O Druida Lendário Brasileira

Autor(a): Raphael Fiamoncini


Volume 1

Capítulo 13: Fracasso Iminente

Ragnar mal conseguia acreditar que estava dentro de uma versão passada do Refúgio dos Ursos de Ferro. Experiências daquele tipo eram raras, Nova Avalon era um mundo envolto em mistérios, ainda mais sobre o passado.

Se existe uma Nova Avalon, então já existiu uma Velha Avalon, Ragnar repetiu em sua cabeça uma das maiores piadas dentro da comunidade do jogo.

Bjorn estava em sua frente, sentado com as pernas cruzadas sobre o piso da arena, meditando de olhos fechado. Seus olhos se abriram, e ele falou com uma voz serena:

— Sinto que você quer me perguntar algo, vá em frente.

— O que você sabre sobre o passado de Avalon?

— O mesmo que você, muito pouco. A origem de Avalon e seus reinos é um mistério que nem os espíritos de três séculos atrás tem conhecimento.

— E os espíritos de mil anos atrás? — Ragnar perguntou.

— Eles são frágeis e quase impossíveis de serem encontrados. Lembre-se, espíritos se desprendem do nosso mundo com o passar dos anos. Mas para a sua sorte, eu creio ter ainda uns dois séculos pela frente.

Ragnar agradeceu, mas sua curiosidade ainda não foi saciada.

— Qual é o próximo teste?

Bjorn levantou apoiando-se em seu cajado.

— Nós vamos testar sua transformação animal. Então… espero que tenha treinado bastante, pois eu sei como é difícil se habituar a corpos tão diferentes do nosso. — Ele fez uma breve pausa: — Podemos começar a terceira prova?

Ragnar confirmou acenando com a cabeça. Como de costume, cada um foi para um canto da arena. Antes de começar, Bjorn falou:

— Durante esta prova você não poderá voltar a forma humana, de resto, vale tudo.

— Entendido.

— Valendo! — anunciou o espírito, transformando-se em um grande urso de ferro de pelo vermelho, tão grande quanto Torvell.

Ele disparou, ganhou embalo, e saltou com a pata direta erguida para descê-la em um golpe fulminante contra seu alvo. Porém, Ragnar se transformou, não em urso, mas em serpente.

A pata do urso vermelho chocou-se contra o chão da arena, Ragnar aproveitou e se enroscou nela, depois serpenteou subindo no corpo de Bjorn até se enrolar no pescoço dele. Então aplicou força por todo seu corpo, torcendo a si próprio, se tensionando ao máximo em um aperto mortal contra a garganta do urso.

O golpe fatal foi dado, o dano absurdo que tirou 10% de vida subiu no campo de visão do druida, deixando-o em êxtase.

Mas Bjorn não planejava ficar parado sem fazer nada. Ele se ergueu nas duas patas traseiras, bateu a pata direita em seu peito e conseguiu rugir apesar do aperto da serpente.

Espinhos de ferro se projetaram pelo seu corpo, dois atingiram Ragnar, um perfurou a cauda, o outro raspou na lateral direita da sua cabeça.

Para seu alívio o estrago não foi grande a ponto de preocupá-lo, mesmo assim, os espinhos o fizeram cair de cima do urso vermelho.

Ragnar estava vulnerável, espatifado no chão e com uma criatura enorme se impondo em pé, prestes a atacá-lo.

Trinta segundos passaram desde que virou serpente, a transformação animal saiu do tempo de recarga. E quando Bjorn se lançou para frente, foi surpreendido, pois a cobra se transformou em um urso preto que, mesmo não sendo tão grande como ele, ainda possuía massa corporal suficiente para interromper o ataque.

Ragnar ativou a única magia que poderia conjurar na forma animal: a Ira da Tempestade. Com o aumento de agilidade e os golpes fortalecidos com dano elétrico, ele se lançou contra o oponente.

Os dois se chocaram. Pelos vermelhos e pretos se emaranharam. Em pé eles tentaram ferir o outro. Ragnar conseguiu cravar suas presas no pescoço do urso de ferro, porém, logo sentiu algo rasgando seu flanco esquerdo, partindo de cima para baixo.

Ambos largaram do outro e recuaram. Ragnar olhou para o rasgão sofrido, aquelas eram as marcas das garras de ferro do urso vermelho. Desta vez saiu perdendo, mesmo mordendo um ponto vital do inimigo e estado sob o efeito da Ira da Tempestade, o dano sofrido foi maior por conta da diferença de nível entre os dois.

Ele percebeu que a chave para a vitória residia na utilização inteligente da forma de serpente, pois no embate urso contra urso, a vantagem pendia para Bjorn. Sabendo disso, Ragnar alterou a tática de combate.

A forma de urso, por ser mais resistente, passou a ser invocada para conter as investidas do adversário. A forma de serpente, por outro lado, foi utilizada como um contra-ataque, visando surpreender para conseguir se enrolar em algum ponto fraco do adversário, de preferência o pescoço, onde o dano do Aperto Mortal seria crítico.

O duelo prosseguiu com Ragnar abusando da nova tática. A cada troca de ataques ele alternava entre as duas transformações. Houve momentos que Bjorn ativou a habilidade que fazia brotar espinhos de ferro pelo seu corpo, mas Ragnar escapou todas as vezes, pois passou a largar do urso após executar o Aperto Mortal.

O urso vermelho ficou com 1 ponto de vida, o druida havia passado no teste. A duração dessa fase foi de 38 minutos. Agora restavam 28 para cumprir a quarta e última etapa das provações.

— Muito, muito bom — disse Bjorn. — Essa é a verdadeira força de um druida.

Apesar dos elogios recebidos, Ragnar estava preocupado com o tempo que ainda lhe restava, pois tinha certeza que a última provação seria a mais difícil de todas.

Das três fases concluídas, apenas a primeira terminou em menos de 28, enquanto isso, a mais demorada, a segunda, demorou 92 minutos.

Bjorn metamorfoseou de volta em humano, e caminhou até o centro da arena.

— Chegamos na última fase. E como já deve imaginar, ela terá um pouco de cada uma das provações anteriores.

Ele bateu o cajado no chão. A metade esquerda do corpo foi envolvida pela aura azulada que absorvia dano mágico; já seu lado direito foi coberto pela aura alaranjada, que absorvia dano físico.

Ragnar ficou apreensivo, em parte estava aliviado por seu oponente possuir uma área do corpo exposta a dano físico, por outro lado, isso iria demandar uma precisão ainda maior em seus ataques.

E o tempo: 28 minutos restantes.

Mal sabia ele que Bjorn não tinha terminado, o cajado bateu mais uma vez contra a madeira do chão, as auras começaram a girar por seu corpo, mantendo-se separadas no eixo vertical.

Como cada aura cobria metade do corpo, um giro delas demorava cerca de seis segundos para fazer a volta completa em Bjorn. Aquela não era uma velocidade rápida, mas também não era lenta, aquilo soava como algo projetado para desafiar a precisão e a capacidade de previsão do oponente.

Ragnar respirou fundo, já sabendo que precisaria estar 100% focado para conseguir passar em menos de 28 minutos. Como era costume, Ragnar esperou Bjorn listar as regras e as especificidades da fase, mas o que ele disse foi:

— Agora vale tudo, mostre do que você é capaz, pois eu também vou.

No proferir da última sílaba, os pés e os punhos de Bjorn foram tomados por chamas vermelhas. E ele saltou, ergueu o cajado em pleno ar e desceu em altíssima velocidade.

A arena tremeu. Tábuas da madeira foram estraçalhadas com a força do impacto, lançando lascas para todos os cantos. Mas Ragnar estava atrás de Bjorn, seu corpo irradiava descargas elétricas.

Fogo e raio digladiaram. Fortalecido pela agilidade aumentada, Ragnar desferiu sua lança sem piedade contra a área do corpo de Bjorn onde cintilava a aura azul. Em seguida, tomou distância para se safar do contra-ataque do oponente, focando-se apenas na conjuração de Raios contra a aura laranja.

Bjorn atacava em fúria, mas acabou sofrendo a terceira marca de Choque, Ragnar moveu sua lança e conjurou o quarto feitiço. A descarga elétrica atingiu a face do adversário, e um relâmpago desceu dos céus, atordoando-o.

Ragnar avançou em forma de urso, reativando a Ira da Tempestade. Uma chuva de patadas caiu sobre Bjorn. Quando o efeito do atordoamento estava para acabar, Ragnar mordeu o adversário, conjurou raízes para prendê-lo no chão e então se afastou para recuperar um pouco de mana e energia.

— Você é um monstro em combate — Bjorn admitiu. — Mas eu também sou.

Então se transformou no grande urso de ferro de pelos vermelhos, mas diferente de antes, chamas emanavam por todo seu corpo. Chegar perto dele era um convite para se queimar. Por causa disso, transformar-se em serpente estava fora de questão.

Ragnar estava focado, pensando em maneiras de causar dano sem se queimar. A lança seria eficaz se abusasse do alcance dela. Feitiços também eram uma opção viável, apesar de estarem limitados à mana disponível, que já não era muita.

Ele voltou sua atenção à arena, pois o urso incandescente vinha em disparada.

Ragnar desviou do ataque, manteve distância e alternou entre estocadas de lança e conjurações de raios.

Passaram-se quinze minutos, restavam treze, e a vida de Bjorn continuava acima da metade.

A concentração foi se desmanchando aos poucos, o desespero de falhar aflorou não apenas em Ragnar, mas em Daniel, aquele que estava há horas dentro da cápsula de imersão tentando finalizar aquela missão única e especial.

A respiração ficou descompassada. Suor escorria pelo seu rosto. A mão tremia e pensamentos negativos inundaram sua mente, deixando-o aterrorizado.

Memórias de um ano atrás iluminaram a escuridão dentro de si.

***

Ele não estava mais dentro do santuário, ele estava no campo de batalha onde ocorreu a semifinal do 6º Campeonato Mundial. O cenário dentro do jogo era as ruínas de uma cidade rodeada pela areia escaldante do deserto.

Daniel estava controlando seu antigo avatar, Dante. E quando contemplou o Martelo de Ametista em sua mão direita, uma onda de nostalgia o fez relembrar do seu auge, dos dias de glória na Dark Age.

Então ergueu a cabeça e viu sua companheira ser eliminada pelas espadas do duelista lendário, ele vestia um longo traje de tecido branco sobreposto pela fina placa peitoral prateada em seu peito.

Ele virou em sua direção. Aquele era o único espadachim capaz de empunhar duas espadas em toda Nova Avalon Online, seu nome era White Snow, o melhor jogador do mundo.

Os dois se encararam, mantiveram-se impassíveis, então, ao mesmo tempo, avançaram, trocaram golpes até o momento decisivo, quando White Snow preparou seu ataque afinal.

O dia virou noite, a lua brilhou alta no céu, e 77 cortes de espada foram desferidos em poucos segundos.

Dante caiu no chão. Um enorme “Você morreu” brilhou em vermelho no visor de realidade virtual.

Daniel abriu a cápsula de imersão. Parecia que todas as suas forças se esvaíram.

Ao se levantar, deparou-se com Júlia, seus olhos castanhos e arregalados brilhavam, lágrimas fluíam por seu rosto, mas ela parecia não se importar. Com uma voz de doer o coração, ela disse:

— Nós perdemos…

Aguentando para não deixar as suas lágrimas aparecerem, Daniel respondeu:

— Sim.

Ela se jogou contra ele, agarrando-o pelo casaco enquanto repetia aos prantos:

— A gente perdeu!

A primeira lágrima escapou dos olhos de Daniel. Tentando disfarçar sua tristeza, ele disse:

— Por que você está chorando? Esta é a sua primeira vez…

Então todos os momentos marcantes daquela temporada repassaram diante dos seus olhos. As incontáveis horas de treino; as longuíssimas reuniões; as muitas brigas causadas pelos motivos mais banais; as poucas festas em que todo mundo pirava para extravasar a tensão; e as vitórias que recompensavam todos os sacrifícios.

***

Ele fechou os olhos, e quando os abriu, estava de volta ao santuário. O grande urso vermelho ardendo em chamas estava em sua frente, preparando para atacar.

Ragnar bateu com a coronha da lança no chão, raízes brotaram debaixo de Bjorn, aprisionando-o, em seguida, executou uma série de golpes e conjurações de raios que elevaram seu dano por segundo a um nível inédito desde o início da primeira prova.

Restavam cinco minutos. Seu foco estava 100% na batalha, em acertar golpes físicos na aura azulada, e mágicos na alaranjada. Àquela altura, o fogo emanando de Bjorn já não era mais um problema, pois Ragnar estocava e cortava com a lança enquanto mantinha uma distância segura.

Restavam 2 minutos para acabar, e 10% de vida para zerar. Para sair vitorioso era necessário elevar ainda mais o seu dano por segundo. Daniel hesitou um momento, então chacoalhou a cabeça, sentindo a adrenalina fervilhar dentro de si.

Seu foco aumentou a um nível visto apenas durante os duelos mais difíceis e decisivos da sua carreira. Com um sorriso no rosto viu A Ira da Tempestade retornando do tempo de recarga, junto da transformação animal.

Ragnar avançou, conjurou um raio, deslizou para baixo do grande urso, lançou um segundo raio, mas sofreu dano de fogo por estar perto demais, porém, conseguiu escapar da investida que iria receber.

Em pé, de costas ao oponente, girou o corpo junto da lança executando um corte, ficando em frente ao seu alvo para acertá-lo com um terceiro raio e uma sequência de seis estocadas, finalizando com o conjurar do quarto raio, que ativou a melhoria que atordoou o oponente com um relâmpago.

Restavam trinta segundos para estourar o tempo limite e 4% de vida em seu adversário. Ragnar correu até ficar de frente a Bjorn, para atacar seus pontos vitais com a lança.

Quando restavam dez segundos, ele saltou transformando-se em serpente, se enroscando no pescoço como fez no início da prova. O golpe fatal foi dado, a vida reduziu para 0.2% do total, mas restava 1 segundo para a prova acabar.

Ragnar sentiu como se o tempo tivesse parado. O oponente estava quase morto, o tempo restante havia praticamente zerado, não havia como emendar mais um golpe àquela altura.

Estava acabado, a missão falhou.

Ele tombou no chão, na forma de serpente contemplou o céu azul, sem nuvens. Ragnar não sentiu absolutamente nada, o único pensamento em sua cabeça era:

Perdi mais uma vez.

Com o canto do olho ele viu algo peculiar.

Provação Final concluída em 27 minutos 59 segundos e 330 milissegundos.

Golpe Final: veneno da Perdição das Víboras.

— Vencido por minha própria criação — lamentou Bjorn, ao se levantar. — Meus parabéns, você me surpreendeu. Houveram momentos que duvidei do que era capaz, mas esse final: incrível… apenas… incrível.

Ragnar continuava observando o céu, ainda absorto em pensamentos.

O veneno da lança…

Então voltou a forma humana, levantou-se do chão e conferiu a tabela resumo do desafio. Ela listava as provações, o tempo de conclusão e o tempo total restante. A formatação estava em: “horas:minutos:segundos,milissegundos”.

 

As Provações Druidas

Provação

Duração

Tempo Restante

Física

00:22:15,415

02:37:44,585

Mágica

01:32:22,976

01:05:21,609

Animal

00:37:22,000

00:28:02,609

Final

00:27:59,330

00:00:00,279

 

Ele esteve a 279 milissegundos do fracasso. Nenhuma batalha do circuito profissional fora tão acirrada quanto este desafio. Então se acalmou, o efeito da adrenalina foi abrandando até ser sobrepujada pelo sono advindo das horas que esteve acordado, ele mal conseguia se aguentar em pé.

Uma sequência de mensagens apareceu em seu visor:

Usuário inconsciente

Estado de sono detectado

Sistema entrando em modo de hibernação…

 — Mas que pena — disse Bjorn ao ver o avatar de seu sucessor desaparecer.



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