O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 2

Capítulo 26: Ajuda com algo

— Espera, você é uma guitarrista?!

De todas as pessoas que poderiam ficar surpresas com esse fato, a última que passou pela minha cabeça foi a Eliza.

Pra começo de conversa, não era nem pra eu estar contando sobre meu hobby. Desde que fizemos aquele trabalho semana passada, tenho me encontrado constantemente com o grupo do Liel nos horários do almoço e da janta. Aconteceu de, em um desses dias, eu trazer meu case pra faculdade pois queria trabalhar em algumas ideias e ela terminou vendo. Enquanto não respondi às mil e uma perguntas que ela fez, não me deixou em paz.

E agora estávamos aqui. Era uma plena terça-feira e mais uma vez tinha parado com o novo grupo de amigos do demônio para comer. Tanto eu, quanto o Liel, já tínhamos batido o ponto na cafeteria hoje. Assim que terminássemos de comer, a gente ia voltar pra casa.

— É, eu sou — respondi a pergunta da ruiva e suspirei. Não é como se fosse um ultra mega segredo. — Agora tá satisfeita?

— Por que você nunca me contou antes?!

— Eu deveria?

Minha resposta fez ela fechar a cara. Apesar do climão que ficou entre eu e a mulher, os outros não pareceram se importar muito. Eles só estavam curiosos sobre minha vida, mas sem fazer tanto alarde.

— Nunca te vi carregando a guitarra pela faculdade. — Verônica comeu um pouco do arroz. — Se alguém das atléticas descobrisse, com certeza iam te chamar pra dar alguma festa.

— O pessoal das atléticas só pensam em festa?

— É o que todo universitário gosta, oras. Nós três aqui sempre vamos quando temos a oportunidade.

Não é como se eu pudesse esperar alguma resposta diferente vindo dela. É apenas uma pessoa normal com gostos completamente normais. Já aceitei que não tenho a mesma vibe que toda essa gente. Esperar alguma empatia pela minha introversão é perda de tempo.

— Como é que funcionam essas festas? — Liel perguntou. — Nunca ouvi falar.

— Tem vários tipos — Alice começou, animada. — A mais comum, principalmente para calouros como nós, é o que chamamos de “calourada”. É uma festa que os veteranos fazem pra comemorar nossa chegada na faculdade.

— Sério? Como que é?!

— Pelo o que eu saiba, nesses eventos é só farra — comentei.

— Que isso, Marcy! — Ela ficou incomodada. — Cê fala como se fosse a pior coisa do mundo. Cê não acha legal toda a magia de beber com seus novos colegas de turma e se enturmar?

Eu a encarei com uma cara de bunda e respondi: — Não. Não vejo graça. — Liel, por sua vez, ficou sem entender o que ela queria dizer e apenas falou que não entendia o tipo de sentimento que aquilo passava. Isso deixou a garota meio broxada de continuar falando. Depois dessa isolada, até eu calava a minha boca.

Pelo menos elas não se importaram mais com a gente e deixou eu e o demônio no nosso cantinho. Evitar esse tipo de discussão era melhor, ainda mais levando em conta que o garoto é facilmente influenciável.

Enquanto as meninas falavam de outras coisas, aproveitei para terminar a minha comida e pegar minhas coisas. Apesar de ter saído a semana passada inteira com essa galera, não queria dizer que ia com a cara deles. Quando Liel finalmente terminou o seu prato, ele também pegou sua mochila e se despediu de suas amigas, saindo logo comigo na sequência.

Caminhamos pelos corredores, passamos pelo portão do campus e fomos direto em direção ao apartamento, seguindo pela calçada. Já era início da noite e, mesmo que esse fosse o horário que a maioria dos alunos saíam da faculdade, a rua estava relativamente vazia. Não era algo comum de acontecer.

Os lugares perto da universidade sempre foram muitos seguros, então ficar num ambiente tão desolado não era tão assustador — pelo menos pra mim. Só que, diferente das outras vezes que isso rolou, tinha algo estranho. Era aquele mesmo sentimento de estar sendo observada, como se olhos estivessem me seguindo pra lá e pra cá.

— Marcy, só eu que tô achando isso tudo meio… assustador?

— Não. Alguma coisa tá pegando.

Me deu um pouco de alívio saber que o demônio também sentiu a mesma coisa, por mais estranho que fosse isso acontecer por ele não estar transformado.

Andamos mais um pouco, bem alertas dos nossos arredores. A poucos metros do nosso apartamento, começamos a escutar sons estranhos. Demorei pra perceber, mas eram passos; e eles estavam nos seguindo. Toda vez que a gente olhava, essa coisa se escondia em alguma das sombras criadas pelos postes ou prédios da rua. 

Pra qualquer um que tenha medo de escuro, ia sentir terror nessa situação, só que eu já passei por isso duas vezes. Não ia ser um vulto que ia me assustar, muito menos um que se esconde tão mal que parece uma criança brincando de esconde-esconde.

Continuei seguindo pela rua até parar em frente ao prédio. Pouco tempo antes de entrarmos, notei que aquela coisa estranha foi pra detrás de uma lixeira na calçada. Foi o momento que elaborei o plano e sussurrei pro Liel:

Só finja que vai passar pro lado de dentro. Vamo pegar esse otário no pulo.

Não deu outra. Na hora que o demônio colocou o pé no interior do dormitório, a pessoa tentou acompanhar. Fiquei escondida atrás da porta de vidro da recepção e, na hora que o sujeito passou, o puxei pelo braço e não o deixei sair. Fiz questão de apertar com força.

— Ei, me solta! Tá machucando o meu…!

Segurei a parte de trás da sua camisa e o puxei pra trás com tudo, o fazendo cair no chão. Quão me dei conta, na verdade, não era um cara que tava seguindo a gente. A voz era feminina demais pra ser de um homem, e extremamente familiar.

De todas as pessoas que conheço, só tinha uma com a voz tão parecida com a que escutei. Quando puxei o capuz que cobria o rosto da mulher, vi o cabelo alaranjado e confirmei minhas suspeitas. Também não acreditei, mas quando vi a cara da pessoa, a única coisa que falei foi:

Cê tá de brincadeira comigo…

— Eliza?! O que você tá fazendo aqui?

É, a pergunta do Liel foi a deixa que a ruiva precisava pra olhar pra gente com cara de cu. Quero ver qual vai ser a desculpa que ela vai dar pra toda essa palhaçada.

— Vão pra merda. Não devo satisfação de nada a ninguém.

— Então qual a sua? — Me abaixei bem próxima dela. — E por que cê tá usando moletom e capuz pra se esconder? Por acaso é uma ladra?

— O quê?! — ela gritou. — Quem cê tá chamando de ladra?

— Pra você ter perseguido uma pessoa no meio da noite, numa rua vazia, a única coisa que consigo pensar é que cê quer roubar alguém.

Esse comentário foi o suficiente pra ver o rosto dela ficando vermelho de raiva. Apesar da minha provocação, decidi pegar leve e deixá-la respirar. Não queria arriscar tomar um tapa.

Assim que ficou mais calma, ajudei-a a levantar e repeti a mesma pergunta de antes: — O que você quer? — Ela passou a mão nas mangas do moletom para limpá-lo e virou o rosto, evitando contato visual. Eu e Liel ficamos apenas olhando, esperando uma resposta plausível. Demorou um pouco, só que de maneira tímida, ela finalmente disse o que queria:

— E-Eu… preciso de ajuda.

De todas as pessoas no mundo que imaginei que iam querer me ajuda, a última delas seria a Eliza, vulgo “garota autossuficiente”. Respirei fundo e deixei meu julgamento de lado, então perguntei o que ela precisava.

— Não posso contar aqui.

— O bagulho agora é confidencial, porra? Desembucha!

Fui bem grosseira, e isso foi o suficiente pra ver o seu rosto dar uma leve lacrimejada. Liel, que até então só tinha demonstrado receio de toda essa situação, ficou com uma feição preocupada.

— Marcy, tem algum problema levarmos ela lá pra cima?

Fiquei pensando nessa possibilidade com certo incômodo. Mesmo que ainda fosse meio de semana, hoje tinha sido um dia cansativo. Só queria voltar pra casa e descansar um pouco. O foda é que ela é amiga do garoto, sem contar que não seria muito legal deixar alguém quase chorando em frente a nossa porta. Não tem como simplesmente ignorar.

Sigh… Tá legal. Vamos nessas.

Então, acabei cedendo.

Como já estávamos na recepção do prédio, só subimos as escadas e entramos no nosso apartamento. Assim que passamos pro lado de dentro, Eliza e Liel se sentaram no sofá. O garoto ficou tentando acalmar a mulher que, de uma hora pra outra, começou a tremer e a ficar visivelmente desesperava, então aproveitei para ir na cozinha pegar algo para ela beber.

No momento que voltei, fui pra onde estavam e me sentei pra escutar a conversa deles dois. Enquanto bebia a água do copo, explicou a situação: todo aquele trabalho que eles estavam fazendo semana passada, mudou de prazo. Em primeiro momento, fiquei confusa, ainda mais todo um papo de que eles precisavam de um modelo pro grupo deles ou algo do tipo. Só quando perguntei foi que me disseram, aí ficou tudo mais claro.

Se não entendi errado, a professora tinha passado esse trabalho pra eles fazerem suas primeiras roupas, mas não somente isso, eles também tinham que procurar pessoas para vesti-las num ensaio fotográfico que ia acontecer em algum dia dessa semana. Resumindo, o grupo deles já tinha tudo pronto, só faltava alguém com disposição e que fosse fotogênico o suficiente pra participar.

E, sendo bem direto, considerando que a Eliza tem inúmeros contatos pela universidade, não seria difícil encontrar uma pessoa. Tem gente por aí que se adequaria ao estilo das peças que eles fizeram facilmente e ainda ajudariam de bom-grado, sem cobrar nada.

Inclusive, foi esse o ponto que ressaltei na conversa e a mulher até concordou, só que veio uma dúvida… Por que caralhos ela não foi atrás de alguém? Se meu ponto está correto, desde quinta-feira passada pra cá, já era pra ela ter encontrado um modelo, não?

É, em teoria. Quando perguntei o que tinha acontecido pra ela não ter encontrado alguém até agora, sua cara faltou ficar vermelha igual um pimentão. Fiquei esperando uma explicação, e sua resposta foi…

— Fiquei… interessada em uma pessoa.

Durante todos esses dias, ela ficou ocupada com alguém que tinha chegado recentemente no campus. No início, não tinha sido nada demais, só que conforme o tempo foi passando, Eliza começou a procurar meios de se aproximar desse sujeito mais do que qualquer outra coisa, ao ponto de até mesmo fazer coisas sem ele pedir. Seria bom se terminasse aí, mas ela continuou falando e revelou a pior parte de todas:

O cara que ela tava gostando era um dos servidores da universidade.

Não, eu não estou mentindo. A Eliza se apaixonou por um funcionário. Ela… se apaixonou… por um fodendo… funcionário. O cara da limpeza! Não foi coordenador, não foi programador, muito menos alguém conhecido… Foi a porcaria de um novinho que trabalhava com a limpeza dos prédios.

E eu tava achando estranho toda aquela história do veneno de rato. Agora faz sentido! Esse tempo todo, a ruiva tava indo comprar essas coisas estranhas só pra ajudar no trabalho do cara. Francamente, de todas as pessoas possíveis que ela poderia dar em cima, a coitada foi atrás de um homem inocente de 25 anos que só quer ganhar o salário dele no final do mês.

Porra, imagina tu estudar igual um condenado por quase um ano pra passar no concurso. Aí, quando tu chega, tem a porra de uma patricinha dando em cima de você. Que situação merda.

A cada dia que passa, a única conclusão que tenho é que virei um ímã de gente com um parafuso a menos na cabeça. Primeiro, foi o Liel quase me enforcando até a morte; depois, foi a Trizz me descendo o cacete no meio da rua; agora, uma ruiva tarada.

Acho que não é cedo pra dizer que odeio a minha vida, né?

— Meu deus do céu, vocês são uma derrota. — Bati a mão na testa. Me arrependi de ter escutado tudo. — O prazo de vocês não acaba essa semana? O que vão fazer agora?

— Eu não sei! — Eliza deu um berro e colocou as mãos em frente ao rosto, desesperada. — Já tentei falar com algumas pessoas, mas todo mundo que fui atrás já tá em um grupo.

— Que furada do cacete… — Inclinei um pouco a coluna pra frente no sofá. Tava sentindo tensa. — E você, Liel? Tem ideia de alguma pessoa?

— Poderíamos procurar amanhã, mas acho difícil encontrar alguém.

— Que dia vai ser o ensaio?

— Depois de amanhã.

Isso não era nada bom. A gente poderia até ir atrás de uma pessoa, mas encontrar alguém que fosse fotogênico o suficiente pra participar disso seria um pouco difícil. Sem contar que a pessoa teria que ter habilidade pra posar e se portar em frente às câmeras. Não pode ser qualquer um.

— O jeito vai ser perguntar pro Alex se ele conhece alguém. — Peguei meu celular e comecei a digitar uma mensagem pra mandar pro loiro. — A mãe dele é modelo. Com certeza conhece alguém que estará disposto a ajudar vocês.

Passei um tempinho fuçando o telefone. Enquanto fazia isso, Liel veio até mim com uma expressão meio cabisbaixa e falou: — Marcy, eu queria te pedir algo, mas não sei se cê vai aceitar…

Pelo tom receoso da voz dele, não esperei nada bom disso.

— Se tem a ver com o trabalho e for uma possível solução, é melhor dizer.

— Estive pensando. — Eles juntou os dedos indicadores de suas mãos em frente ao rosto. — Cê não gostaria… de ser a modelo do nosso grupo?

Eu me ajeitei no sofá depois de ouvir a pergunta com uma cara de quem estava prestes a dizer “o que você disse?”. Não julgo ele perguntar isso, mas por que pensou que isso seria uma boa ideia? Eu sou uma introvertida, me visto igual uma mendiga e não sei ser uma modelo. O que ganhariam com isso?

Perguntei todas essas coisas pra ele e, de repente, Eliza, que até agora tava num transe de desespero e abraçando seus próprios joelhos, ficou eufórica do completo nada. Ela pegou na minha mão e me puxou pra perto. Seus olhos tinham um brilho de esperança que eu nunca tinha visto.

— É… É isso! Marcy, você é a pessoa perfeita pra ser nossa modelo! Por favor, nos ajude!

— Não, não, não. Vão pra lá com esse papo! — Tentei fazer ela me soltar. — Não vou participar disso.

A ruiva pareceu meio decepcionada por um momento e suspirou. — Tá, quanto você quer?

— Quê?

— Tô te perguntando quanto você quer pra ser nossa modelo.

— Tá, eu sei que eu sou pobre e preciso de dinheiro, mas isso também já é esculacho.

Isso só deixou ela mais irritada. De repente, ela só se levantou do sofá e falou de maneira bem autoritária e raivosa:

— Olha, eu vou falar apenas uma vez pra que fique claro, tá bom?! — Ela apontou o dedo pra mim, como sempre faz. — Liel fez metade das roupas do nosso grupo. E todas elas têm o seu tamanho!

— Pera aí, como é?!

Quando escutei o que ela disse, só vi o demônio correndo pra dentro do quarto com a cara toda vermelha. Foi isso mesmo o que escutei? O desgraçado espiou minhas coisas, procurou o número de calça e camisa que eu uso e mandou pra costureira fazer tudo sob medida pra mim?

Se o sentimento de vergonha tava ruim pra ele, imagine pra mim que, depois desse comentário, nem sabia onde enfiar a cara. Minha vontade era de arremessar a ruiva pela janela. Meu deus, que coisa ridícula!

Tentei me acalmar um pouco pra pensar. Deveria realmente participar desse ensaio? Valeria a pena chamar a atenção de um monte de gente? Por mais que eu saiba posar e não tenha muita vergonha de aparecer em frente a uma câmera, isso não é muito a minha praia. Tirar fotos que muito provavelmente vão ser postadas vai atrair muitos holofotes pra mim. Isso não é algo que me agrada.

Cogitei e recogitei. Minha cabeça calculou infinitos desastres que poderiam acontecer nessa situação — provavelmente nenhum deles é real. Levando em consideração que o pirralho já tinha feito as peças com medidas pra mim e eles não iam achar uma outra modelo da minha altura, pensei em aceitar. Mas antes, fiz uma pergunta:

— Olha, se eu ajudar vocês, prometem que não vão me forçar a fazer nada que me faça passar vergonha?

Ambos trocaram olhares entre si e acenaram com a cabeça, dizendo que sim. Não hesitaram em nenhum momento com a resposta.

— Tá, eu vou tentar…

Eliza deu um sorriso do tamanho do mundo quando eu concordei e levantou a mão pro Liel, o famoso “toca aqui”. O demônio retribuiu um gesto, ainda com a cara toda vermelha e saindo fumaça da sua cabeça; mas assim como a ruiva, ele também ficou feliz por eu aceitar participar do projeto e deu pulinhos de alegria.

Depois disso, pedi um tempo para mim e saí do cômodo. Fui pro quarto, fechei a porta e me sentei no chão, dando um suspiro longo que nem foi o suficiente pra aliviar todo o meu estresse. Nesse momento, queria tirar um tempo pra refletir, mas não sabia o que pensar.

Aquelas perguntas do porquê ele me queria como modelo ainda pairavam na minha mente. Eu já tinha me decidido, então por que eu tava com isso na cabeça? Foi tudo uma questão de “agradecimento” como das últimas vezes, ou o que a Eliza falou de fato era verdade?

É estranho. Quanto mais tento entender, menos faz sentido. A cada dia que passa, isso se torna mais confuso.

 

Notas:

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