Volume 1
Capítulo 52: Por Trás da Espada
Naiara Schmidt aproveitou os últimos minutos do expediente para conferir as prateleiras do supermercado em que trabalhava. Com a mão esquerda na cintura e a direita próxima aos lábios, procurou nas prateleiras por erros de reposição.
— Uhum, uhum — murmurava conforme avançava.
— Tudo certo por aqui — dizia ao concluir uma seção.
— Ahá! — exaltava-se quando encontrava algum erro.
Dessa vez o erro estava no freezer dos sorvetes. Os Potes e os picolés foram repostos nos locais incorretos. O difícil era encontrar um produto próximo à etiqueta correta.
Para sorte de Naiara ainda não eram seis horas da tarde, pois nesse horário os estudantes da universidade iriam inundar o lugar, e era seu trabalho como supervisora garantir que todos os produtos estivessem em seu devido lugar.
Com medo da hora-extra não remunerada, caminhou à passos rápidos pelos corredores do supermercado. O cabelo loiro, comprido e amarrado balançava a passo, a cada virada brusca de cabeça. Os olhos castanhos escuros rastrearam o recinto como os de um predador atrás de sua presa, nesse caso Jessé, o recém-contratado.
Naiara se aproximou da última prateleira de bebidas, então ouviu o rangido agudo de um carrinho de carga puxado por alguém motivado com a chegada do fim de semana.
O ruído ganhou volume, Naiara se escorou na prateleira, ficando de costas para a direção de onde vinha o ruído. Segundos depois, um borrão vermelho passou pelo corredor. Ela esticou os braços, agarrou a lateral do carrinho e o freou com um puxão.
O corpo pequeno de Jessé travou, e sem parar para olhar o que havia acontecido, forçou o carrinho com um puxão da mão direita.
O corpo de Naiara foi impulsionado para frente. Um tanto irritada, colocou a outra mão no carrinho e o puxou para si. Jessé a encarou, os olhos arregalados denunciavam surpresa.
— Jessé, o freezer tá uma bagunça, você poderia organizar pra mim? — Optou por não confrontar o recém-contratado.
— Mas já está quase na hora de ir embora.
— O nosso expediente termina às 18h, mas a gente só vai pra casa quando tudo estiver organizado, ou você prefere levar uma bronca na segunda-feira por que o gerente viu a bagunça que você fez no sorvete?
O garoto expirou seu desânimo para fora.
— Tá, eu arrumo — Jessé disse dando um puxão no carrinho de carga.
— Deixa, eu guardo o carrinho pra você.
O jovem agradeceu, virou-se e foi em direção ao freezer. Naiara esperou um momento, pois precisava se certificar de que o garoto iria mesmo arrumar a bagunça que fizera. E quando o viu abrir o freezer, respirou fundo. Esperava do fundo do coração que a partir daquele momento ele começasse a levar o trabalho mais a sério.
Com o problema solucionado, puxou o celular do bolso da lança jeans e conferiu o horário: eram 18h03m, enfim poderia ir para casa jogar. Antes de guardar o aparelho, contemplou o plano de fundo que adicionara um dia antes: um espadachim de cabelo e traje branco como a neve, exibindo suas duas espadas.
No canto direito da imagem, seu nome talhado no alfabeto coreano brilhava de cima para baixo. Enquanto no canto inferior, da esquerda para direita, lia-se: White Snow, o duelista lendário.
Contemplar o avatar de Lee Chung-Hee a motivava até nos dias mais desanimadores.
Então caminhou em direção à salinha dos funcionários, localizada à direita da fila dos caixas. Espiando o lado de fora do supermercado, do outro lado da rua, as turmas vespertinas desciam as escadas da Universidade Regional de Blumenau após um longo dia de estudos e/ou baderna.
— Nai, espera! — Uma voz masculina e um tanto grave ressoou à sua direita.
E acabou deparando-se com Carlos, um outro supervisor. Como costumava fazer, manteve uma postura educada em frente a ele. O rapaz de 23 anos tinha mais de um metro e noventa de altura e exibia um corpo em forma graças as idas diárias à academia.
Ele sorriu e alisou o cabelo preto, curto e penteado para trás.
— Então…, Nai, vai fazer algo hoje à noite?
— Combinei de jogar com uns amigos nesse fim de semana.
— Ah, bacana… — A decepção transparecia no rosto dele. — E se semana que vem a gente combinasse de fazer alguma coisa depois do trabalho? Tipo um bar, um cinema…
Pelo menos não está me convidando para ir na academia com ele, pensou.
— Obrigada, mas… agora é meio complicado pra mim.
O sorriso confiante se desmanchou. Carlos se esforçou para manter a postura, mas foi incapaz de mascarar o tom frio em sua voz ao dizer:
— Tá, entendi. Boa noite. — E foi embora.
Essa não era a primeira vez que ele a convidava para sair. Apesar de ser bonitão, inteligente e gente boa na maior parte do tempo, Naiara não nutria interesses pelo rapaz que meses atrás menosprezou sua falta de ambição na vida e seu passatempo favorito, Nova Avalon Online.
“Você precisa curtir mais a vida e parar um pouco com os joguinhos”, dissera em um de superioridade, como se fosse um exemplo a ser seguido. Relembrar o momento deixou-a para baixo em plena sexta-feira.
Naiara foi até a salinha dos funcionários e parou diante do guarda-volumes para retirar sua mochila. Em seguida, passou pelos caixas, despediu-se dos colegas e saiu do supermercado.
Quando pôs os pés na calçada, a lembrança desagradável foi embora e a empolgação de poder chegar em casa e jogar voltou a alegrá-la.
“Foda-se o que ele pensa.”, disse a si mesma, pondo-se a caminhar.
As ruas abarrotadas chamaram sua atenção com a quantidade de carros caríssimos transitando. Olhou de volta para o mercado e pensou: o dono deve ter um carro desses, com toda certeza. Deixou o pensamento para trás e seguiu em frente.
Após cruzar a rua e percorrer um breve trecho da calçada, passou pelo ponto de ônibus em frente à universidade e não se espantou com o formigueiro de gente que era esse lugar a essa hora. Sempre que passava por ali, lembranças antigas voltavam para a atormentar.
Na época do ensino médio, quase todos em sua turma estavam preocupadíssimos com o que iriam fazer após se formarem, portanto, estudavam como desesperados para passar nos vestibulares mais concorridos. Muitos conseguiram vaga na federal do estado, a UFSC, enquanto outros, optaram pela FURB, a instituição logo a sua esquerda.
Sentiu-se culpada por não ter as mesmas ambições dos colegas, por uma fração de minuto quis voltar no tempo, mas no fundo sabia que não iria adiantar. Essa sensação de culpa se prolongou, sendo esquecida apenas quando virou uma esquina e chegou na rua em que morava, àquela altura, a empolgação de entrar no jogo e esquecer seus problemas a dominara por completo.
Enfim estava em casa.
— Jé, cheguei — anunciou, tirando os tênis.
— Ok. — A resposta veio abafada.
Naiara ouviu o ranger da porta do banheiro, seguido pelos baques secos, altos e ritmados do familiar salto alto da colega de quarto.
Com o par de tênis na mão direita e as meias suadas na esquerda, Naiara foi até o corredor desmobiliado, passou pela cozinha e largou o par de meias fedidas no cesto de roupas sujas.
Quando virou se para ir até o quarto, deslumbrou-se com a visão de Jéssica parada no batente da porta da cozinha.
A colega de quarto usava um vestido curto, colado ao corpo esbelto e preto como seu longo e impecável cabelo ondulado.
— Tô indo com o Alan para uma festinha na casa da Geórgia. Seria muito legal se você fosse também. A Gê iria adorar te ver novamente. — Finalizou enquanto ajeitava o brinco da orelha direita.
Naiara fez que não com a mão direita, e a amiga respondeu com a esperada decepção:
— Você que sabe, amiga…
O celular em cima da mesa tocou e vibrou com a força e o barulho de uma britadeira, a intensidade era tamanha que se deslocou alguns centímetros a cada toque. Jéssica se apressou e pegou o aparelho, então disse sem olhar para a colega de quarto:
— O Alan tá me esperando lá embaixo. — E olhou nos olhos de Naiara. — Você não quer mesmo ir?
— Não, mas obrigada por convidar.
Jéssica abraçou a amiga com força.
— Vai jogar a noite inteira, né?
— Até amanhecer.
Jéssica a segurou pelos ombros e disse com um sorriso genuíno.
— Então, divirta-se, tá bom? Tomara que… é… você mate muitos monstros e conquiste muitos castelos.
O comentário fez Naiara gargalhar em pensamento, pois amava como a amiga se esforçava em tentar demonstrar interesse por seu jogo favorito, mas a verdade era que ambas viviam em mundos diferentes, e elas amavam a outra por isso.
Jéssica já estava no décimo e último semestre do curso de direito da FURB, foi aprovada no exame da OAB, estagiava em um escritório de credibilidade no centro da cidade e vivia a vida ao máximo.
Naiara sabia que não demoraria para a amiga se mudar daquele apartamento apertado. Pensando nisso, abraçou a amiga, beijou-a na bochecha, e disse no ouvido dela:
— Divirta-se; se cuide; e não exagere na bebida, você é linda demais pra ficar dando bobeira por aí.
Elas desfizeram o abraço, se despediram, e o apartamento ficou todo para Naiara.
A primeira coisa a se fazer era tomar um banho e trocar de roupa. Na sequência preparou seu jantar: um prato de espaguete com bolinhos de carne e uma porção de cenoura ralada com repolho.
Em seguida lavou a louça, depois foi à sacada do apartamento tomar um ar fresco e mexer no celular enquanto a comida descia. Sentindo-se mais leve, foi ao banheiro escovar os dentes, mas ao abrir a porta, deparou-se com a pia suja e desorganizada.
— Jéssica… — disse em um tom pesaroso e temperado de indignação.
A amiga largou suas maquiagens e quinquilharias em cima da superfície amadeirada do gabinete. Naiara observou mais de perto e notou como tudo estava molhado.
— Tomou banho na pia por acaso? — soou um tanto mais indignada.
Para cada pertence seu no gabinete, Jéssica tinha três. Era assustador como ela conseguia se empenhar tanto em se arrumar.
Não dá, eu não consigo ficar brava com aquela porquinha, admitiu em pensamento e começou a organizar a bagunça. No meio da limpeza lembrou-se uma música que adorava e começou a assoviá-la baixinho.
Terminado o serviço, sentiu-se bem consigo mesma e escovou os dentes e finalizou passando o fio dental. Agora, com tudo em ordem, se permitiu ir para o quarto.
O visor de realidade virtual estava em cima da mesinha. O aparelho era um dos modelos mais antigos a ainda suportar o jogo, porém, não contava com uma série de pequenas melhorias que facilitavam a vida do jogador.
Por exemplo: o sensor neural desse modelo exigia comandos mentais mais preciso do jogador, mas após anos de uso, Naiara o dominou por completo, raríssimas vezes teve problemas em executas os comandos desejados.
Ao lado do visor, uma pilha de revistas e livros impressos sobre Ambição Real pegavam poeira. Olhar para aquilo era vislumbrar o passado, uma época em que era obcecada pelo jogo de Realidade Virtual mais famoso antes da estreia explosiva de Nova Avalon.
Foram milhares de horas dentro daquele mundo fantástico. Nunca iria esquecer do quão perto esteve de alcançar o top 100. Ela afastou essas lembranças da mente e agarrou o visor de realidade virtual. O mundo agora era outro, o rei antigo foi destronado por um tirano tão realista quanto a própria realidade.
Conformada em deixar o passado para trás, sentou-se na cadeira gamer, ajustou o visor na cabeça e entrou no jogo.
Abrindo os olhos deparou-se com a praça do vilarejo e também uma nova mensagem.
Você foi convidada para fazer parte da guilda Ragnarok
[Aceitar] [Recusar]
— Ragnarok? Ragnar… rock! Só podia ser ele mesmo…
E optou pelo aceite do convite, o que fez uma outra mensagem aparecer:
Havoc, A guilda está criada! E aí, gostou do nome? Eu amei, muito bom, né? A primeira reunião acontecerá às 21h dessa sexta-feira. Local: Santuário Urso de Ferro (coordenadas em anexo) Estou te esperando… |
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— E lá vamos nós.
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