O Druida Lendário Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 42: Mikken

Nas profundezas da cripta do necromante, Ragnar gelou com o reverberar dos ruídos advindos da escadaria. Com uma olhada rápida em seus medidores, desesperou-se ao ver sua reserva de mana abaixo de 20%.

Maldito Fogo Fátuo, reclamou em pensamentos. Mas não havia o que ser feito, restava-lhe apenas se preparar para enfrentar o que quer que estivesse se aproximando.

Os ruídos intermitentes transformaram-se em baques. Por um momento jurou ter ouvido um lamento, seguido de um choro animal. Os baques ganharam força, e ele não vacilou. Com a lança em punhos, colocou-se ao lado da escadaria, colando-se à parede, esperando a ameaça chegar.

Um vulto preto surgiu da entrada e voou em direção à passagem depredada da antessala, porém, acabou colidindo com a parede. O vulto na verdade era uma bola de pelos castanhos.

Ragnar se aproximou apontando a lança contra o intruso. A luz do fogo fátuo revelou a criatura que chorava, um filhote de urso pardo.

— O que você faz aqui, pequenino?

O filhote de urso virado de barriga para cima se remexeu para se colocar em pé, mas havia algo estranho em seus movimentos, ele não movia a pata frontal direita.

Não é por menos, o coitado desceu rolando a escadaria, pensou Ragnar. Em um instinto solidário, afastou a lança do animal e se agachou perto dele, então estendeu a mão esquerda e conjurou seu feitiço de cura.

Ele pode ser um intruso, mas é fofinho demais para sofrer.

O ursinho parou de choramingar. Seus olhos grandes e pretos vislumbraram o druida como se fosse seu novo melhor amigo. Aquela boca semiaberta, sorridente; e aqueles olhos castanhos arregalados derreteram o coração de Ragnar.

— Meu nome é Mikken, sou filho de Hardgart, o chefe dos ursos pardos — Ragnar ouviu-o dizer.

Ótimo, ele me poupou trabalho se apresentando desse jeito.

— Prazer em conhecê-lo, pequeno Mikken. Meu nome é Ragnar, eu sou o druida herdeiro de Bjorn.

— Um druida? Uau, mas que incrível. Eu nunca vi um de vocês antes, sabia? Eu só conheço os druidas das histórias que meus pais e meus amigos contam.

Ele gosta de falar…, pensou, logo perguntando:

— Você está bem?

Mikken afirmou balançando a cabeça com muita energia. Depois se colocou em pé, mas em três patas. Foi nesse momento que Ragnar percebeu que a pata frontal direita dele continuava contraída na mesma posição.

Estranho, usei toda minha mana restante para curá-lo.

— Mikken, o que houve com sua pata direita?

— Eu machuquei ela quando era pequeno.

— Você ainda é pequeno, Mikken.

Ele deu risadas de seu comentário.

— Você é muito engraçado, Ragnar.

Está bem, me rendo, eu preciso adotar ele a qualquer custo.

Ragnar se pôs a pensar. O ursinho manco em sua frente era filho de Hardgart, o líder dos ursos pardos do Refúgio. Portanto, se estreitasse seus laços com o filhote, haveria a chance de projetar sua imagem às espécies que desgostam dos ursos de ferro.

— Onde está o seu pai agora, Mikken?

— Meu pai passa o dia todo nos protegendo. Ele é o guardião da entrada do santuário.

Ótimo, o líder dos ursos pardos é justamente aquele que me detesta.

— E o que você acha dos ursos de ferro? — Quis muito saber.

— São todos feios e idiotas, odeio muito todos eles, principalmente o Torfeio.

— O Torvell? — Ragnar precisava ter certeza.

— Ele mesmo. O Torfeio passa o dia inteiro comendo, dormindo e mandando nos outros. Meu pai sempre fala que os ursos de ferro são mimados, que muito tempo atrás um druida deu muito poder pra eles, mas que hoje em dia eles não usam isso pra nada.

Errado ele não está.

Ragnar caminhou até a passagem depredada e o pequeno urso o acompanhou mancando. O problema entre os ursos do santuário era algo sério, disso não tinha dúvida, mas achou que seria melhor priorizar primeiro a investigação da cripta.

Eles se esgueiraram pelo buraco separando os cômodos e adentraram na sala principal da cripta. A luz do Fogo Fátuo iluminou os arredores, revelando um túmulo aberto e violado no centro.

— O que é isso? — perguntou o pequeno urso.

— Não tenho certeza.

Ragnar espiou o interior do túmulo com a ajuda da luz emanando da lança. O buraco era fundo, com mais de cinco metros de profundidade.

Em seguida voltou seu olhar para um dos cantos da cripta e se deparou com o montante de terra escavada. Pela angulação dos vestígios de terra, a escavação foi realizada em sentido oposto à entrada da sala principal.

O suspeito não estava blefando, pensou, frustrado por não haverem mais pistas do ocorrido. Decidiu que era melhor relatar a descoberta a Bjorn, pois havia a chance de ele saber de algo que pudesse ajudar.

O druida e o filhote de urso voltaram à antessala.

Talvez haja alguma pista nesses escombros, refletiu com os olhos voltados à brecha na parede entre as salas.

O buraco tinha por volta de dois metros e meio de altura por dois de largura, grande o bastante para uma pessoa ou criatura passar. O segundo objeto de análise foram os escombros. Ragnar começou a juntar os fragmentos como um quebra-cabeça.

Curioso e tagarela como era, Mikken perguntou:

— O que você está fazendo?

— Tentando entender o que aconteceu aqui. — Ragnar parou para coçar a bochecha. — A propósito, por que você está aqui? Esse lugar é muito longe do interior do Refúgio. E eu duvido muito que seu pai tenha lhe dado permissão para vagar pelo bosque.

Ele começou a rir.

— Ué… Eu vi um homem estranho indo pra floresta. E como eu nunca vi você antes, fiquei curioso e decidi segui-lo.

Seguir o meu rastro? O pequeno pode não conseguir andar direito, mas conseguiu seguir o meu rastro como ninguém.

A atenção de Ragnar dividia-se entre a montagem do quebra-cabeça, o filhote ao seu lado e a cisma entre os ursos do santuário. Era muita coisa para tentar resolver de uma vez só, por isso se esforçou em resolver primeiro o quebra-cabeça.

Desde então o pequeno urso ficou calado, de olhos bem abertos, apenas observando o druida trabalhar.

O pequeno é um filhote perfeito, pensou Ragnar quando concluiu o quebra-cabeça. Os 34 fragmentos de pedra foram reorganizados no chão da cripta. O formato era proporcional à ruptura na parede entre as salas.

No centro do quebra-cabeça estava o motivo da necessidade da forma de aranha para acessar a câmara principal, um grande disco com oito buracos da largura de um copo. Ele se abaixou e, com a ajuda do Fogo Fátuo, olhou para o interior do buraco inferior esquerdo,

— Não se assuste, está bem? — Ragnar falou olhando por trás do ombro.

O pequeno urso pendeu a cabeça para o lado, sem entender. E, quando Ragnar se metamorfoseou em aranha, Mikken correu assustado para o canto direito da antessala.

— Sou eu, fique calmo — tentou tranquilizar, mas o filhote continuou tremendo de medo.

Ragnar voltou a analisar o quebra cabeça de pedras que havia montado. Primeiro inseriu a pata frontal direita no buraco superior direito, a pata desceu com folga até encostar no fundo. Ragnar hesitou, reuniu coragem e pressionou o buraco na esperança de que algo acontecesse.

E aconteceu.

Foi como pressionar um botão, o fundo do orifício cedeu alguns milímetros até parar de vez, Ragnar aplicou mais força, mas em vão, e um estalo reverberou pela cripta.

Segundos depois, o fragmento do quebra-cabeça onde colocou a pata se partiu em uma dúzia de pedaços.

Fiz merda!

Ele sentiu o corpo gelar. Com uma olhada rápida avistou uma parte do mecanismo de trava presente nos fragmentos.

Alguém quebrou isso daqui antes de mim, pensou e se afastou, voltando à forma humana.

— Pronto, meu amiguinho peludo, minha investigação preliminar está concluída, agora preciso me consultar com um espírito muito louco.

— Eba! — O ursinho se levantou nas patas traseiras. — Posso ir junto?

— Claro.

Mas havia um problema, como o pequeno urso manco subiria as escadas de volta à superfície? Sem qualquer tipo de ajuda ele levaria uma eternidade. Ragnar buscou maneiras de tentar contornar a situação. Com uma olhada rápida percebeu que, talvez, a passagem fosse larga o bastante para subir em forma de urso.

As bolsas de couro de Megalotauro, é claro, mas… talvez ele passe a me odiar se eu revelar que posso me transformar em urso de ferro.

— Mikken — falou sem olhar para o pequeno.

— O que foi?

— Preciso te contar uma coisa.

— Então fala.

— Eu posso me transformar em urso.

O filhote correu até sua frente.

— Então nós podemos brincar juntos.

— Eu posso me transformar em urso de ferro — concluiu.

— Não tem problema.

— Não?

— Esqueceu que eu disse que os de ferro “daqui“ são idiotas? Então…, você é legal. Eu não me importo se você pode se transformar em um urso parecido com eles.

— Você é mais maduro que muita gente que eu conheço, sabia?

Ele o olhou com um cara confusa. Ragnar pediu para o pequeno se afastar alguns passos. Então se metamorfoseou em sua forma lendária.

— Você é gigaaaaaaaaante — disse Mikken.

Ragnar se abaixou até a barriga encostar no chão da cripta, as bolsas de couro estavam presas como no dia do assalto à fortaleza.

— Entre em uma delas, eu te levarei para cima.

— Ebaaaaaaaaa.

Mikken comemorou e avançou para a bolsa mais próxima da cabeça de Ragnar, entrando nela de cabeça. Após muito se remexer, conseguiu se ajustar de forma confortável, colocando a cabeça para fora.

— Pronto? — Ragnar perguntou.

— Pronto — confirmou o pequeno.

— Então vamos para o Círculo de Convergência Natural.

A escuridão da cripta era absoluta sem a luz do Fogo Fátuo, mas não a ponto de impedir Ragnar de galgar os degraus em sua forma de urso.

Mikken não parava de rir conforme subiam. Lá em cima, a mais de cinquenta metros de altura, um brilho luminoso despontava da escuridão. E não tardou para alcançarem a luz do dia.

— Quer continuar dentro da bolsa?

— Sim! — o ursinho respondeu com empolgação.

— Então se prepare.

— Hã? Por quê?

Ragnar saltou para frente e disparou em direção ao interior do refúgio. Toda essa pressa cobrou o devido preço. Ele chegou exausto, com a reserva de energia quase esgotada.

O pequeno urso saiu de dentro da bolsa quando Ragnar se abaixou na beirada do Círculo de Convergência Natural. Logo em seguida o druida voltou a forma humana e se abaixou para fazer carinho no pequeno urso.

— Agora irei meditar, se puder não fazer barulho, eu agradeceria, tudo bem?

Mikken balançou a cabeça em afirmação.

— Bom garoto — disse levantando-se para ir ao centro do círculo.

Lá ele sentou no chão de pedra e contemplou os arredores por um momento. Os grandes pilares de pedras cobertos de plantas trepadeiras sempre o fazia imaginar como eram os dias de glória do santuário.

Respirou fundo e se concentrou como sempre fazia, então abriu os olhos. Em sua frente estava o primeiro druida de ferro.

— Bela roupa — disse a ele.

Bjorn estava a alguns passos em sua frente, também sentado com as pernas cruzadas, mas de olhos fechados.

— Um druida deve viver em sintonia com a natureza que o cerca — proferiu ao seu levantar.

O vestido rosado vestido por Bjorn se desdobrou com o movimento, revelando todo seu esplendor. As bordas brancas e o acabamento avermelhado realçavam o tecido repleto de gravuras bordadas representando uma miríade de animais diferentes.

— Então, que frutos renderam sua investigação? — o espírito falou após abrir os olhos.

— Ao que tudo indica, o integrante da seita não estava blefando. A cripta foi violada. O corpo de Mergraff não está mais lá.

— Não pode ser. — Bjorn levou a mão direita ao rosto. — Os ursos de ferro… eles deveriam ser os guardiões da cripta. Isso… isso é… inadmissível.

Ragnar estacou, confuso. Era a primeira vez que o via tão abalado.

— Como assim? O que você está querendo dizer?

— Ragnar. Proteger aquela cripta é o dever sagrado dos ursos de ferro. Eu mesmo os incumbi dessa tarefa quando derrotamos o rei dos necromantes. É impossível que o corpo tenha sido removido sem o conhecimento deles.

Parando para alisar, o santuário era muitíssimo bem protegido pelos paredões rochosos e pelo bosque denso que o cercava tanto por fora quanto por dentro. Não havia como uma seita entrar no santuário e violar cripta sem que os ursos tivessem ciência do ato.

— Devo inquirir Torvell? — Ragnar perguntou.

— Sim, ele é o regente deste santuário. — Bjorn olhou para o céu e refletiu sobre a situação. — Fique atento. Não se deixe enganar, se este santuário foi violado, há grandes chances de ele tentar esconder sua cumplicidade.

Ragnar assentiu.

— Pode deixar, mestre.


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