Volume 1
Capítulo 01: Você me tira do sério
Tic… tac… tic… tac… tic… tac…
Esse barulho é familiar. Onde estou? Parece que perdi noção do tempo.
O som irritante nunca parava. Era como se fosse um daqueles pendões de madeira que iam pra lá e pra cá. O ruído dos infernos. Não lembro por que isso me incomoda tanto. Poderia tentar me recordar de quando ouvi esse barulho. Dessa vez, sem que eu me esquecesse.
Nos meus sonhos, tudo fica mais claro quanto mais tempo passo dormindo. O único problema é que não lembrarei de nada caso alguém me acorde.
— Marcy? Tá aí?
Apenas ignorei, pois queria aproveitar a minha soneca. Pena que isso não durou por muito tempo, pois continuaram chamando pelo meu nome.
— Sigh… Puta que me pariu, dá um tempo, moleque — resmunguei, virando minha cabeça por cima da mesa.
— Bora, mulher. Acorda. A aula já acabou. Você não pode ficar na sala.
Tinha me esquecido, mas esse era outro daqueles finais de tarde chatos pra cacete; deve ter sido a milésima vez que dormi na mesma aula de sexta-feira. Mais alguns cochilos desses e provavelmente vou ficar de final na matéria, e apenas nessa pois é a única que não suporto.
E esse aí que me acordou? Sendo sincera, não me recordo o nome dele. Quando começou o novo período, esse foi um dos calouros que acompanhei e tive uma das piores experiências de vida.
Não é alguém problemático, não me leve a mal; o que me fez detestá-lo foi o seu vício em videogames. Não é à toa que ele sempre tentava me arrastar pra tudo quanto era rolê que envolvia essas coisas. Era bem incômodo, mas pelo menos ele não me odiava como os outros e isso já estava de bom tamanho.
— Tá, garoto. Que horas são? — Me encostei na cadeira.
— São 18:10. Já já vamos sair com os moleques do terceiro período. Você não quer vir com a gente?
— Não vai rolar. Divirtam-se por lá.
Dessa vez, nem acompanhá-los eu podia. Tinha outros planos em mente. Não estava afim de um joguinho de luta pra me estressar, muito menos da companhia de alguém que mal conheço ou tenho algum tipo de rixa. Hoje apenas precisava de um esconderijo, algum lugar para pensar em algo que não fosse nessa maldita vida de universitária.
Poderia ir numa praça no leste da cidade, ou talvez nos inúmeros jardins que ficam abertos ao público. Definitivamente não faltavam opções. A questão é que não estava afim de longas viagens a pé, então só havia um lugar ideal nessa situação.
E esse lugar era a cafeteria.
Quase todo final de aula arranjava alguma desculpa para ir naquele café. A clientela não era um problema nessa parte do dia e era bem silencioso. Sem contar que, como os meus amigos trabalham lá, conhecia todos os funcionários e não precisava me preocupar com estranhos.
E quando digo “estranhos”, estou me referindo aos esquisitos da universidade. Sabe, aquelas patricinhas loiras, o incrível clichê de jogador de futebol americano ou qualquer variante desses padrões. São eles.
Quando pus os pés no interior climatizado, senti toda negatividade ir embora num piscar de olhos. Pouco tempo depois da minha chegada, um dos baristas se aproximou, me cumprimentando.
— Boa noite, Marcy!
Esse é o meu melhor amigo, Aspen, ou também mais conhecido como “calvão barbudo rato de academia”; um clássico extrovertido que adota um introvertido — eu. Como típico dele, não desgruda dos seus amigos e vive falando das coisas que gosta. Às vezes ele pode ser bem intrometido. Não é por mal, mas dá vontade de dar um tapão na cara dele quando isso acontece. Felizmente, a cafeteria é um lugar público, então é mais tranquilo.
— E aí. Boa noite. Tem alguma mesa mais distante que eu possa ficar?
— Claro. — Ele logo apontou. — Pode esperar lá. Já vou te atender.
Após me sentar, não demorou muito para que o careca se aproximasse com uma canetinha e uma caderneta em mãos, pronto para anotar.
— Vai ser o mesmo de sempre, senhorita? — perguntou, apertando a haste da caneta.
— Hm… Acho que vou pedir um expresso dessa vez. E também um misto quente.
— Um expresso? Mas você nem gosta de café forte.
— Vai que hoje eu goste — respondi. — Ficar na mesmice a vida toda te faz enjoar em algum momento.
Aspen ignorou meu comentário, terminando de registrar o pedido e indo para a cozinha na sequência.
Enquanto esperava ele trazer o meu café, me encostei naquela mesa e fiquei observando o lado de fora do estabelecimento. Era uma maneira de passar o tempo, mas parecia que tudo havia congelado aqui dentro.
Mesmo que anoiteça cedo onde moro, por alguma razão, ainda era um pôr do Sol. Não odeio o dia, não é isso, apenas estou habituada com a noite. Talvez porque boa parte da minha vida se resumiu a saídas noturnas.
É o que chamo de “Os velhos tempos da adolescência”. Digo isso como se eu tivesse mais de cinquenta anos, mas sou tão jovem quanto a maioria dos que estão passando ali fora. Quando digo “velho”, é pela sensação de que parece ter sido há muito tempo atrás.
Grupo de amigos, risadas, festas, drogas e bebidas. Só isso que vem em mente quando tento me recordar. Se começo a repetir certas palavras numa determinada sequência, sempre sonho acordada, ou melhor, alucino.
Tec, tec, tec, tec!
Ah, os sons de baquetas de bateria. Era o início da minha felicidade. Toda vez que ia para algum daqueles shows de rock amadores, esse sonzinho me deixava ansiosa para escutar o que viria a seguir. O som grave do baixo, o agudo da guitarra. Tudo isso me fascinava. Mas… por que que eu…
Tic… tac… tic… tac… tic… tac…
E aqui estou mais uma vez, no dia que escutei esse relógio. Acho que estava numa sala, ou talvez num quarto, não sei. Se pudesse saber ao certo, essa dúvida não invadiria tanto minha cabeça.
Pelo menos uma coisa nunca escapava da memória: as sensações. A dor que carrego no braço direito, assim como todo o ódio que senti daquele dia, não saíram da minha mente. Ainda lembro dos meus punhos calejados e manchados de sangue. Havia feito algo que nunca saiu do meu inconsciente, e talvez nunca sairá.
Não fui além disso. Na verdade, enquanto lembrava, escutava uma voz me chamando. Não pelo meu nome, mas por alguma outra coisa. Talvez não seja na minha mente ou…
— Senhorita? Senhorita?
Não era nas minhas alucinações, era no mundo real. Retomei os meus sentidos e a primeira coisa que me deparo é com um garoto, esse utilizando o uniforme da cafeteria. Com certeza é um funcionário, mas um que não conheço.
Ele parece claramente entediado. Pela insatisfação de sua feição, já deve ser a quinta vez que me chama.
— Ah? O que foi? — retruquei.
— O seu pedido. Te chamaram no balcão já tem um bom tempo, então vê se não fica dormindo e fazendo os outros perderem tempo.
O baixinho foi bem grosseiro, o que me incomodou. Se não bastasse isso, a maneira que ele me encarou com desprezo era irritante. Fazia bastante tempo que alguém tinha me olhado desse jeito; tinha me esquecido o quanto isso me enoja.
— Então tá. — Mantive a educação. — Obrigada.
Assim que agradeci, o menino voltou para trás do balcão, me olhando de relance com aquela mesma feição de antes ao notar que o encarava da mesma forma. O sentimento de ódio aparentemente era mútuo.
Seu semblante me tirava do sério, fazia pensar que preferia qualquer outro desconhecido com o mínimo de bom senso me atendendo ao invés dele. Na verdade, era pro Aspen ter trazido meu pedido. Se ele tivesse vindo, nada disso teria acontecido. E é, foi só falar o nome do diabo que ele veio igual um foguete até a minha mesa.
— Marcy! Perdão! Tive que resolver uma coisa na cozinha e acabei não te atendendo e…
— Manda outra — interrompi. — Quem é esse moleque? Nunca o vi aqui, mas já quero socar a cara dele.
Ele estava bem ofegante. Constantemente fazia pausas para conseguir falar.
— Ele é um novo funcionário que chegou tem um tempinho… Seu nome é Liel. Por acaso ele… te tratou mal ou coisa do tipo?
— Sim. Se não fosse o suficiente, ele ainda me encarou com desprezo.
Expliquei toda a situação de cabo a rabo. A reação do barbudo foi inclinar a cabeça para o lado enquanto franzia as sobrancelhas.
— Marcy, já te falei pra você deixar de julgar os outros apenas porque te olharam torto. Ele ser mal educado eu até entendo, mas não vi nenhum relato sobre essa tal “encarada” que você mencionou.
— Cê nunca reparou nisso? Presta atenção em como ele olha pra outras pessoas e você entenderá o que estou dizendo.
— Garota, tu vive com cara de cu o tempo todo, então meio que você não tem muito lugar de fala. — O careca suspirou, passando a mão por cima da calvície.
— Eu concordo contigo, mas isso não parece só uma carinha de mau humor. É desprezo mesmo.
— Olha, ele já está aqui há alguns dias e nunca cheguei a ver reclamações sobre ele olhar para os outros com desprezo. Digo, ele não tem cara de anjo, mas foi apenas você que reparou isso até então.
Esse barbudo não colaborava por nada. Era como se eu estivesse alucinando de novo e fosse a única capaz de ver aquilo. Será se todo mundo é cego? Não é possível.
Mas até certo ponto, nem sei qual razão de me preocupar com isso. No final, era apenas um funcionário qualquer. Era só vir em outro horário que nada me impediria de saborear um bom capuccino enquanto lia um bom livro. É, é uma boa alternativa.
Quando terminei de comer, finalmente paguei a conta e deixei o estabelecimento. Após isso, segui rumo à minha casa, no caso, aos apartamentos universitários, onde finalmente pude relaxar um pouco e finalmente descansar depois de um dia tão cansativo.
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Dring! Dring! Dring! Dring!
— Vá pra puta que pariu.
Era uma manhã de sábado. Nem mesmo nela eu escapava da maldita trombeta dos infernos que chamamos de “despertador”. Mesmo que hoje não tivesse aula no meu curso, eu ainda tinha rotina para cumprir: lavar o rosto, me alimentar, escovar os dentes e resolver meus problemas de adulta. Não era a mesma correria da semana, mas ainda eram coisas a se fazer.
Enquanto enxaguava minha boca em frente ao espelho do banheiro, ouvi uma batida na porta.
Toc. Toc. Toc.
Já sabia que alguma coisa não estava certa. Não era comum isso acontecer. Primeiro que não tenho muito contato com os vizinhos, assim como nunca recebi visitas ou reclamações de algum deles. Se não me falha a memória, as últimas cinco vezes quem apareceu no meu apartamento foi o porteiro do prédio, sempre trazendo alguma pessoa que seria meu novo colega de quarto. O que me restava era torcer para não ser a mesma coisa das últimas visitas.
— Você aqui? Que surpresa. — Fui irônica.
Dito e feito. Era o Conrad, o velhinho da recepção que vivia com a cara enfurnada num jornal.
— Quer que eu seja direto ao ponto? — O porteiro ajeitou o seu boné.
— Por favor.
— Você terá um novo colega de quarto.
É, por que esperei que fosse ser algo diferente? Fiquei muito mal acostumada a passar tanto tempo sozinha que é até difícil aceitar novas pessoas. Lá se vai minha querida paz e solidão.
— Gr… Que inferno. Pelo amor de Deus, Conrad, não me diga que é outro festeiro ou um tarado que fica espiando as coisas dos outros.
— Não, não. Pode ficar tranquila. Dessa vez eu garanto que não é alguém tão complicado. Ele está ali.
Quando o porteiro apontou para o final do corredor, notei uma presença familiar. O cabelo tingido de vermelho nas pontas… já tinha visto isso em algum lugar. Ah, agora me lembrei. É o moleque insuportável da cafeteria.
Como eu gostaria que isso fosse apenas mais um sonho. Não acredito que vou ter que aturar esse desgraçado debaixo do meu teto. Por favor, alguém acabe com meu sofrimento ou me acorde desse terrível pesadelo.
— Liel Cunningham, essa é a Marcy Rosenheim. — O porteiro já começou as apresentações assim que ele se aproximou. — E senhorita Marcy, esse é Liel.
Acenei para ele, mas sua reação foi apenas me dar o dedo do meio. Eu ainda mato esse verme.
— Espero que os dois se deem muito bem. Sem mais expulsões, senhorita Rosenheim.
Sempre achava um saco quando Conrad me tratava como uma criança da quinta série. A maneira que ele me lembrava de quantos colegas meus meteram o pé por eu ser a pessoa mais insuportável era algo bem incômodo.
Não que eu tivesse culpa, pois todos eram muito problemáticos. A questão era que sempre recorria aos piores métodos para expulsar eles — pois a coordenação não é competente o suficiente para cuidar desses assuntos. Resolver tudo com as próprias mãos nunca foi algo tão recomendado, por mais eficiente que fosse.
— Oh, garota. Poderia sair da frente? Eu quero entrar.
— É só passar, moleque.
Agora eu tinha que me concentrar em tentar ser o mais amigável possível. Não queria aumentar meu histórico maldito e receber outras reclamações.
Pela maneira que ele rondava o ambiente, com certeza nunca tinha vindo em um dormitório antes. Tentei apresentar os cômodos como qualquer outro veterano faria, mas a única reação dele foi se jogar no sofá da sala e começar a mexer em seu celular.
— Cê só pode tá de brincadeira.
Liel não prestava atenção em nada que eu dizia. Falei sobre regras do apartamento, expliquei como algumas coisas funcionavam, mas a única coisa que escutava era “uhum” toda vez que terminava um tópico.
Que moleque irritante. Qualquer coisa que ele fazia me tirava do sério, e por causa desse merda, agora minha vida estava destinada à decadência.
O que eu deveria fazer? Talvez apenas ignorar e seguir minha vida? Até então era a única opção que vinha em mente. Faço isso com todas as coisas ruins que acontecem, mas esse é um caso a parte.
Na verdade, eu preciso sair, relaxar a cabeça e pensar numa maneira mais adequada de lidar com isso. Mais uma hora aqui dentro vai me fazer jogar alguém pela janela do segundo andar.
— Aê, tampinha. Eu vou sair pra comprar umas coisas e perto de meio-dia a gente vai almoçar, fechou?
Ele apenas acenou com a cabeça, concordando.
Respirei fundo após o meu aviso. Depois de girar a maçaneta, apenas saí e segui pelas escadarias até chegar na recepção do prédio. Antes de pôr os pés do lado de fora, comecei a conferir tudo em minha bolsa para ver se não esqueci algo dentro de casa.
— Ah, meu celular.
Voltei todo o caminho. Destranquei a porta do meu apartamento e entrei, passando pelo primeiro corredor do cômodo que levava até a sala.
O garoto não estava lá. Olhei na cozinha, na despensa e no banheiro, nada. Imaginei que estivesse no quarto, então fui conferir; não estava lá também. Será se ele tinha saído? Não tinha como saber, então não me importei. Bem, pelo menos até algo estranho acontecer.
Quando ia sair do recinto, escutei um barulho de madeira velha rangendo. Olhei para o armário, a única coisa feita desse material no ambiente, e um vulto passou por cima dele.
— Taporra.
Me encostei na parede de concreto, espantada. Queria ter visão de todo o ambiente; ser capaz de perceber qualquer movimento suspeito. Não era alucinação da minha cabeça, sabia disso melhor do que ninguém. Nunca que minha cabeça elaboraria algo desse tipo.
Tudo parou por um momento. O silêncio, por mais agradável que seja em muitos momentos, agora era amedrontador; havia algo rastejando por algum lugar do meu quarto e eu sentia uma presença se aproximando mais e mais à medida que procurava desesperadamente pelo ser.
A ausência de som logo foi interrompida. Meu celular, que era o que estava procurando desde que cheguei aqui, caiu diante dos meus olhos. Ao ver de onde ele tinha vindo, em meio às sombras, vislumbrei o inesperado: chifres vermelhos na parte superior da cabeça, orelhas pontudas que pareciam com a de um elfo e um rabo preto que balançava pra lá e pra cá.
Engoli o seco na garganta. A única coisa que saiu da minha boca foi:
— Que merda é essa?!