Volume 1
Capítulo 1: Considerações de um deus inconveniente
Ei, espera aí…
Acho que tô esquecendo uma coisa importantíssima…, mas o que era?
Ah!
Então era isso.
Sabe, tenho um desejo bem peculiar desde que apareci. Um desejo de perguntar duas coisas para os humanos e ouvir eles respondendo com honestidade.
São perguntas simples.
A primeira seria: "O que você mais deseja no mundo?". E a segunda seria: "O que você tem mais medo de perder?". Simples, simples até demais, entretanto, a grande maioria provavelmente mentiria nas respostas
Eles moldariam as respostas por conveniência, medo ou até mesmo para impressionar quem os questiona. Por isso, com o passar dos séculos, aceitei que esse desejo nunca, jamais, será concedido a mim.
Fazer o quê?
Sou bem realista com a incapacidade dos humanos de serem honestos.
Ainda assim, esquecendo um pouco essa realidade deprimente, essas perguntas ainda servem de início para um questionamento profundo para os deuses:
Qual é o nível máximo de desonestidade que os humanos podem atingir?
Esse questionamento tá a tanto tempo vagando na minha cabeça que agora, no final, tive uma conclusão tão simples quanto a pergunta. A conclusão é que essa pergunta não tem resposta, ou melhor, uma resposta certa.
Sim, sim, não existe resposta certa, e ainda bem. Os humanos sempre foram ótimos em cavar buracos onde não deviam.
A desonestidade deles? Essa cresce como um poço sem fundo… um desses que você olha e pensa: “talvez eu pule só para ver o que acontece”. E o mais engraçado é que, quanto mais tentam esconder esse lado sombrio, mais gritante ele fica.
É quase poético, se poesia fosse feita de mentiras, fumaça e um certo charme patético. Mas, veja bem, eu não tô julgando-os ainda, só observando. A humanidade não mudou muito nesses milênios todos, só ficou mais criativa nos disfarces.
Oh! Tem outra coisa que sempre me deixa curioso. É sobre essa tal “fé” que os humanos carregam — deuses, espíritos, entidades místicas e todo esse amontoado de ilusões que eles insistem em chamar de verdade.
É fascinante, de certa forma. A maioria mente sem nem ruborizar, mas acredita cegamente nessas figuras invisíveis que, segundo eles, criaram tudo.
Então eu sempre faço a mesma pergunta:
O que eles fazem para mostrar essa fé toda?
Lá vem a resposta óbvia: eles rezam.
Pedem, agradecem, murmuram palavras bonitas e repetem gestos vazios… É, eles rezam, muito, pedindo e também rezam agradecendo por aquilo que recebem, né? Claro que não! Isso é uma mentira, tudo isso não passa de uma grande mentira.
Os humanos rezam por tudo, tudo mesmo. Mas agradecer? Isso quase nunca.
Eles suplicam por cura, por dinheiro, por amor, por sucesso, e até por vingança. Agem como se a fé fosse uma moeda e o altar um balcão de negociações.
Bom, talvez eu esteja generalizando, talvez existam alguns poucos que agradeçam de verdade, não por medo, não por obrigação, mas por aquela gratidão simples e honesta que quase ninguém lembra como funciona.
Porque, sim, alguns deuses detestam ingratidão. Castigam, punem, fazem questão de lembrar aos fiéis quem manda.
Mas eu? Eu só observo.
E quanto mais observo, mais claro fica que a fé dos humanos quase sempre nasce do pedido e quase nunca do reconhecimento.
Mas sabe o que realmente me faz rir? É quando eles rezam com tanta força, imploram com tanta paixão, como se estivessem prestes a desmaiar, e tudo isso sem perceber que nós, os deuses, nem sempre estamos ouvindo.
Para ser honesto, grande parte das súplicas humanos é só ruído, besteiras frágeis, descartáveis e repetidas como um eco irritante.
E, convenhamos, nem sempre estamos de bom humor para ficar escutando essas baboseiras. Alguns dias eu até tento, enquanto em outros simplesmente deixo a oração passar direto, como vento atravessando uma porta aberta.
Será que algum deus já teve coragem de dizer isso aos próprios fiéis em algum momento desses milênios todos?
Imagino a cena…
O pobre humano ouvindo da boca da divindade que tanto venerava que… bem, ela simplesmente não se importa. Deve ter sido um golpe duro, daqueles que quebra até a fé mais teimosa.
Mas, honestamente, eu até entendo.
Aturar uma multidão de humanos mimados, incapazes de lidar com o simples peso de existir é estressante, é cansativo, é uma tortura que nem todos os deuses estão dispostos a suportar.
Ainda assim, existe uma verdade que nem eu gosto de admitir, mas que continua sendo verdade:
Quem acredita nessas coisas, acredita porque foi puxado pela própria fé latente… ou porque alguém enfiou essa crença na cabeça deles desde que aprenderam a falar.
E reclamar sobre isso não adianta. Os humanos foram sempre assim.
Sempre empurraram seus ideais uns para os outros, pela fé, pela cultura, pelas tradições. Tudo para garantir que mais alguém compartilhe a mesma visão, como se isso deixasse a própria crença menos frágil.
E tudo isso, no fim das contas, sempre acaba voltando para mim, de um jeito ou de outro. Porque, gostem ou não, pensem o que quiserem, eu continuo sendo um deus.
Podem chorar, reclamar, espernear, protestar — tanto faz. Ainda sou um dos deuses dos cento e trinta e nove santuários sagrados…
Ou seriam cento e trinta e oito agora?
Hm… Pergunta justa.
Muitos já me riscaram dessa lista faz séculos.
E sabe o que é engraçado? Nem consigo culpá-los por isso. Como eu mesmo disse, tanto faz se me incluem ou não. É só mais um detalhe perdido no meio da eternidade.
E, claro, tem o pequeno fato de que, em toda a minha existência divina, eu… fiz nada.
Nada mesmo.
Séculos, séculos e mais séculos, e eu ali, parado, flutuando entre mortes e renascimentos, observando o caos mortal como quem assiste ao mesmo teatro pela milésima vez.
E o pior? Não tenho orgulho disso, nem de longe, mas também não posso simplesmente quebrar meus princípios sagrados, aqueles que me foram empurrados desde o instante em que surgi.
Princípios que não escolhi, mas que carrego como uma corrente leve o suficiente para andar, mas pesada o bastante para nunca esquecer que está ali.
É, no fim das contas, tô preso a uma rotina de apatia forçada com tudo que existe. E sim, admito que exagerei quando disse que nunca fiz nada.
Fiz algumas coisas, claro, morrer e renascer conta, né? Acho melhor acreditar que conta, é mais confortável assim.
Falando nisso! Para os humanos, morrer é sempre um acontecimento grandioso, definitivo, trágico, cheio de peso existencial.
Para a maioria deles, realmente é o fim. Uns poucos conseguem burlar o sistema, mas são exceções raríssimas. Para nós, deuses, morrer é só uma pausa.
Uma folga.
Férias forçadas.
Mas existe, sim, um detalhe que fere o orgulho divino: morrer de forma ridícula.
E o que seria uma morte ridícula?
Bom, aqui vão alguns exemplos que listei:
Tropeçar na própria toga celestial e despencar escadaria abaixo do olimpo até estourar o pescoço na escadaria da eternidade. Engasgar com uma única uva durante um banquete, enquanto faz pose de majestade para fiéis deslumbrados. Também poderia ser esmagado por uma bigorna de bronze caída do nada de uma nuvem de forja divina. Ou ainda, escorregar numa casca de ambrosia largada no chão e mergulhar de cabeça numa piscina de néctar fervendo… e também tem aquela de ser atropelado por uma carruagem puxada por porcos alados em pânico — sim, porcos, não cavalos. E, claro, a mais clássica: esquecer que a própria lança sempre retorna ao arremessador e ser atravessado pelas costas diante de toda a corte divina. Isso, sim, são mortes de forma ridícula.
E, já que estamos no assunto, deixe-me contar da última vez que isso aconteceu comigo.
Eu estava no céu, tirando sarro de dois anjos que servem Halala.
Nós três estávamos caminhando pelos corredores infinitos do santuário sagrado dela — isso logo depois de eu ser chutado daquela reunião entediante, insuportável, perfeita e… enfim, o que importa é que eu estava incomodando os anjos.
Por quê? Não sei. Pareceu uma ideia brilhante na hora. Eles são tão certinhos, tão virtuosos, tão inflamados de importância, irresistíveis de se irritar.
Aí aconteceu.
Estiquei a mão para dar um tapinha no elmo do mais alto deles.
Um tapinha.
Algo bobo, inocente.
Mas o destino — esse palhaço incompetente — resolveu me sabotar.
Tropecei na minha própria perna.
Perdi o equilíbrio.
Caí com a graça de um saco de batatas divinas e aterrissei em cima de uma ponta afiada e estrategicamente posicionada no chão.
Uma lança.
Direto no pescoço.
Empalhado como um espeto de churrasco.
Fim.
Ridículo? Sim.
Patético? Sem dúvida.
Memorável? Absolutamente.
Posso até imaginar a reação dos dois anjos:
— …
Olham um para o outro.
— …
Piscam devagar.
E então aquele suspiro coletivo de:
Sério que esse deus imbecil morreu assim?
Ah, quando eu os encontrar de novo vou acabar com eles.
De todo jeito, foi uma morte patética, eu sei. Um deus, empalado como um principiante.
Tenho certeza de que, depois que perdi a consciência, aqueles dois anjos riram tanto que até eu choraria de vergonha. E garanto que não foi uma risadinha discreta, não; devem ter gargalhado alto, apontando para mim como dois moleques no mercado. Consigo quase ouvir um deles dizendo: “É sério? Esse é um deus?!”. Patético, Nora.
Ah, espera, deixa eu explicar uma coisa antes que você surte: “Como assim, deuses morrem?!”. Pois é, exatamente isso. Nossos corpos físicos podem morrer, sim. Somos vulneráveis a ferimentos sérios — decapitação, ser partido ao meio, uma boa apunhalada no coração, esse tipo de detalhe desagradável — quase como acontece com vampiros. E nossas almas? Em teoria são imortais. Digo “em teoria” porque isso só vale enquanto não somos atingidos por algo como o Imarshe.
Explicando do jeito mais simples possível: enquanto houver alguém que acredita em nós, continuamos a existir, mesmo que nossos corpos caiam. É isso. O único jeito de matar um deus de verdade é esquecendo ele. Inclusive existe um deus do esquecimento, o Lete. Ridículo, né? Como ele consegue ser o deus do esquecimento se, quando é esquecido, deixa de existir? Esse cara deve viver numa crise existencial perpétua.
Mas ser esquecido, isso é um pensamento que não me larga. Imagino que seja assim que os humanos enxergam a própria morte física. Não, na verdade é pior. Deve ser bem pior. É como evaporar aos poucos, camada por camada, até não sobrar nada — nem memória, nem nome, nem rastro, nada que prove que você um dia existiu. Só de pensar nisso já sinto um arrepio subir pela espinha.
Chega, não quero me aprofundar nessa espiral agora. Vamos voltar a um assunto mais animado: renascer.
Ah, renascer… que sensação maravilhosa. É como uma explosão de luz, calor e energia te preenchendo até o último átomo. Para um humano é impossível imaginar, claro, mas se eu tivesse que descrever seria algo como um êxtase divino. Um orgasmo divino. Uma overdose de vida. É tão bom que quase dá vontade de morrer mais vezes só para repetir a experiência. Mas, como sempre, existe um problema.
Ninguém sabe quanto tempo leva. Pode ser instantâneo ou pode levar séculos. Tudo depende da bendita fila de renascimentos divinos. E, com cento e trinta e nove deuses disputando vaga, quando muitos “morrem” juntos, bom, digamos que até mesmo um deus precisa esperar naquela burocracia celeste infernal. Eu disse, a vida de um deus não é tão fácil quanto parece.
Mas enfim. O ponto é que eu detesto os humanos. Eles são tão egoístas e, ao mesmo tempo, tão mimados. Vivem se apoiando em nós porque não conseguem lidar com a fraqueza que é simplesmente estar vivo. Eu só não os odeio mais do que odeio os demônios. Argh… só de falar “demônios” já sinto um embrulho subindo pela garganta.
Mas espera. Se eu tô falando sobre renascer e se eu já morri… então…
Por que ainda não renasci? Não… eu renasci, consciente, não é?
…
Onde eu tô mesmo?
Olho ao meu redor.
Estou em um deserto de ossos e cinzas… não, não é exatamente um deserto. Entre os montes de ossos e cinzas, existem ruínas. Estruturas quebradas, colunas rachadas e muros despedaçados de uma civilização que deve ter sido devorada séculos atrás. Agora não passam de esqueletos petrificados, afundados em cinza.
Acima de mim, o céu é uma massa de nuvens negras em combustão, rangendo como carvão incandescente. Daquelas entranhas fumegantes desce uma fuligem incessante, uma chuva tóxica que se acumula nos meus ombros e no meu cabelo como sujeira viva, grudenta, sufocante. Não consigo ver além de cem metros; tudo depois disso se dissolve em uma cortina cinzenta, densa e hostil, como se o próprio lugar tivesse vergonha de ser visto.
O ar cheira a ferrugem e cadáver. É pesado, abrasivo, cada respiração queimando como se eu engolisse brasas. O chão sob meus pés — arenoso, úmido e quente — lateja, pulsando de um jeito doentio, como se estivesse sangrando por dentro.
Ossos. Milhares deles. Crânios, espinhas, costelas, jogados ao acaso como folhas mortas espalhadas pelo vento. Alguns rangem sob meus passos, estalando como se protestassem por serem esmagados outra vez.
Que diabos de lugar é esse?!
Minha mente está uma bagunça completa, tipo aquelas gavetas cheias de tralha inútil que você jura que vai organizar um dia… mas que nunca, nunca organiza.
Sério, onde é que eu tô?
Olho ao redor de novo, tentando arrancar alguma lógica da paisagem. Nada. Só ossos, ruínas e aquela fuligem maldita que não me deixa enxergar nada além de um palmo adiante. É como tentar montar um quebra-cabeça usando peças de jogos diferentes: cada pedaço que eu encaixo só deixa a imagem mais sem sentido.
E quanto mais eu forço a memória, mais frustrado fico.
— Vamos lá, cérebro, colabora aí! — murmuro, dando tapinhas na minha própria cabeça, igual técnico tentando motivar atacante preguiçoso.
Silêncio. Nada. Resolvo apelar. Começo a bater mais forte, estilo TV de tubo quando a antena pega só chiado. Resultado? Não funciona. Isso só funciona com TV, não com cérebro.
— Você tem uma função, memória inútil! Uma! — reclamo, bufando. — Guardar minhas lembranças e me mostrar quando eu preciso delas! Que tal colaborar, hein? Não quer? Beleza. Quem precisa de você, né?
Solto um suspiro exagerado, digno de protagonista daquelas novelas que os humanos gostam — aquele suspiro do momento em que ele está prestes a desmaiar no tapete da sala. Até ergo o braço na testa para ficar no clima.
Mas aí vem a parte que não dá para rir.
Certo, eu morri. Isso é inegável. Mas então por que diabos não estou no meu amado e pobre santuário vazio?!
Sim, santuário vazio. Minha pequena caixa de areia celestial, só minha. Sem nenhum anjo para encher o saco, já que até Saraphiel acabou me abandonando. E não culpo. Se coragem é virtude, Saraphiel podia se tornar uma figura heroica só por me aguentar todos aqueles séculos.
Meus olhos voltam para as ruínas, insistindo em encontrar qualquer detalhe, qualquer rachadura, qualquer pedra que faça esse lugar soar familiar. Mas a fuligem só dança no ar, sufocando tudo, como se o próprio cenário estivesse rindo da minha tentativa patética de lembrar.
É, num raio de cem metros não tem nada além de um deserto sombrio, ossadas espalhadas como souvenirs esquecidos e esse solo nojento que parece respirar podridão. Praticamente, não há nada digno de ser admirado. A paisagem é tão deprimente que até um quadro mal pintado de natureza-morta teria mais charme.
E, pior, cada respirada é como uma tortura: arde como se alguém tivesse moído pimentas e enfiado dentro do meu nariz. A cada fungada involuntária eu sinto meu humor despencar um nível a mais no abismo da melancolia. Isso está me deixando mais deprimido do que o normal, merda!
Merda… bom! Não há nada que eu possa fazer sobre o tédio. Certo? Então, só resta desistir. Certo? Certo!
Levanto a mão com toda a solenidade de um herói caído em câmera lenta, só que sem câmera, sem heroísmo e com uma patetice de dar inveja a qualquer figurante trágico de quinta categoria.
Uma fuligem preguiçosa escolhe exatamente esse momento para pousar na minha palma. Lenta, melancólica, como uma folha seca que finalmente decide se aposentar do cargo de “parte da árvore”. Claro, meu toque mágico — leia-se: minha simples e maldita presença — a faz desintegrar instantaneamente. Assisto aos restos evaporarem no vento.
Legal. Até fuligens preferem evaporar do que me aguentar… Isso é decadência em outro nível, Nora. Mas ei, bela metáfora, não? Somos todos poeira no vento… ou fuligens na palma de um qualquer? Tanto faz. As duas versões funcionam igualmente bem para um epitáfio barato.
………
……
…
E é aí que percebo.
O vento.
Vento?!
Desde quando essa coisa está soprando aqui? Até agora, o ar parecia parado, sufocado, como se o tempo tivesse decidido fazer greve. Mas agora… ele corre, arrastando a fuligem em redemoinhos preguiçosos, levantando ossadas que rangem como sinos desafinados.
E cá entre nós: eu odeio coisas novas. Sempre significam problemas.
Fico quieto por uns instantes para descobrir de onde o vento sopra. Após algumas brisas, confirmo. O tal vento vem do oeste, forte e persistente, como se algum aspirador superpotente tivesse dado defeito no leste.
O engraçado — ou nem tanto assim — é que ele parece empurrar a fumaça espessa que me cerca, criando aberturas momentâneas neste manto sufocante. Graças a isso, eu finalmente posso tentar ver um pouco mais longe, pelo menos o suficiente para achar algo diferente no horizonte.
Viro meu rosto, tentando encontrar a fonte do vendaval ou qualquer coisa diferente, mas isso é mais por falta do que fazer do que por vontade genuína.
Ok, eu sei que tinha desistido de tudo agora há pouco, mas talvez aquele papo de "luz no fim do túnel" seja real. Claro, no meu caso, a luz provavelmente seria de um caminhão vindo na minha direção, mas, de toda maneira, vamos listar algumas coisas que estou vendo:
A primeira: um lugar sombrio. Confere.
A segunda: um lugar mal organizado. Confere.
A terceira: uma vila antiga com construções feitas de madeira e pedra, lá na distância, meio apagada pelo cinza. Confere.
A quarta: uma muralha de fogo verde cercando a tal vila. Confere.
Não, não é brincadeira. É isso mesmo. Chamas verdes. Uma parede inteira delas, que se ergue no horizonte como se alguém tivesse riscado o mundo com uma linha incandescente.
E não é um fogo comum. Não se move como fogo, não dança de forma aleatória… ele vibra. Como se tivesse um coração próprio. Como se respirasse. E o pior: ele sussurra. Não dá para entender direito o que tá dizendo, mas eu juro que cada brisa traz palavras que cutucam minha mente como espinhos.
É sério, eu só de olhar já sinto aquele aperto no peito, como se as chamas estivessem me lembrando de cada vez que eu perdi, de cada vez que alguém foi escolhido no meu lugar. Pequenas feridas que deviam estar mortas e enterradas… mas não, o fogo insiste em escarafunchar nelas como uma criança mexendo em crostas.
E, de vez em quando, quando o fogo oscila, dá para ver… algo além. Silhuetas de torres metálicas, muros de bronze corroído, uma cidade que parece feita de ferro roubado, enferrujado, irregular… oh, não. Só tem a vila antiga mesmo. Acho que essa fuligem mexeu com meus olhos, merda.
O vento assobiando ao meu redor, fica carregando o calor daquela visão até mim… que inconveniente…
Mas que legal, não? Como estamos num lugar asqueroso como esse, então porque não termos uma vila acabada envolta em fogo, né?! Sinceramente, se esse é o cartão de boas-vindas, eu prefiro a parte do deserto tóxico. Pelo menos aqui o chão só tenta me matar lentamente. Essa muralha, não — ela já chega cutucando a alma.
Ainda assim, não consigo ver lamparinas ou postes nessa vila.
A única fonte de luz parece ser… a própria barreira de fogo. Sério mesmo? Uma muralha flamejante que ilumina e cerca tudo? E sem uma passagem visível? Não… não é possível que sejam tão burros. É óbvio que deve haver algum tipo de abertura escondida, ou um mecanismo, sei lá. Caso contrário, cada vez que alguém entrasse ou saísse daqui, viraria churrasquinho instantâneo.
Tá, mas não vou perder meu tempo tentando entender a lógica dessa fogueira monumental. Isso é detalhe. A questão principal é: onde diabos eu tô?
Será que voltei para a Terra? Mas, se for mesmo a Terra, o que os humanos fizeram dessa vez? Outra guerra idiota que deixou o planeta deformado? Faz séculos que não ponho os pés aqui, mas tenho certeza de que não existia nada tão peculiar… pelo menos não naturalmente.
E ainda assim, por que raios teria uma vila no meio desse cenário? Não existe ninguém tão idiota a ponto de querer viver aqui. Quer dizer, até existe, eu conheci alguns, mas nem o mais insano sobreviveria muito tempo em um ambiente como esse. É fisicamente, humanamente, e até espiritualmente impossível.
Olho melhor para a vila. Aquelas casinhas de madeira maltratada parecem sustentadas por pura teimosia. Um cosplay malfeito da Idade Média, para ser honesto.
Ok, talvez eu esteja no passado da humanidade? Não, isso não explica a barreira de fogo. A Idade Média não tinha esse tipo de “decoração”. Se bem que os humanos daquela época eram mestres em se adaptar a coisas bizarras, pragas e pestes — então não descarto totalmente.
Outra possibilidade: estou sonhando. Não seria a primeira vez que eu ficaria preso em uma daquelas ilusões longas e irritantes. Ou talvez… castigo divino. Os mais velhos lá de cima sempre tiveram um gosto duvidoso para punições.
Também existe a chance de ser alguma fenda temporal, ou um daqueles experimentos dimensionais fracassados que os magos gostam de brincar. Já vi coisas bem mais absurdas.
Enfim. Seja sonho, passado ou planeta arruinado… o cenário é esse. E a única pista concreta que tenho são os possíveis moradores da vila. Então, se quero respostas, só tem um caminho lógico: descer lá e entrevistar os idiotas que decidiram chamar esse lugar de lar.
Particularmente, isso poderia até ser divertido se eu não estivesse num lugar estranho e sem a menor ideia de como voltar para o céu. Até poderia, de maneira divina, retornar para o meu templo, maaas… para isso precisaria estar com o apito. E não estou. Ótimo começo, Nora.
Mesmo assim… se tiver humanos naquela vila, é bom lembrar: eles podem ser tão receptivos quanto um enxame de abelhas irritadas. Afinal, da última vez que tentei socializar com humanos, quase fui assado vivo.
Então, quais opções me restam agora? Olha para mim! Sou literalmente um deus perdido, sem plano algum e com dignidade negativa. Minha mesa de opções? Vazia. Totalmente vazia.
Improviso é a única arte que me resta. Hoje, oficialmente, me autoproclamo “Nora, o Deus do Improviso”.
Dou o primeiro passo. Ué… não deu certo?
É então que sinto algo agarrar meu tornozelo. Olho para baixo. Uma mão esquelética emerge do chão. Carne podre grudada nos ossos, o cheiro nauseante me atinge como um soco. A mão aperta meu tornozelo com força. Seus dedos longos e deformados tentam me puxar para baixo.
— Mas que porcaria é essa?!
Pisco várias vezes, só para garantir que não seja mais um dos meus delírios habituais. Convenhamos, minha mente adora me pregar peças.
Ok… confirmado: não é delírio.
Tudo bem, é real. Uma mão praticamente esquelética estava saindo do chão e segurando meu tornozelo como se eu fosse seu novo melhor amigo ou maior desejo de consumo.
E olha, não basta ser uma mão horrível? Precisa ser super horrível?! Coberta só por uns fiapos de tendão desgastado e carne que já passou do prazo de validade há séculos, mas com uma força absurda que não fazia o menor sentido.
Quando digo “força absurda”, é nível “eu malho”. Mas o maior problema? O cheiro. Meu olfato agora carrega traumas irreversíveis.
Ah, cara, isso tem cara de trabalho de necromante. E eu, tão inocente, achando que os humanos tinham superado a fase de brincar com magia negra. Quase fofo, né?
Me abaixo e tento abrir a mão cadavérica usando as minhas próprias. Não dá certo. Puxo os dedos para todos os lados possíveis, e até alguns impossíveis, mas a desgraçada não cede.
Nada. Nem uma micrométrica de folga. É como brigar com uma porta emperrada que cheira a esgoto e morte.
E assim fiquei, numa batalha inútil contra uma mão morta que aparentemente decidiu que meu tornozelo era o grande amor da sua não-vida. Quanto tempo durou? Sei lá. Só sei que perdi um pouco mais da minha dignidade, o que eu achava impossível.
— Ah…
Enquanto luto inutilmente, algo absolutamente divino me ocorre: meu outro pé está livre o tempo todo. Os membros inferiores são mais fortes que os superiores, geralmente, então…
Com fúria nos olhos e no coração, e uma boa dose de humilhação reprimida, levanto meu pé livre e chuto a maldita mão com toda a força que tenho.
O impacto é glorioso. Um estalo seco ecoa enquanto os ossos podres se despedaçam e, finalmente, meu tornozelo fica livre do cárcere esquelético.
Respiro fundo, olhando para os pedaços da mão no chão.
É, isso foi muito mais efetivo do que ficar puxando os dedos como um idiota. Por que não pensei nisso antes? Enfim, problema resolvido.
Hora de retomar o foco principal: ir até a vila e entrevistar os moradores.
Estou super animado! Vai ser uma aventura e tanto conhecer novos humanos! É claro que isso é ironia.
Olho para a vila mais uma vez, com uma fagulha de curiosidade genuína… Mentira.
Na verdade, é só alívio por não estar mais sendo agarrado por um morto-vivo.
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