O Condenado Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


volume 1

Prólogo

Era fim de semana e como de costume o vilarejo Ponto Final estava agitado. Carruagens e cabriolés não paravam de chegar trazendo figuras influentes de outras regiões. Até mesmo os moradores da distante capital do reino de Aurora se aventuravam pelas perigosas estradas infestadas de ladrões e bestas apenas para poderem estar ali.

O motivo para isso todos sabiam, mas ninguém falava. Não era pela pobre culinária, muito menos pelas luxuosas hospedarias, afinal até mesmo as deslumbrantes carruagens que os traziam eram mais aconchegantes do que os casebres que compunham a miserável aldeia.

Todos os forasteiros recém-chegados dirigiam-se para um mesmo lugar, uma minúscula cabana que ficava na parte mais afastada. Olhando-a de fora parecia impossível hospedar tantas pessoas, mas ocultada pelas finas paredes existia uma comprida escadaria que levava direto para as profundezas de Ponto Final.

Escondido abaixo do pacato vilarejo ficava o Coliseu dos Condenados, um lugar famoso por seus poderosos gladiadores que eram obrigados a lutar entre si até a morte.

Ninguém dava importância se eles estavam ali lutando contra a sua vontade, pois todos sabiam que aqueles homens eram prisioneiros condenados à morte por cometerem os mais bárbaros e hediondos crimes dos quais não se poderia citar.

Hoje não foi diferente do usual. Abrindo o espetáculo estava Connor, O Gigante ― como era conhecido.

O Gigante, como o próprio apelido diz, era um homem enorme com mais de três metros de altura. Sua cara carrancuda lembrava a de um ogro das montanhas do sul e seus braços avantajados por si só impunham terror ao coração das pessoas.

O narrador anunciou e em meio a eufóricos aplausos Connor entrou na arena carregando um enorme machado. Seu robusto corpo, vestindo nada mais que um calção, era marcado por cicatrizes profundas, o que o tornava ainda mais assustador. No entanto, o que mais chamava a atenção eram as imagens de trinta e sete ossos cruzados em seu peito, cada um representando uma de suas vítimas.

― Do lado direito está ele, o favorito para essa batalha, O Gigante! ― bradou o narrador com entusiasmo. ― Esse homem brutal já matou mais do que um Rançoso Montanhês! Nove dos azarados tiveram seu fim aqui, nesta arena banhada de sangue. Será que hoje ele fará sua trigésima oitava vítima?

A plateia explodiu em excitação, gritando e aplaudindo.

― Do outro lado, fazendo sua estreia, o garoto Tércio de quatorze anos...

Um jovem sujo e de cabelo negro, quase da altura dos ombros, mascado nas pontas e todo desigual como se tivesse crescido em tempos diferentes, surgiu.

Ele vestia uma bermuda surrada e uma camisa que mais parecia um saco de batatas rasgado. Seus pés descalços arrastavam-se pelo chão enquanto caminhava rumo ao centro da arena, sem muita motivação. O ombro caído, a expressão abatida. Cada pedaço de pele exposta, desde o rosto aos braços eram marcados por cicatrizes, que iam de queimados a perfurações.

Connor, que media quase o dobro do pequeno, o olhou de cima e exprimiu um sorriso sinistro que carregava a hediondez de uma mente cruel.

― Eu vou esmagá-lo! ― ameaçou, fazendo um gesto com a mão.

Entretanto, Tércio apenas o olhou sem demonstrar qualquer emoção, apático, imperturbável.

Neste tempo, cochichos começaram a se alastrar pela plateia, todos se questionando o que um garoto tão novo fazia em um lugar como aquele.

― Não se deixem enganar pela aparência ― repercutiu a voz do narrador através do Coliseu subterrâneo. ― Apesar de parecer inofensivo, Tércio ganhou notoriedade aos dez anos de idade quando friamente matou todos os membros de sua família queimados.

Murmúrios e vaias se espalharam pelo recinto.

Hoho, nada mal, moleque ― disse Connor, impressionado.

― E isso não é tudo! Este garoto de aparência inocente, após massacrar seus familiares, não satisfeito, assassinou outras quatro famílias antes de enfim ser preso. Quem sabe quantos mais ele teria executado se não tivesse sido capturado pela guarda real...

Era exatamente como o narrador falou.

Tirando suas vestes maltrapilhas, Tércio parecia apenas um jovem comum, com um rosto nada aterrador que, se julgado pela aparência, diriam ser um típico camponês.

Mas a verdade é que aquele garoto de feições simplórias se tornou conhecido por uma série de assassinatos que há quatro anos causou terror nos cidadãos do reino de Aurora.

― Pois bem, gladiadores! Preparem-se para a batalha...

Quando a partida estava prestes a começar, Connor foi caminhando sem muita pressa rumo ao pequeno adversário. Um sorriso diabólico percorria o seu rosto medonho à medida que fitava o inimigo.

Por outro lado, Tércio se mantinha indiferente. Mesmo estando desarmado, ele não demonstrava medo ou receio, sequer um sentimento de prudência sombreava seu rosto enquanto assistia o outro lado se aproximar.

A euforia estava no máximo. As pessoas gritavam e badernavam, loucas para o início do espetáculo. Talvez fosse a selvageria do lugar no qual se encontravam, porém diante do inevitável confronto, seus títulos e posições ficavam em segundo plano e no lugar a rudeza tomava conta de seus seres, que se entregavam a uma excitação ambígua.

― Acaba com ele Connor!

― Eu aposto dez Mágitas no grandalhão!

― Vinte, no garoto!

As pessoas da arquibancada gritavam, aplaudiam e apostavam, ávidos pelo sangue que seria derramado e os berros tortuosos que seriam proferidos.

Tércio olhou em volta do estádio, estudando seus admiradores.

O que será que estava pensando? Será que se sentia animado por ter tantas pessoas assistindo-o lutar até a morte? Ou não dava a menor importância para aquilo tudo?

Isso era impossível de dizer, pois naquele momento seu rosto era gelado, neutro em todos os aspectos.

― Que comece a luta! ― anunciou o narrador.

A plateia vibrou, entusiasmada. Era como se uma luxúria louca e febril tivesse tomado conta do lugar.

Connor de imediato disparou feito um animal selvagem em direção a Tércio.

Todos no Coliseu ficaram impressionados com o gigante que corria como um raio atraído pelo pequeno indefeso.

Subjugado pelo peso descomunal do ser hediondo, o chão, em sua solidez quebradiça, tornou-se uma casca frágil prestes a se romper a cada pisada.

Perante o avanço bárbaro, até mesmo aqueles que não estavam envolvidos na batalha se erguiam cautelosos de seus assentos se preparando para correr, receosos pela real possibilidade da criatura mudar de trajetória e investir contra eles.

Quando se aproximou o suficiente de Tércio, Connor ergueu o machado numa demonstração impetuosa e o girou. Seu objetivo era claro... Dividir o oponente ao meio.

O barulho do aço cortando o vento enquanto mirava o garoto pôde ser ouvido a metros de distância. O silvo funesto que se levantou provocou arrepios nas almas mais fracas que se encolheram na segurança de seus assentos.

E naquele instante, decepção sombreou os rostos que compunham a plateia, pois a cena se desdobrando diante de seus olhos era insatisfatória.

Eles, que buscavam um espetáculo sangrento, não podiam deixar de se sentirem frustrados, dado que a luta mal havia começado e já estava para terminar.

Tércio achava-se congelado em frente ao gigante que tentava ceifar sua vida.

Ele não demonstrava nenhum sinal de resistência ou emergência. O garoto havia sido tomado pelo terror que o brutal assassino representava.

Mas isso era algo que não podia ser ajudado, afinal quem poderia culpar o pequeno de temer o hediondo colossal?

Connor olhou de cima para o jovem e sorriu com desdém. Pensou que a essa altura já não existia modos de desviar de seu feroz ataque.

― Apodreça no inferno, pivete! ― vociferou.

O estrondo do machado colidindo com o piso da arena ecoou por todo o Coliseu. A força foi tanta que rachaduras se espalharam pelo chão, lançando terra e poeira em todas as direções.

A luta acabou... foi o que muitos pensaram.

Mas então...

A plateia, que há pouco fazia barulho, calou-se. Eles não entendiam o que tinha acabado de acontecer.

Tércio, que deveria ter sido partido ao meio, estava ao lado do Gigante, longe do perigo e sem um arranhão sequer.

O pequeno tombou a cabeça para encarar o grandalhão e em sua face a mesma indiferença e desânimo podia ser notada.

Vendo a maneira com que era fitado, o rosto de Connor se contorceu em fúria. Com um rugido que ressoou pelo Coliseu, começou a puxar o machado que estava cravado no chão. O solo se levantou junto da lâmina afiada, soltando nacos de terra que se despedaçavam conforme eram erguidos.

― Maldito! você está me fazendo de idiota? ― bufou.

O covarde assassino estava furioso.

No momento de seu ataque, pensou que sua vitória estava garantida. Mas no último segundo, como se não fosse nada, aquele minúsculo pivete desviou de seu poderoso golpe e isso o fez se sentir um tolo.

As mãos do Gigante envolveram o cabo do machado com força o suficiente para rachar a madeira. Ele se preparou para desferir outro golpe...

No entanto, seu rosto, que antes demonstrava tamanha fúria, tornou-se branco, esquálido em um tom insalubre. Mesmo Connor, um homem com total confiança em sua força monstruosa, sabia que “aquilo” era perigoso.

Sobre a palma da mão direita de Tércio um diminuto brilho alaranjado bruxuleava. Era uma chama tão pequena que mal poderia acender uma fogueira, quem dirá queimar um corpo tão imenso.

Mas então, como se alguém tivesse jogado óleo de baleia sobre o lume, o brilho aumentou e uma labareda violenta se manifestou, envolvendo parte do braço do diabólico garoto.

Ao ver aquela cena, Connor se desesperou. Ele sabia que se não fizesse algo rápido estaria em grandes apuros.

Uuhaaa! ― urrou O Gigante enquanto girava o machado.

Contudo, antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, Tércio esticou seu braço e lançou suas chamas.

A metade superior de Connor foi envolvida por uma furiosa labareda que explodiu, abraçando seus entornos e contornos.

O assassino colossal gritou e esganiçou de dor enquanto era queimado. Seus rugidos agonizantes romperam de sua garganta, rasgando o ar e levando muitos dos espectadores a taparem os ouvidos. O cabo de seu machado se transformou em cinzas e a lâmina voou sem rumo, atingindo a parede da arena do outro lado.

A plateia se exaltou. Gritos de animação tomaram conta do Coliseu Subterrâneo. Nenhum deles esperava ver tal reviravolta. Mesmo aqueles que apostaram no pequeno não acreditavam em sua vitória, só o fizeram por diversão.

Mas agora, como em uma passagem dramática dos teatros, o pequeno estava de pé enquanto o gigante se ajoelhava.

Com olhos desinteressados, Tércio fitou o adversário que mesmo ajoelhado se mostrava em maiores alturas.

― Você... é um... Mago? ― balbuciou Connor com dificuldade, olhando para aquele rosto sem expressão. Mas o outro lado não respondeu.

Ele apenas continuou encarando O Gigante, sem dizer uma única palavra. Seus olhos não possuíam brilho, eram desmotivados, fracos.

Foi nesse ponto que o assassino colossal reparou. Observando mais de perto, sob as partes rasgadas da “camisa” imunda do garoto, era possível ver cicatrizes profundas que marcavam toda sua pele, não apenas os braços, as pernas e o rosto do pequeno. Existia tantas delas que num primeiro olhar se mostrava impossível contar todas.

Aquelas eram marcas de seus dias na prisão, marcas das torturas imbuídas pelos seus algozes, marcas de incontáveis batalhas pela sobrevivência.

Nesse momento, o narrador, que cantava animada com os acontecidos, informou a todos:

― Cavalheiros e Damas, não sejam enganados por seus olhos! Esse garoto é na verdade um temível Atroz!

E mais um vez a plateia foi tomada por murmúrios. Duvidando dos próprios ouvidos, muitos se viraram para o lado e questionaram seus parceiros.

― Eu escutei direito? Ele disse um Atroz?

― Esse garoto é um herege? Um monstro?

Diziam as vozes que se espalharam feito um enxame de abelhas, ganhando força e volume, até que de repente se transformaram em gritos raivosos e vaias.

― Mate o herege!

― Monstros não merecem viver!

Buuu! Monstro!

O clima, antes animado, transformou-se em vaias que se espalharam em todas as direções, ecoando através das paredes cavernosas e ganhando mais força.

Mas apesar dos gritos raivosos e reclamações, Tércio apenas contemplou seus arredores sob um olhar desinteressado, sem dar muita atenção.

Connor se apoiou no piso da arena e com dificuldade se ergueu. Seus olhos não mais demonstravam fúria. Agora ele estava cauteloso, pois sabia que mesmo sendo um mero garoto, seu adversário era alguém perigoso.

Eles se encararam por um segundo...

E feito um animal selvagem, O Gigante desferiu um soco contra o pequeno, que desviou sem grande dificuldade, deslizando para longe do alcance do inimigo.

O assassino lançou uma sequência de ataques violentos, socando sem dar tempo para que seu oponente voltasse a usar magia.

Mas Tércio se aproveitou de seu corpo diminuto para desviar das investidas que, em determinados momentos, mostravam-se desajeitadas e vagarosas. E então, mais uma vez...

“Boom”

Chamas explodiram no peito de Connor!

Contudo, sem se render ao calor exorbitante, O Gigante saltou entre o fogo e continuou seu ataque impiedoso.

Connor sabia que sua vida dependia da vitória. Era por isso que mesmo a dor sendo insuportável, ele suportou. Mesmo sua pele sendo coberta por queimaduras e bolhas, não parou.

Entretanto, mais uma vez ele foi atingido por aquelas chamas cruéis.

E pela segunda vez O Gigante se ajoelhou. Todo o seu corpo doía, até mesmo respirar era difícil. Mas ele não poderia se render agora, não depois de se esforçar tanto.

 E, com um rugido de dor, tornou a se levantar, berrando a plenos pulmões para criar coragem e quem sabe, por sorte, manter o ímpeto de continuar atacando.

Determinado, Connor olhou para o pequeno adversário. Mas sua determinação logo se transformou em desespero.

As chamas que antes bruxuleavam na mão direita de Tércio agora cobriam os dois braços, estendendo-se até a altura dos cotovelos.

“Acabou!”; naquele instante O Gigante aceitou a derrota. Sabia que não havia nada que pudesse fazer contra aquilo.

E, sem demonstrar misericórdia, Tércio lançou suas chamas...

 


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