O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 1

Capítulo 06: Estresse

Está escuro. Desde o momento que afundei naquela imensidão, eu não consigo ver nada.

Tudo pareceu tão real que dificilmente chamaria de “sonho”. Me afoguei na minha própria mente, numa imensidão de sensações que pensei apenas existir na minha cabeça.

Mas estava enganada. Uma vez que perco o controle do que alucino, meu corpo no mundo real também experimenta o que minha imaginação sentiu. 

— Ah! — gritei. — Cof, cof, cof!

Acabei de acordar e já senti algo diferente. Meu corpo estava suado, mas tremia de frio como alguém que acabou de tomar um banho de mar; minha cabeça não parava de doer e a minha garganta parecia disco riscado.

Além da sensação de congestionamento, tive a impressão de que tinha quase me afogado. Com muita dificuldade, tossia como se estivesse tentando tirar a água que adentrou nos meus pulmões, ou melhor, dar um fim naquela sensação ilusória que não cessou.

Quando finalmente recuperei um pouco do meu fôlego, deitei minha cabeça no travesseiro mais uma vez. Foi repentino, mas quando passei a mão sobre a testa, notei que estava febril e também sentia um extremo cansaço.

Minha vontade era de passar o dia deitada. Poderia fazer isso? Claro, era domingo, mas estava com fome e não conseguiria adormecer de novo com a barriga roncando.

Decidi levantar; me sentei na cama, coloquei os pés no chão e respirei fundo. Quando fiquei de pé…

Slam!

Caí igual merda. De repente, não conseguia me mover; não tinha forças para manter meu próprio corpo de pé. Ok, sem sombra de dúvidas, eu estava doente. Talvez a rotina tenha me deixado desse jeito, mas acho que teve outras motivações.

Já que não ia conseguir me virar sozinha, tentei chamar por ajuda. Com muita dificuldade, tentei me arrastar até a cama para pegar meu celular. Depois de um cinco minutos, como o telefone em mão e ainda com a cara no azulejo, fui até a lista de contatos contatos e cliquei em um deles, iniciando a chamada. Não bastou ligar uma vez.

— Atende, buceta!

Foram uma, duas, três, quatro chamadas perdidas. Mais alguns minutos perdidos e finalmente atenderam.

— Alô? Marcy? — respondeu a voz masculina do outro lado.

— Oh, careca desgraçado. Qual foi da demora pra me atender?

— Mulher? Que voz rouca é essa? Virou fumante e não me contou?

— É sobre isso que eu quero falar.

E lá fui eu contar toda a situação: que acordei exausta, aparentemente doente, e que preciso de ajuda porque não consigo me virar sozinha. Nossa, como odeio quando isso acontece; depender de outras pessoas é sempre um inferno.

Não entrei em muitos detalhes durante a conversa. Em poucos minutos, escutei a porta da frente destrancando e passos rápidos vindo em direção ao meu quarto. Quando entraram no cômodo, lá estavam os dois salvadores da jovem adulta lascada: Alex e Aspen.

Foi trabalhoso. Os dois tiveram que me carregar de volta para a cama e me dar alguns medicamentos para tratar da hipertermia. Depois deles preparem algo para eu não morrer de fome, ambos pegaram uma cadeira na cozinha e colocaram ao lado da minha cama, se sentando.

Após um monólogo explicando tudo o que aconteceu no dia anterior até eu chegar nesse estado, prosseguimos com a conversa.

— Tá, deixa eu ver se entendi. Você saiu ontem conosco, rolou toda aquela briga com a Daisy e quando deixamos você e o Liel em casa, ficou um climão e agora você adoeceu? — questionou o loiro.

— É, basicamente foi isso.

Alex cruzou as pernas na cadeira, colocando a mão embaixo do seu queixo, pensativo.

— Sendo sincero, acho que isso foi estresse emocional. Cê teve outra daquelas alucinações?

Se eu falasse a verdade, ele ia querer saber o que “sonhei” e discutir sobre o tópico. Nessa situação, preferi mentir. Não quero ter que relembrar sobre aquele rosto que me assombrou durante a noite.

— Puta merda. Tá, mas e depois de todo o babado de ontem, como vocês dois ficaram? — Aspen perguntou com certo incômodo. Ele estava visivelmente preocupado.

— Bem, eu cuidei dos machucados dele e… Uf… Tentei pedir desculpas. Digo, pensei em fazer isso, mas ele não quis conversa.

Respirei fundo após ter me lembrado de sua face chorosa; era difícil de engolir esse fato. Podia detestar o garoto de todas as formas, mas nunca que ignoraria uma situação como essa.

No final, acho que a única coisa que ele via em mim era uma pessoa chata, irritante e egoísta. Nunca que eu deveria ter o envolvido nessa situação. Foi idiota da minha parte tentar resolver tudo com minhas próprias mãos ao invés de ter ignorado aquela mulher.

— Mulher, acho que você está se culpando demais — Alex afirmou ao se levantar e puxar uma pequena mesinha que tinha no quarto para perto da cama.

— Ué, mas é óbvio? Minha situação com a Daisy não interessa ao Liel. Eu simplesmente…

— Sim, já entendemos em que ponto você quer chegar, mas se martirizar não vai resolver nada. Não tinha como você prever que ela estaria lá. E, falando bem a verdade, acho que não foi você que causou tudo isso.

— Espera, como assim?

— Pense comigo. Faria sentindo ele chorar do jeito que me descreveu apenas porque você machucou o braço dele?

Uh… Não? — respondi com dúvida.

— Relembre do que aconteceu. A única parte que tu não me contou foi sua discussão com a Daisy.

Encostei meu cotovelo sobre a mesa, apoiando meu rosto por cima da minha mão. O que eu me esqueci? De fato não foram tantas coisas que aconteceram ontem, mas havia algo em específico que poderia dar a resposta que Alex queria.

De repente, veio à tona um pequeno flash. A voz irritante dizendo algo tipo “estou apenas alertando para que não tenham o mesmo fim que…” Ela se referiu a alguém, mas não me recordo quem é.

— Foi apenas isso que surgiu em minha mente — falei após ter relatado as lembranças ao loiro.

— Seus lapsos de memórias estão cada dia piores, em? Francamente, Marcy. 

Ele fechou os olhos, colocando a mão sobre a testa.

— Mas isso já diz muita coisa — continuou. — O que aparenta é que aquele encontro foi proposital; algo que ela já planejava fazer. Então o mais provável a se pensar é que antes de você chegar, Liel escutou alguma coisa que o deixou inseguro.

Era uma hipótese muito certeira, ainda mais considerando a maneira que o garoto reagiu comigo até então. Mas a pergunta que ainda não calava era que mentira ela contou. Já houve tantas coisas que falaram de mim que fica até difícil de imaginar qual seja a opção que Daisy escolheu. 

Independentemente do que ela tenha dito, tenho a impressão de que o demônio está me evitando. Ontem não nos falamos, assim como hoje ele não estava em casa no momento que acordei. Ele poderia até ter algum compromisso, mas tenho o pressentimento do contrário.

— Acho que esse papo de ela apenas querer incomodar já virou balela a muito tempo… — afirmou Aspen enquanto puxava um estojo com peças de dominó e espalhava na mesa, — das outras vezes, nunca aconteceu das coisas escalarem a esse ponto: você ficar doente ou alguém acreditar na acusação tão fortemente.

— Mas se acusaram a colega dele de quarto, por que ele não me perguntou se era verdade?

— É simples, Marcy — Alex se intrometeu. — Você acha mesmo que alguém que convive debaixo do mesmo teto a dois dias vai falar sobre uma acusação sua? Obviamente se ele te dissesse o que escutou, você negaria, mas isso não dá nenhuma garantia ao Liel de que você está falando a verdade. Ouvir da tua boca não mudaria em nada.

É, ele está certo. Não é como se eu pudesse esperar algum tipo de confiança dele. Fica mais fácil de pensar se eu comparar nossa relação com a que tenho com o barbudo; se dissessem que sou coisa A ou B para meu melhor amigo, ele acreditaria se eu dissesse que é mentira.

— E sabe qual a pior parte disso? — acrescentou. — Ele não tem amigos. Desde que encontrei o garoto na cafeteria e também nos arredores da universidade, nunca o vi saindo com gente do seu curso ou falando com outras pessoas. Ou seja, é mais provável que tire suas próprias conclusões por não ter alguém para pedir opinião.

— Sério, quanto mais vocês falam, mais o meu cérebro derrete. Vocês têm alguma solução, pelo menos?

Os dois se encararam e, após isso, não me deram nenhuma resposta satisfatória ou outra opção que não fosse pedir desculpas. Digo, devo fazer isso, mas não é o suficiente. Como eles mesmos disseram, a questão não é sobre a culpa ser minha.

Terminou que não chegamos a uma conclusão. Quando me dei conta, passamos boa parte da manhã jogando e conversando sobre tópicos aleatórios; fofocas da vida alheia. Por mais que não estivesse lembrando eles da nossa conversa anterior, não quer dizer que aquelas questões saíram da minha cabeça. Passou-se horas, fizemos o almoço, comemos, cochilamos no sofá e… nada de uma solução.

No meio da tarde, por volta de umas três e meia, escutei um deles se levantar e ir até o quarto, provavelmente para pegar suas coisas. Fui a última do grupo a acordar.

— Já vão embora? — perguntei.

— É, já — disse o loirinho. — Tenho que estudar para uma prova que vou fazer amanhã e o Aspen tá meio ocupado com um trabalho em grupo.

É, pelo jeito nem eles chegaram a uma conclusão. Isso é frustrante.

— Ah, tudo bem. Suponho que vocês pegaram a chave extra na portaria para entrar aqui, certo? Não esqueçam de devolver pro porteiro. Enfim, até mais.

Depois que acenei, ele passaram pelo corredor e foram até a porta da frente, saindo do apartamento.

Assim que a fechadura fez o estalo, me senti sozinha mais uma vez; por mais que agora tivesse um colega de quarto, a sensação, nesse momento, era a mesma de quando não tinha.

Pois é, Liel não tinha dado sinal de vida até agora. Queria conversar mas nem sei se ele vai aparecer em casa. Onde que esse moleque se meteu?

Triim!

De repente, meu celular tocou. Quando o peguei em mãos, vi que o Aspen estava me ligando.

— O que foi? Tu acabou de sair. Só falta me dizer que você esqueceu alguma coisa?

— Marcy, tive uma ideia de como resolver sua situação.

Arregalei um pouco os olhos, me ajeitando no sofá. Mandei ele dizer qual era o novo plano e, sem dar muitos detalhes, ele explicou da seguinte maneira:

— Seguinte, você deve lembrar daquele dia que tu enviou o currículo pra minha chefe na cafeteria, certo? Ela me informou que iria te chamar amanhã para a entrevista e… Bem, é provável que você encontre o Liel no trabalho.

— Tá, vou encontrar ele e…?

— Olha, vou discutir isso melhor contigo amanhã. Já vou ter que desligar.

Ele claramente estava apressado. Depois de dar “tchau”, a chamada terminou. A única coisa que eu poderia fazer por agora era esperar; ou pelo Liel para tentar conversar, ou pelo próximo plano maluco que o Aspen vá criar.

 



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