Lealdade insuficiente com a Rastejante Imperial

— Você está brincando comigo? — Ragnar resmungou para a serpente.

— Dois minutos para o buff do chefão terminar — Niki avisou.

— Vamos nos focar em sobreviver, ataquem apenas quando for 100% seguro.

Os dois concordaram com a proposta de Ragnar.

Durante os dois minutos seguintes, Artic distraiu o legionário, enquanto Niki o espreitava por trás com sua invisibilidade, revelando-se apenas quando ele atacava o cavaleiro.

Ragnar, entretanto, aproveitou da cautela dos dois para assumir um papel mais ofensivo, conjurando raios de longe e transformando-se em urso para engajar em combate junto à assassina.

Os dois minutos passaram, o chefão, apesar de tentar, não conseguiu tirar mais da metade da vida deles graças à tática que adotaram.

— Estou ficando sem energia — Artic avisou.

Isso indicava que ele não poderia continuar bloqueando por muito tempo, do contrário, se a energia zerasse, o próximo bloqueio seria rompido e ele ficaria vulnerável aos ataques do chefão.

— Recue, deixe eu tankar por um tempo — Ragnar sugeriu. — Vamos repetir o que fizemos na luta contra os esqueletos.

— Ok… — Artic aceitou a proposta.

Ragnar correu e desferiu uma sequência de estocadas de lança contra o peito do legionário, isso o fez mudar de postura e girar a corrente na vertical.

— Cuidado! — Ragnar tentou alertar que ainda não era seguro.

Mas a corrente foi lançada para frente, contra o cavaleiro. O druida tentou atingir a corrente arremessando sua lança contra ela, mas errou por centímetros. Segundos depois, ouviu-se o baque da lança se chocando contra a parede, seguido pelo ruído das correntes se prendendo ao corpo de Artic.

O legionário Post-Mortem grunhiu e puxou a corrente. O cavaleiro tombou para frente. O chefão se preparou para um segundo puxão e, pelo que parecia, este seria mais forte que o primeiro.

Ragnar percebeu que, se ninguém fizesse nada, o amigo seria puxado até os pés do legionário, possivelmente tomando um golpe fatal em seguida. Mas Ragnar estava sem a lança, não havia tempo para ir buscá-la.

Então, toda essa preocupação evaporou quando Niki surgiu em sua frente, saindo da invisibilidade em um salto na direção do chefão. Ela empunhou suas adagas e cravou-as no braço estendido do oponente.

— Acerto crítico. É isso aí! Toma essa, monstro filho de uma puta dos infernos! — ela rugiu em satisfação.

A criatura também rugiu, mas de dor. O acerto crítico da assassina soltou as correntes do braço do inimigo.

— Niki, eu te amo — Artic agradeceu, livre das amarras.

— Você me deve a vida — ela disse com um sorriso no rosto.

Mas a distração de Niki fez ela não perceber o contra-ataque que o chefão havia preparado. Ragnar avançou na forma de urso e se jogou contra ela. Niki cambaleou para a esquerda, saindo da trajetória da espada, mas o golpe ainda encontrou uma vítima. A lâmina perfurou o peito de Ragnar.

Ele sentiu uma pontada no local atingido, mesmo estando na forma de urso. Com preocupação viu seus pontos de vida despencarem, forma quase 100 pontos de dano em um golpe.

Isso o fez perceber que, tanto ele, quanto Skiff, estavam muito fracos para uma batalha dessa magnitude e, se eles vencessem, ficaria em dívida com os companheiros ainda em pé no campo de batalha.

Mas como o legionário estava sem suas correntes, a batalha ficou mais fácil. Ele não apresentava tanta ameaça sem a arma secundária, pois os golpes de espada eram previsíveis e fáceis de bloquear.

Os três continuaram lutando até o Legionário Post-Mortem ficar de joelhos, imóvel e com menos de dez pontos de vida.

Ragnar, Artic e Niki olharam um para o outro.

— Eu voto para nossa MvP dar o golpe final — o druida falou olhando para a assassina.

— Tanto faz. — Artic deu de ombros.

Niki caminhou até ficar em frente ao chefão. Ela ergueu uma adaga e a cravou na testa desfigurada do Legionário Post-Mortem.

Uma mensagem apareceu para os três.

Legionário Post-Mortem derrotado

E uma para Ragnar.

Você evoluiu para o nível 6

Artic bateu com o escudo no chão e começou a resmungar:

— Só isso? A gente recebeu só 75 pontos de experiência por derrotar esse monstro? Eu esperava no mínimo uns 200.

— Para de reclamar — disse Niki.

— Isso foi uma perda de teee…

O chão tremeu a ponto de derrubá-los no chão. Niki, que havia se agarrado na perna do chefão derrotado, gritou:

— Que merda é essa?

Ragnar correu o olhou pelo salão e viu uma passagem se abrir na parede.

— Lá! — gritou apontando para o lugar descoberto. — Uma passagem secreta.

O tremor cessou assim que a parede parou de mover. Ragnar se apoiou na lança para se levantar e, como Artic estava mais próximo, o ajudou a ficar em pé, mas isso provocou um comentário daquela que foi deixada no chão:

— O cavalheirismo morreu mesmo.

Ragnar e Artic foram até Niki e a puxaram segurando cada um uma mão dela. Os olhos de Niki e Ragnar se encontraram.

— Não olha assim pra mim não — o druida falou dando um tapa no ombro do colega ao lado. — Ele que é o cavaleiro.

Com a situação sob controle, viraram-se para a passagem secreta. Nada se via além da escuridão.

— Aaah! — Niki soltou um grito e apontou para a silhueta de algo saindo de lá. — É uma mulher! — disse bem alto. — Uma mulher-cobra? — completou quando a figura foi iluminada pelo feixe de luz que vinha da abertura no teto.

— Para trás. — Artic colocou-se em posição de combate.

— Ela é minha — A assassina sacou suas adagas e girou-as nas mãos para mostrar sua habilidade à criatura.

— Relaxem — Ragnar falou aos colegas. — Ela não é uma inimiga.



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