volume 1
Capítulo 16: Conhecendo o dormitório
Darcy gritou tão alto que Tércio teve certeza que as pessoas passando do lado de fora da escola escutaram, talvez até mesmo os soldados protegendo o portão.
Seu berro se espalhou de tal forma que poucos instantes depois foi possível escutar uma porta distante batendo e um par de sapatos se chocando contra a madeira, correndo com grande aflição. E depois disso não demorou muito tempo para um homem entrar na sala, ofegante e o rosto um tanto vermelho.
Tratava-se de um homem de estatura elevada, cabelo curto e de tom escuro. Seu rosto não apresentava nada chamativo ― uma cicatriz herdada em batalhas sangrentas, beleza inigualável ou traços grosseiros de masculinidade ―, mas seus olhos exibiam uma pureza confiável.
Entretanto, a despeito da aparência simplória, suas roupas eram dotadas de uma grande extravagância. Ele vestia uma camisa de mangas longas em cujo marcante matiz violeta era capaz de brilhar até mesmo sob as luzes mais efêmeras. A calça era uma combinação perfeita da última peça; tom e textura iguais, tecido feito por um só tecido e tamanho preciso para um corpo esbelto. E para completar, ao redor de seu pescoço e cobrindo todo o ombro era possível notar o começo de uma chamativa capa carmesim ilustrada por belos arabescos florais.
No momento em que o homem entrou na sala ele foi logo falando:
― Me chamou, Srta. Wovous?... Ah, Dir.ª Eliza, e Kay. Quando voltaram? ― De um sujeito assustado, sua postura mudou para alegria e nostalgia ao notar a presença daqueles dois.
― Acabamos de voltar! ― respondeu a duquesa, desmotivada. Pensar nas broncas que ainda receberia consumia sua energia.
― Fico feliz que estejam bem. E como foi...
― Vocês podem conversar outra hora ― intrometeu-se Darcy, lançando um olhar de censura para o recém-chegado. ― Eliza e eu temos assuntos a discutir.
― En- entendo. ― Embora soubesse que não era o alvo da fúria da conselheira, ainda era difícil se manter impassível diante de sua voz severa. ― Precisam de mim para algo? ― Henry forçou um sorriso e tentou, da melhor maneira possível, parecer aberto a “pedidos”.
― Leve esse garoto ao dormitório! ― ordenou a mulher severa. ― E o aloje em um quarto.
E foi nesse momento que Henry olhou na direção de Tércio, percebendo pela primeira vez sua presença. Seu choque ao ver aquele menino tão peculiar não foi diferente de todos os outros. A roupa rasgada em diversas partes, coberta de sangue, poeira, barro e outras coisas, prendeu sua atenção extraordinariamente. O espanto foi tão grande que por um instante seus pensamentos tomaram o controle de suas ações e seus pensamentos vagaram, tentando entender como uma criança poderia chegar naquele estado deplorável.
Aquela cena, somada aos seus delírios sombrios, o levou a um estado de transe que durou alguns segundos. Mas ao perceber o que estava fazendo, ele levantou a cabeça, pigarreou algumas vezes e quando recobrou a compostura, abriu um sorriso sincero enquanto estendia a mão num gesto amigável.
― Prazer em conhecê-lo! Eu sou Henry Valérios! ― apresentou-se de uma maneira bastante cordial.
― Tércio! ― retribuiu o cumprimento.
― É um prazer, Tércio.
Foi um comprimento comum e bastante cordial, considerando as partes envolvidas. O cheiro forte exalando do garoto não o incomodou, nem mesmo trouxe repulsa para sua pessoa distinta. E quando soltaram as mãos, ele não usou a capa para se limpar com bastante sutileza.
Henry se mostrou bastante sincero em sua apresentação e parecia disposto a trocar mais algumas palavras amigáveis. Mas quando olhou para o lado, reparou que a conselheira estava começando a ficar com a cara vermelha.
Sabendo o que estava por vir, o sujeito esbelto e de olhar bondoso colocou a mão no ombro de Tércio e logo tratou de arrastá-lo para fora da sala enquanto dizia: ― Então, vamos indo. Eu lhe mostrarei onde fica o dormitório dos garotos.
― Até mais tarde. ― disse Kay, sorrindo e acenando de uma maneira bastante dócil, apesar do tom malicioso e do semblante pouco confiável.
― Mais tarde irei passar em seu quarto para desejar boa noite ― afirmou a duquesa fujona, que precisou gritar para ser ouvida.
Após saírem da sala de Eliza, Henry guiou Tércio de volta para o segundo andar. E quando chegaram lá, eles foram para uma escada que até o momento o garoto esfarrapado não tinha visto. A escadaria os levou para um corredor que ― de uma forma estranha ― apesar de ser idêntico aos restantes, ainda assim preservava suas diferenças.
A primeira dessemelhança que se notava era o corredor em si, o qual se mostrava mais largo do que os demais, com exceção do último andar. As salas também eram bem maiores do que as restantes, algo que ficava óbvio devido às portas posicionadas longe umas das outras. E por falar nelas...
Apesar de possuir o formato ordinário encontrado nas salas anteriores, as portas que selavam a passagem para outras áreas do andar eram deslumbrantes. Desenhos graciosos e distintos podiam ser vistos gravados em cada uma delas. A maçaneta era de ouro maciço ― pelo menos brilhava como uma ― e os entalhes marcando os contornos apresentavam uma sutileza admirável.
Enquanto passava por aquela área, sempre dois passos atrás de Henry, Tércio ficou bastante curioso, imaginando qual era o propósito daquele lugar. Mas apesar do fascínio despertado, ele não teve muito tempo para formular teorias, pois a saída estava logo ali.
E não demorou muito para que eles chegassem em um portal em forma de arco que dava passagem para uma paisagem diferente, mais escura.
Do lado de fora da escola, a aproximadamente cem metros de distância, era possível ver dois enormes prédios, um do lado do outro e ambos construídos com sólidos blocos de pedras. Não eram tão grandes quanto à escola, mas ainda assim eram gigantes. De longe e no escuro era difícil saber, mas de perto notava-se a juventude em suas construções, pois os blocos estavam em perfeito estado ― sem lodo, desgastes ou restos de casa de passarinho.
― O da direita é o dormitório das garotas e o da esquerda é o dos garotos. Não é permitido para os garotos entrar no dormitório feminino, então lembre-se disso. ― avisou Henry, franzindo a sobrancelha esquerda de uma maneira sugestiva. Não havia censura em seu tom de voz, apenas uma nota discreta de travessura.
E Tércio respondeu da seguinte forma:
― Eu sou sorrateiro.
Ouvindo isso, Henry soltou uma divertida risada. Ele esperava que o garoto lhe desse uma resposta tão desavergonhada e direta.
― Venha, eu vou te mostrar as partes essenciais do dormitório. Depois vamos escolher um quarto para você. ― O gentil sujeito da capa esvoaçante fez um gesto e rumou em direção ao dormitório masculino.
Assim como na escola, o dormitório era claro como o dia. Na entrada ficava um saguão monumental, com mesas e confortáveis sofás espalhados por cada canto do recinto. Na base gigantesca de algumas colunas de pedra que sustentavam o telhado a mais de dez metros de altura, trazendo vida ao lugar, videiras belas e verdejantes podiam ser vistas escalando o difícil obstáculo. E nas paredes laterais ficavam imensas janelas que davam vista para a parte exterior do dormitório. Mas como era noite, não se via muita coisa.
Segundo Henry, aquele era o salão das vozes perdidas e era usado pelos alunos para jogar conversa fora nas horas vagas. No entanto, agora estava vazio.
Seguindo caminho, os dois cortaram o saguão e quando passaram por um gigante portal em forma de arco, viram-se em um largo corredor.
― Aqui é a parte em que ficam os quartos usados pelos alunos que estão no primeiro ano da academia. Os que estão em seu segundo ano ficam no segundo andar e assim por diante ― explicou Henry apontando para os quartos que se encontravam ao longo do corredor.
E nas portas, que estavam fechadas, notava-se a presença de números que iam de um até... Bem, Tércio não podia ver até que número ia, mas com certeza passava dos quarenta, já que existiam quartos dos dois lados do corredor.
Eles continuaram andando. Passaram por uma escada, que levava para o segundo andar. E depois do quarto número quinze, Henry de repente virou à direita, em uma passagem localizada entre dois aposentos.
Quando atravessou a passagem, Tércio novamente se viu em um saguão, mas esse era diferente do anterior.
Ao contrário do outro, que estava repleto de acentos confortáveis, nesse existiam diversas mesas alinhadas, formando extensas bancadas capazes de receber centenas de pessoas. Comparado ao anterior, seu estilo era muito simples, pobre em todos os aspectos. Mas apesar disso, ele também possuía largas janelas de vidro com vista para o exterior.
Assim como o outro, esse saguão estava vazio. No entanto, Tércio pôde sentir uma fragrância perfumada vindo de uma sala fechada, localizada do outro lado. O delicioso cheiro fez sua boca se encher d’água e o estômago se revirar de ansiedade. Não sabia o que era aquilo, pois nunca tinha sentido nada igual, mas ele tinha certeza que se tratava de uma iguaria deliciosa.
― Esse é o refeitório e é o único lugar que liga o dormitório feminino com o masculino. ― informou Henry, apontando para uma saída que ficava do outro lado. ― Você teve sorte! O jantar vai estar pronto daqui a alguns minutos. Se tivesse chegado um pouco mais tarde teria perdido.
― Quantos minutos faltam? ― perguntou Tércio, ansioso. Com esse cheiro gostoso contagiando o ar, como sua barriga poderia não rugir feito um leão?
― Creio que ainda falta em torno de quarenta minutos para tudo ser aprontado ― respondeu Henry, forçando um sorriso constrangido. Era um pouco incômodo não poder fazer nada pelo garoto maltrapilho.
Quando descobriu quanto tempo restava, Tércio não pôde evitar de se sentir frustrado. Ainda faltava muito.
― Em quarenta minutos eu mato, limpo, cozinho, como e cago um porco ― resmungou.
Durante a viagem, ele comeu muito bem, afinal Kay é um grande cozinheiro. Mas como o grupo não conseguiu muitos suprimentos na Vila Cinzenta, faltou ingredientes para adicionar nas sopas. É claro, Tércio era capaz de comer qualquer coisa que lhe dessem, desde ratos à baratas bem tostadas. Tudo se transformava em banquete na prisão. Mas essa é uma escola para nobres. Sem sombra de dúvida eles teriam alimentos exóticos em quantidades o suficiente para fazer inúmeros tipos de refeições. Ou seja, uma comida deliciosa o aguarda. Só por esse motivo já valia o risco de ter vindo todo esse caminho.
― Vamos. Agora vou mostrá-lo onde você pode tomar um banho. ― chamou Henry, retornando as apresentações.
Ao voltarem para o corredor principal, os dois passaram por diversos quartos, até que por fim chegaram ao final do corredor. No entanto, não era exatamente o final, pois existiam duas portas dando passagem para outros lugares. Segundo o guia, na da direita ficava o banheiro e na esquerda a área de banho.
Henry se adiantou, abriu a porta da esquerda e juntos eles entraram.
Tércio se surpreendeu ao ver o que tinha do outro lado...
― Aqui é onde os alunos do primeiro ano tomam banho.
A área de banho era incrível! Tércio nunca tinha visto nada parecido antes.
O lugar em que eles estavam agora era uma sala de tamanho considerável, com capacidade para abrigar pelo menos cinquenta pessoas confortavelmente. No topo das paredes laterais haviam canaletas de madeira por onde passava um fluxo abundante de água... Ah, e isso é importante, era água quente. Pois ela fumegava vapor por todo o recinto, deixando a visibilidade nublada e o clima abafado.
As canaletas seguiam ligeiramente inclinadas através das paredes laterais e caia direto em uma grande canalha. Dali para frente, a água era escoada através de diversos tubos com um metro de comprimento e que possui na ponta diversos furos na parte de baixo, criando assim um fluxo agradável de gotas aquecidas.
Tudo isso era fascinante, mas o que mais surpreendeu o ex-prisioneiro foi uma “lagoa” fumegante que se encontrava no nível do chão e ficava do outro lado da sala, ocupando mais da metade da área de banho.
Aquela era a maior banheira que ele já tinha visto na vida. Comparada com a que tinha em sua antiga casa, essa era no mínimo trinta vezes maior. Sem falar que a água usada estava sendo aquecida mesmo não tendo nenhuma lenha à vista, forno ou pedras na brasa.
Tércio estava encantado. Seus olhos brilhavam de admiração.
Percebendo a expressão do garoto, Henry foi logo explicando:
― Está vendo o lugar por onde a água está saindo? Do outro lado há um pequeno canal. Nós colocamos Cristais Escarlates nele para poder aquecer a água. ― explicou ele, apontando para um canto da banheira gigante.
Tércio olhou para o lugar indicado e notou que na parede havia um buraco, no qual, como uma cascata, a água caía preguiçosamente.
― Que cristal é esse que você falou? ― perguntou, curioso. Ele sabia que o reino de Aurora possui uma grande abundância em minerais, mas sabia muito pouco sobre eles, assim como a maioria dos plebeus.
― Ao contrário das Claritas que liberam a luz, os cristais escarlates liberam o calor. E como eles são quentes por natureza, nós o usamos para aquecer a água.
Henry se mostrou um verdadeiro tutor, pois de sua breve aula sobre pedras preciosas, ele se dispôs a ajudar Tércio a se familiarizar com o banheiro e é claro, explicar algumas regras. A casa de banho podia ser usada por qualquer estudante do primeiro ano, mas era proibida qualquer tipo de brincadeira e o aluno que desrespeitasse isso poderia ser expulso. E todos podiam usar a banheira, a qualquer hora do dia ou da noite, mas é preciso se banhar antes.
Mesmo depois de ouvir as regras, o esfarrapado não se desanimou. Tércio tinha que admitir: ele não via a hora de se banhar.
Mas antes existia algo que precisava ser feito. Escolher o quarto em que dormiria.
― Como não chegou nenhum aluno do primeiro ano, você pode escolher o aposento que quiser ― Henry parou no meio do corredor e estendeu a mão, indicando que qualquer uma daquelas portas estavam livres.
― Se tiver uma cama e coberta, o resto num importa ― alegou Tércio, sendo sincero em cada palavra. Ele de fato não ligava muito para o tipo de quarto em que passaria a noite. Desde que fosse um lugar seguro, o resto não importava.
― Sendo assim, você não se importa que eu escolha, certo?
― Não!
― Nesse caso, me siga ― Henry avançou pelo corredor confiante. Parecia ter um objetivo claro em mente, pois sequer lançava um olhar hesitante em direção às portas que estava ignorando.
Eles cruzaram o corredor até voltarem para perto do saguão de entrada.
― Chegamos. Esse é um dos melhores aposentos do dormitório!
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