Volume 1
Capítulo 1.3: Sangue e Ferro (3)
— Então era aqui que você estava, Orba.
O irmão de Orba, Roan, mostrou seu rosto.
Orba, que estava olhando para o céu noturno, rudemente averteu os olhos. Como punição por ir brincar ao invés de cuidar dos animais, sua mãe o tinha deixado sem jantar e ele agora estava do lado de fora do celeiro, emburrado por conta própria. Seu rosto, assim como os joelhos com os quais enterrava a cabeça, estavam cheios de arranhões.
— Você andou brigando de novo?
— Não, eu não briguei...
Orba tinha um temperamento difícil e por isso sempre acabava entrando em uma briga com as crianças da vizinhança. Ele chegou ao ponto de ir até a aldeia vizinha carregando uma espada de madeira para brigar.
Os aldeões que o avistaram, correndo aos tropeços por entre os campos, riram dizendo "ah, lá vai o Orba de novo", enquanto acenavam com as mãos, o assistindo. Claro, depois de cada uma de suas brigas, sua mãe o repreendia com um sermão que quase não tinha fim.
— Por que você não segue o exemplo do seu irmão!? — Era o que ela sempre dizia.
O seu irmão era capaz de fazer qualquer coisa. Quando pequeno, ele sempre folheava um livro velho que seu pai tinha trazido em uma das muitas viagens que fez para a aldeia vizinha e assim, memorizou cada linha que o pai lia, aprendendo a ler e a escrever por conta própria. Roan, também aprendeu, ainda cedo, a fazer cálculos simples de matemática e assim, quando completou dez anos, conseguiu um trabalho como assistente de um comerciante depois de implorar muito. Com isso, ele passou a ajudar também nas despesas de sua família.
Orba, por outro lado, embora tivesse aprendido a ler e escrever com seu irmão, era péssimo em matemática e, acima de tudo, não sabia o que fazer com seu sangue fervente. Quase todas as noites, ele passava horas sem dormir, olhando para o teto. Seu sangue estava sempre gritando no escuro. Depois de cada briga, as suas feridas pareciam arder, como se este sangue ruim tentasse saltar para fora de suas veias.
Nessas horas, ele ficava de pé e ia para fora, onde agarrava a sua espada de madeira encostada em um canto do celeiro. Não importava quantas vezes a mãe confiscasse a arma de brinquedo do menino, Orba sempre fazia uma novinha do zero. Não era incomum também vê-lo balançando a arma até amanhecer.
— Eu não me importo que você saia arrumando brigas.
Disse Roan, sentando-se ao lado dele.
— Mas você tem que ajudar em casa também. A vida de uma mãe viúva é muito difícil. Você sabe né?
Em algum ponto ao longo da fronteira ao sul de Mephius, tinha um lugar conhecido como "Vale da Seca". Embora um rio secar fosse uma ocorrência bem comum em Mephius, neste lugar de terras áridas, cujo o nome fora esquecido pelos mapas, havia uma vila onde Orba cresceu.
Seu pai morreu quando ele tinha dois ou três anos, por isso ele não tinha qualquer lembrança dele. Tudo o que sabia era que o pai tinha morrido num desmoronamento, enquanto trabalhava escavando um túnel na fortaleza de Apta, ao sul da vila. Perfurar os penhascos íngremes ao invés de construir edifícios, foi uma prática comum na construção civil em Mephius.
“Seu pai nasceu apenas para cavar buracos no chão”, ele lembrou que, um dia, sua mãe lhe disse essas palavras em um tom que não era nem de pesar ou ironia. Dito isso, ela mesma também não era alguém que sentia prazer em uma vida de dar duro desde a alvorada até o crepúsculo, todo santo dia. Ela arava os campos estéreis, uma vez ao mês vendia na cidade de Apta as roupas e toalhas que fazia, e cozinhava uma sopa quase insossa para os dois filhos, sem nunca se cansar disso.
Orba também vivia uma vida incolor, tendo como único prazer, a companhia de seu irmão quando o mesmo voltava para casa duas ou três vezes por mês, trazendo muitos livros diferentes.
Livros sobre o Mundo Antigo, de quando a civilização humana deixou seu ninho, para explorar mundos novos. Livros sobre o Rei Mágico Zodias e, acima de tudo, romances históricos com ilustrações coloridas ou histórias heróicas, deixaram Orba totalmente absorvido.
Bravos heróis balançando suas espadas para salvar reinos cheios de perigos, lindas donzelas em roupas finas, aprisionadas em torres altas, dragões ferozes revividos de antigas ruínas – coisas que ele nunca experimentou na vida e as muitas aventuras deslumbrantes que o deixavam perplexo. No entanto, ao fechar os livros, ele estaria de volta àquela pequena e miserável rotina de desespero.
Ele ansiava pelos tempos antigos, como a época em que bárbaros, empunhando longas espadas, eram reis. Mas a verdade era que, desde o momento em que nasceu, foi decidido que Orba viveria sua vida bebendo águas lamacentas e, se ele quisesse fazer mais no futuro, seria muito mais fácil trazer os mortos de volta à vida.
— Sabe, irmão.
Disse Orba, enterrando a cabeça entre os joelhos envoltos por seus braços.
— Eu queria fazer algo muito maior. Muito mais importante.
— Orba, você não tem nem dez anos direito. Esse tipo de coisa não é algo que combine com uma criança dessa idade, não acha?
— Estou falando sério! Olhe para os adultos em volta. Daqui a alguns anos, até eu vou ficar igual a eles. Dia após dia, você trabalha e trabalha, mas a vida não melhora em nada. Aí, mais cedo ou mais tarde, vou me casar e ter meus filhos e se a criança for um "menino rebelde" como eu, um dia ele vai me dizer que quer ir para a cidade, ser um soldado Mephian, ou pilotar uma Nave Garberan, e direi algo como, "ah, na sua idade, eu também sonhava com coisas assim", e então provavelmente rirei junto com os outros adultos enquanto bebo meu chá.
— Hahaha, mas todo mundo é assim! — Roan riu, banhando pelo cálido luar.
A essa hora da noite, podia-se ouvir as vozes cantando, vindo da casa do outro lado da estrada. As vozes alegres de homens embriagados, depois de um dia duro de trabalho. Embora Orba não estivesse prestando a menor atenção nelas.
— Ninguém sabe que tipo de criança o seu filho vai ser no futuro. Existem pessoas que não conseguem viver sem trabalhar duro todos os dias, pessoas que navegam contra as ondas em um barco, velhos filósofos que se enterraram em livros milenares, sacerdotes de Badyne pregando sua verdade as fiéis, generais renomados voando pelos céus em aeronaves de pedra de dragão e até mesmo reis, subjugando nações sob os seus pés. O que eles fazem é tão diferente quanto o dia e a noite, seja encharcando suas espadas com sangue, se afogando em livros ou até mesmo invocando o nome de Deus. Nenhum deles vai ser capaz de te dar uma resposta.
— É claro que não. Eles não têm o menor interesse nas nossas condições de vida. Até mesmo o rei, que está rodeado de luxos, os quais eu nunca terei em toda a minha vida, enche a barriga de comida deliciosa todas as noites sem nem se preocupar. Às vezes, ele leva um grande exército em uma campanha ou fica chocado com a traição de seus companheiros, mas todos os dias ele sente que está vivo. Já eu, nem consigo imaginar em ter uma vida assim. Eu nunca serei capaz. Da mesma forma, nem os reis ou nobres conseguiriam imaginar vivendo as nossas. Essas pessoas... Sim, tome esta noite, por exemplo, eles nem mesmo considerariam olhar para a mesma lua que nós, irmão.
— Eu me pergunto sobre isso... Pode ser que, exatamente porque o rei passa todos os dias assim, às vezes, ele sinta vontade de morar longe da cidade. Talvez, para fugir da convivência constrangedora da corte imperial, ele sonhe em ir até um bar fedorento e se afogar em vinho barato, ouvindo histórias ridículas, enojado de que, todos os dias, não consegue relaxar a guarda, nem mesmo para os seus parentes de sangue mais próximos. E ele provavelmente vai pensar "Ahh, como seria bom simplesmente passar a vida suando a camisa em um trabalho ordinário", sem mais se preocupar em ser alvejado?
— Isso é besteira. Quero dizer, por que ele iria querer uma vida que nem a nossa? Só porque ele não conhece as dificuldades e inseguranças de uma vida assim. Isso não seria um sonho, mas sim, um mero capricho dele.
— Exatamente. Não foi isso que eu te disse? Não existe um ser humano em qualquer lugar do mundo que entenda tudo, saiba o que realmente quer ou saiba quem ele realmente é. Acho que todos anseiam pelo que não sabem, pelo que não experimentaram e também estão procurando onde quer que esteja seu verdadeiro destino. Nesse sentido, eles não são diferentes da gente, são?
— Eu não sei não. Irmão, vocês está querendo me dizer que até o rei, ou mesmo o grande sacerdote, é alguém que não está completamente satisfeito com a vida?
Entretanto, quando o irmão estava prestes a responder...
— Que monte de baboseira difícil é essa que vocês estão dizendo aí?
De repente, Alice apareceu, balançando levemente seu cabelo castanho escuro. Foi então que eles notaram que as vozes cantando da casa vizinha tinham parado completamente. Aparentemente, a garota tinha vindo mandá-los ir dormir.
Ao mesmo tempo, parecia que ela tinha escutado uma parte da conversa, dando um enorme sorriso antes de responder.
— No final, é só perda de tempo. Neste mundo, não importa de onde você seja, em primeiro lugar, Orba, você tem que começar cuidando de sua mãe e trabalhar com afinco, para que possa comer amanhã.
— Você ouviu isso, irmão? Toda vez que uma mulher acha a conversa dos outros muito chata, ela diz que estão falando difícil, que é perda de tempo, e já vão logo achando coisas mais importantes para a gente fazer.
— Ahaha, isso é verdade. — Riu Roan alegremente.
Alice era dois anos mais nova que Roan, mas três anos mais velha que Orba. Quando eles eram mais novos, brincavam de casinha, onde a Alice era a mais velha dos três.
Logo depois, eles começaram a falar sobre as memórias daqueles dias. De quando, por sugestão de Alice, foram pescar no rio e a mesma quase se afogou ao escorregar nas pedras. Ou na vez em que foram dar uma olhada nos cavalos de uma caravana que havia chegado na aldeia e Orba inventou de tentar subir em um deles, fazendo os outros entrarem em um frenesi. Ou quando, porque um menino da outra vila falou que "viu um dragão selvagem", os três foram para o lugar do rumor e acabaram se perderam completamente no intrincado caminho do cânion. Apesar de terem conseguido voltar para casa no mesmo dia, os três tiveram que ouvir um longo sermão...
— Mas daquela vez, a culpa não foi do Doug que mentiu para a gente? Falando nisso, desde então o relacionamento de vocês dois tem sido bem ruim, né Orba? Até mesmo a sua briga de hoje foi com ele...
— Cala a boca.
Seu irmão tinha acertado bem na mosca, mas Orba apenas virou o rosto. A verdade era que a briga de hoje foi por causa da Alice, mas ele jamais admitiria isso...
No entanto, esse momento de felicidade, relembrando dos tempos em que eles brincavam juntos, foi a última vez em que Orba conseguiu conversar em paz com Roan.
Naquela tempo, a Dinastia Imperial de Mephius e o Reino de Garbera já estavam em guerra. Rumores se espalharam de que a cavalaria Garberan tinha cruzado recentemente a fronteira e, apesar de os dois países terem uma longa história de conflitos no que diz respeito à própria definição dessa fronteira. A Fortaleza de Apta ao sul, que ficava perto da aldeia de Orba, também tinha sofrido inúmeros ataques das tropas montadas de Garbera em várias ocasiões.
Eventualmente, Garbera desistiu temporariamente de captura Apta e fingiu lançar um ataque por outra região.
Com isso, foi criada uma armadilha.
Visando-os quando a maioria das tropas estacionadas em Apta tinham sido realocada de volta para a capital imperial, os soldados Garberans começaram um cerco.
Naturalmente, a fortaleza foi obrigada à uma batalha defensiva desesperada. Para resistir até que reforços viessem da capital, o exército Mephian recrutou à força, homens nas aldeias vizinhas e o irmão mais velho de Orba, Roan, acabou sendo um deles.
Claro, sua mãe gritou, chorando. Se havia apenas uma esperança pela qual sua ela trabalhava duro em sua vida quase sem cor, provavelmente era o seu irmão. Embora tenha se agarrado aos soldados que tentavam tirar Roan deles, o irmão gentilmente colocou a mão no ombro dela e disse:
— Está tudo bem, mãe. A ajuda virá da capital imperial a qualquer momento. Por isso, a senhora tem que ser paciente até lá.
Além disso, o pagamento era muito melhor do que o de um assistente de comerciante, acrescentou ele com uma risada.
Orba, ao lado de Alice, estava se despedindo dele, observando as costas de vários dos jovens da vila cruzando as camadas de rocha.
Se eu fosse um pouco maior — Orba pensou.
Eu poderia ir para a fortaleza no lugar do meu irmão. Aí, mamãe também não teria que ficar tão triste e eu poderia até a vri a me destacar entre os soldados.
Depois que Roan partiu, sua mãe, que sempre foi tão devotada ao trabalho, passou quase todos os dias em oração, como se algo dentro dela tivesse se rompido completamente.
Embora, às vezes, ela se lembrasse de ficar na cozinha e preparar uma refeição, quando se tratava do menu, ela agia como se seu irmão estivesse prestes a retornar da cidade, preparando apenas a comida favorita dele. Mas quando a noite vinha e ele não retornava, ela jogava tudo fora, num acesso de raiva.
Enquanto isso, Orba arava os campos que tinham sido abandonados e também cuidava dos poucos animais por conta própria. Durante a noite, ele subia por uma estrada estreita, esculpida nos penhascos, e sempre olhava na direção da capital imperial, procurando as fileiras de armaduras reluzentes, as vastas nuvens de poeira deixadas pelos dragões militares em suas marchas e as figuras majestosas das aeronaves de guerra... Mas ele nunca teve a visão que esperava.
E, quando cerca de três semanas se passaram desde que seu irmão partiu, os residentes de uma aldeia além do vale, que era mais perto da fortaleza do que a vila deles, começaram a chegar, sem fôlego.
— A FORTALEZA CAIU! — Eles gritavam.
A Fortaleza de Apta havia caído perante as forças Garberans que se aproximavam. Eles disseram que os comandantes e os oficiais do exército fugiram, deixando os soldados para trás. Não houve reforços da capital imperial em Apta, pois eles tinham sido mandados para a cidade naturalmente fortificada de Birac, próxima à ravina mais ao norte. Portanto, parecia que a capital imperial já tinha decidido que aquele seria o coração da linha de defesa da fronteira sul. Apta tinha sido usada apenas para ganhar tempo.
E, em relação às terras no meio do caminho, as forças Garberans que estavam acampadas na fortaleza, começaram a devastar tudo na vizinhança. Houve atos de pilhagem, assalto, estupros – uma invasão completa, por assim dizer.
As pessoas da aldeia recolheram seus poucos pertences e, embora quase não houvesse comida, já que a época da colheita ainda não havia chegado, deixaram a aldeia às pressas. Os que tinham conhecidos nas proximidades correram para lá, enquanto os que não , refugiaram-se temporariamente no vale até que os soldados de Garbera fossem embora.
Obviamente, Orba os seguiu, mas no meio da fuga, percebeu que a mãe não estava por perto. Perplexo, ele voltou para a aldeia.
Além das rochas que se elevavam sobre a área das colinas, ele podia ver o panorama completo de sua aldeia, afundando atrás da névoa noturna.
Ela tinha que estar lá. Ela tinha que esperar por seu irmão. Irmão este que provavelmente nunca mais iria voltar.
— Orba? Orba! Onde é que você está indo!? Orba! — Quando a voz de Alice gritou atrás dele, ele empurrou a multidão de lado e voltou com pressa.
Quando finalmente conseguiu chegar ao seu destino, não restava uma única alma viva em sua vila. Ela ficou em completo silencio, como se estivesse morta. Aquele cenário desolado, passou-lhe uma sensação sinistra, como se tivesse chegado a uma dimensão completamente diferente.
Do outro lado do vale, ele podia ver um grupo de homens e cavalos se aproximando, e por isso, Orba correu para sua casa com tudo o que tinha. Quando abriu a porta dos fundos, sua mãe estava lá, preparando o jantar como de costume.
"Roan?" disse ela, virando-se. Mas quando seus olhos se fixaram na figura suada de Orba, seus ombros se encolheram, como se estivesse decepcionada.
— Você ainda estava brincando lá fora, Orba? Vamos, me ajude, que o seu irmão vai chegar em breve.
Lá fora, ouvia-se a rizada tenebrosa dos soldados perseguindo os animais que ficaram para trás. Com medo da fumaça que ia subindo, ele apressadamente tentou impedir a mãe. Contudo...
— Mas que porra é essa!? Não tem nada aqui!
— Que aldeia miserável. Os caras em Gascon tiveram mais sorte. Eu ouvi dizer que eles conseguiram trepar com todas as mulheres.
— Será que não tem nem uma bebida para a gente refrescar a garganta? Dá uma olhada por aí.
Assim que ele pensou ter ouvido aquelas vozes se aproximando, a porta foi violentamente derrubada.
Três soldados entraram num estrondo, cada um deles equipados com uma cota de malha simples, lança e espada. Suas faces estavam enegrecidos pela poeira, deixando apenas os olhos refletindo a luz.
— Ei, gente! Achei uma mulher!
— Ah, mas ela já não é velha? Alguém achou alguma coisa para a gente beber?
Depois de olhar para sua mãe, que segurava protetoramente Orba nas mãos, eles começaram a vandalizar a casa, fazendo o que bem entendiam. Orba estava completamente agachado, prendendo a respiração como um animalzinho tentando não atrair a atenção dos predadores.
Quando os soldados Garberans quebraram a porta, os olhos dele avistaram a espada de madeira, rolando pelo chão. Mas no final, não era nada mais do que um brinquedo de criança. Ele odiava, mais do que ninguém, ouvir esse tipo de coisa e estaria disposto a dar um olhar fulminante em qualquer um que o dissesse, mas agora, precisou lidar com a dura realidade.
Então, enquanto os soldados vasculhavam as prateleiras, eles pegaram os rudimentares talheres de cerâmica de dentro da gaveta e os jogaram, fazendo um som alto, espalhando os pedacinhos quebrados pelo chão. Isso pegou Orba de surpresa, já que eram as coisas que seu irmão Roan usava, e sua mãe, que tinha sido submissa até agora, levantou-se com tanta violência que o jogou para o lado. A partir daí, ela começou a se agarrar às costas de um dos soldados.
— Ei, o que é que você quer, hein?
— Heheh, parece que ela quer se divertir comigo.
Um soldado de rosto vermelho rasgou o vestido de sua mãe, virou-a e tentou violá-la ali mesmo. Ele tapou a boca dela com a mão, quando ela tentou dar um grito e então tirou uma faca pontiaguda de dentro de sua cota de malha coma outra, colocando-a bem na frente dos olhos dela.
— Pare com isso. Tem muita mulher mais bonita e mais jovem, por aí, te implorando para serem levadas para cama, não tem?
— Sim, o gosto de mulheres jovens é excelente, mas as velhas até que não são ruins.
Enquanto ele falava, seu rosto vermelho mostrou um sorriso vulgar. Foi então que o fio de cabelo que impedia que o sangue ruim de Orba explodisse, finalmente se rompeu.
Soltando um grito estridente, ele avançou para cima do soldado em um golpe de desespero. No entanto, ele foi facilmente jogado para trás por um único braço.
Batendo com a nuca nas prateleiras, embora atordoado por um momento, Orba rangeu os dentes e se virou para frente outra vez. E, do topo da prateleira, havia algo que caiu com um estrondo. Algo longo e estreito, embrulhado em um pacote e, com a parte da frente rasgada, emitia um brilho prateado diante dos seus olhos.
Isto é…
Escondendo-o por reflexo, Orba rapidamente rasgou o pacote.
Como esperava, era uma espada curta, de cerca de sessenta centímetros de comprimento. O punho redondo tinha características Mephian. Combinando com sua lâmina delgada, o cabo também era um pouco fino, cabendo perfeitamente na mão de uma criança.
Quando ele a segurou, várias letras estavam gravadas na lâmina.
O, R, B, A...
Foi apenas por um instante - com os gritos de sua mãe, o som do soldado de rosto vermelho removendo desordenadamente sua cota de malha e o barulho dos soldados destruindo a casa. Apesar da onda tenebrosa do sangue ruim fervendo em suas veias, ele afastou esses sentimentos na sua cabeça e, naquele instante, teve uma revelação.
A lâmina foi gravada apenas com “Orba”. Claro, ele não sabia que tal coisa estava em sua casa e também não achava que sua mãe ou seus outros conhecidos teriam preparado algo assim especialmente para ele. Por tudo o que sabia, isso não poderia ser outra coisa além de um presente de seu irmão, Roan?
Mas Roan tinha dado todo o dinheiro em troca dos serviços militares para a mãe. Além disso, uma lâmina como essa não era vendida em uma cidade tão pequena como Apta. Provavelmente, depois de ir para a fortaleza, ele recebeu o armamento de soldado e pediu ao ferreiro que trabalhava no forte para gravar o seu nome.
E então, deixou com a caravana que circulava da fortaleza para os vilarejos. Mas aí, quando chegou em sua casa, a mãe deve ter recebi. No entanto, depois de pensar nisso, ela escondeu a espada para longe do alcance da vista de seu filho. Ela provavelmente achou que seria muito perigoso entregá-la para Orba, ou talvez tivesse ficado com medo de que se tivesse uma espada em mãos, ele fosse embora como Roan.
De qualquer forma…
— Ei, o que é que você está escondendo? — Gritou um dos soldados quando viu Obra agachado.
— Parece que você está segurando algo valioso. Ei, por que não me mostra?
— Isso é meu!
— Não cabe a você, decidir! Vamos, me dê logo isso!
O soldado colocou a mão em seu ombro tentando tirá-lo do caminho com força.
Isso foi mais do que suficiente.
Vamos, venha! — Ele gritou internamente para si.
— Ei, eu disse para me mos- ARRRRRRRRGHHHHHH!!!
Virando-se, Orba balançou sua espada para baixo. Com sangue jorrando do ombro do homem, ele escorregou sob o braço do soldado e correu na direção do outro que estava violentando a sua mãe.
O homem de rosto vermelho desviou os olhos da mãe, saltou para trás e, pegando rapidamente um machado de mão, recebeu o golpe. Orba manteve-se firme e tentou fazer sua lâmina atingir o alvo, mas ainda assim, como a espada era curta e a força de uma criança jamais poderia empurrar um adulto armado. No entanto, em vez de ser facilmente superado, Orba escorregou para o lado.
— PIRRALHO DESGRAÇADO!
Ele desferiu outro golpe com intenção assassina. Orba rolou para o lado e depois de dar um giro, a ponta do machado fincou bem na frente de seus olhos. Naquele mesmo instante, seu sangue gelou.
— NÃO!
Sua mãe agarrou-se aos pés do homem. Enfurecido, ele chutou as mãos dela, virou-se e ergueu o machado ainda mais alto. Quando Orba viu aquilo, a tensão do seu sangue ruim - a ansiedade, irritação, raiva e outras várias emoções que estavam fervendo no corpo do menino por tanto tempo - estava prestes a ser liberada de um único ponto, como se tivesse só agora tomado sua forma final.
Ele levantou-se. Segurando a espada com as duas mãos, forçou-a sob o braço lançou-se com todo o peso do corpo, nas costas indefesas do soldado.
Sem a cota de malha para protegê-lo, a espada entrou sem muita dificuldade. Até que então, ele sentiu algo firme o barrando, mas, foi só forçar um pouquinho com seus braços, que não demorou para a ponta da lâmina emergir no peito do soldado.
O homem cambaleou, arrastando também Orba que, imediatamente soltou a espada. Batendo as cotas contra a parede, ele se virou para ver o rosto triunfante do menino. Depois, abriu e fechou a boca, provavelmente tentando dizer algum tipo de rancor, antes de vomitar uma grande quantidade de sangue. Com a língua vermelha colocada para fora, ele nunca mais se moveu.
— FILHO DA PUTA!
O segundo soldado, o qual teve o ombro cortado, gritou furioso, fazendo uma careta de dor.
— VOCÊ MATOU O DOUGA, PIRRALHO IMUNDO!
O outro soldado então correu para cima de Orba que, agora sem a espada, tudo o que ele podia fazer era receber o golpe do homem, caindo no chão e tendo o seu estômago chutado.
— Mãe e filho, vou pendurar a cabeça dos dois em cima do muro!
Orba ainda tentou rastejar para longe, mas o soldado ficou a ponta de uma espada bem ao lado do seu pescoço. Sua mãe também foi levantada, tendo a mão torcida e colocada na mesma posição ao lado dele. Não importa o quanto tentasse lutar, ele não conseguia se livrar do peso do homem pisando em suas costas.
— ME DEIXA EM PAZ!
— AH, É PRA JÁ! VOU FAZER VOCÊ DESCANÇAR EM PAZ DE UMA VEZ POR TODAS!
Orba deu um grito bestial de desespero em meio aquela situação de vida ou morte. No momento em que ouviu o som da lâmina rasgando contra o vento, vindo de trás, ele gritou o nome do irmão.
— ROAAAAAAAAAAAAAAAAANNNNNN!!!
— O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI!?
De repente, o som cortante do vento parou.
Embora a sua cabeça ainda estivesse confusa com tudo aquilo, ele sabia que não poderia ser o irmão.
Aquele que acabara de entrar na casa era um soldado Garberan, afinal. No entanto, ao contrário dos soldados que invadiram, o homem usava uma armadura completa, com marcas de batalha por toda ela, no entanto, o seu brilho prateado ainda lhe dava um ar digno, junto com a face jovem sob o elmo.
Por um instante, ele viu os dois soldados recuando de medo por causa do novo intruso, mas, logo em seguida...
— Senhor Cavaleiro Aprendiz, é exatamente como está vendo.
— Nós estamos aqui para tomar a nossa merecida recompensa, depois de dar duto na batalha. Só porque você foi reconhecido e é agora um “aprendiz” de cavaleiro, não vai tentar tirar da gente o que é nosso, vai?
Os dois responderam de volta, fingindo agirem de forma cortês, mas havia uma clara atmosfera de desdém vindo deles.
— Além disso veja, nosso camarada foi morto. Não há a menor possibilidade de deixar passar batido a morte de um de nossos valorosos guerreiros, há?
O soldado que pisou em Orba e preparou a espada cortar fora sua cabeça. O que os seus olhos viram quando olhou para o teto, foi a ponta da espada que tiraria sua vida. Mas, de repente, um rastro de luz passou por entre eles.
— O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO!
— Que pena. Vingança, não é? Você acha que há algum orgulho em matar uma criança?
O jovem com armadura havia desembainhado sua espada. Parecia que o homem tinha abatido aquele soldado, pois Orba percebeu que a espada que deveria ter perfurado seu coração caiu sem vida para o lado. O outro rugiu algo com uma voz rouca, o que parecia ser o nome do homem de armadura, mas ele não entendeu o que foi dito na hora.
— U-UM DOS NOSSOS...! COMO VOCÊ TEVE A CORAGEM DE MATAR UM DOS NOSSOS CAMARADAS!
— Camaradas...? Por favor, não me coloque no mesmo nível de lixo como vocês.
O soldado deu passo para trás enquanto o homem limpava o sangue de sua espada.
— Lixo, você disse? Mesmo você sendo igualzinho a gente... Não vá se achando só porque teve a sorte de conseguir um feito distinto! Sempre repetindo, cavaleiro, cavaleiro, cavaleiro, como se fosse sua palavra favorita, mas quem foi que te deu esse título!? Você não tem um pingo de sangue da família real! Nunca vai passar de um simples "Aprendiz" de cavaleiro! Saiba o seu lugar!
Então, soldado que parecia estar recuando, rapidamente puxou algo de trás de suas costas e o trouxe para frente dele. Era uma besta, fixada em um pedestal longo e fino, e ele soltou o gatilho.
Naquele instante, o jovem virou-se agilmente para o lado. Dando um único giro, como se estivesse dançando, ele evitou por pouco a flecha e decapitou a cabeça do soldado. Não houve a menor hesitação. A cabeça decapitada girou no ar, atingiu a parede da casa e rolou no chão.
— Garbera é um país de cavaleiros. Em vez de contaminar ainda mais seu nome, receba a honra de morrer em batalha.
Sua bela aparência, seu jeito de lutar e aquelas palavras que ele murmurava - era como se um herói tivesse emergido dos livros que Orba lia o tempo todo.
— Comandante, o que é esta comoção toda!?
A voz de alguém veio do lado de fora, mas o jovem simplesmente respondeu com "Não é nada", enquanto limpava a espada.
— Você é uma criança de Mephius?
Orba não soube na hora, qual era a melhor resposta para dar, pois o nome do país onde vivia, Mephius, não foi algo fortemente atado ao seu cotidiano. Para as pessoas vivendo em sua aldeia, o mundo deles só tinha um raio de dez quilômetros ao redor das casas, por isso elas não estavam muito interessadas nas questões do país ou nas disputas territoriais.
O homem deu a Orba um pequeno sorriso quando ele não respondeu e olhou para o corpo do soldado mergulhado em uma poça de sangue. Orba congelou completamente enquanto segurava com força os ombros da mãe. Ele começou a procurar se havia alguma arma ao alcance, quando...
— Fuja daqui o mais rápido que puder. — Disse o jovem.
— Você fez isso para proteger sua mãe, certo? Em seu corpo, habita a alma de um verdadeiro cavaleiro. Ao menos, bem mais do que o povo de Garbera, que parece ter esquecido completamente do caminho do “cavaleirismo”. Vamos, fuja. Eu vou tentar impedir os saques o máximo possível, mas não tenho como segurar a todos por muito tempo.
Por algum motivo, os olhos deles o lembravam de Roan. Apoiando o ombro da mãe, que soluçava, Orba lentamente olhou para a porta dos fundos, então, puxou a mão da mãe e fugiu a toda velocidade.
O vento gélido do inverno que se aproximava, sobrou nas ruas desérticas de sua vila e tocou suas bochechas. Puxando a mãe, que ficava o tempo todo repetindo "Roan, Roan" e, às vezes, até gritando com ela, eles finalmente chegaram até Alice e o pessoal da aldeia estavam, após uma hora.
Depois disso, eles seguiram o pai de Alice e se dirigiram para uma aldeia que ficava quinze quilômetros ao norte, rio acima.
Orba não sabia se o jovem de armadura tinha cumprido ou não com sua promessa, mas pelo menos a partir dali, mais nenhum saque ocorreu no entorno de Apta, que mais tarde se tornou território de Garbera.
No entanto, as chamas da guerra ainda assim os alcançaram.
Não houve qualquer sinal. De repente, "eles" atacaram com força total e imediatamente começaram a saquear. Homens vestidos de preto tomaram à força, roupas, provisões, bens, dinheiro, todas as coisas que poderiam ser arrancadas. E claro, pessoas também não eram exceção.
Assim que chegaram à aldeia, pegaram as mulheres e qualquer homem que tentasse resistir seriam empalados por lanceiros a cavalo, ou decapitados com espadas ou mesmo levados ao fuzilamento.
Em meio a toda a confusão, Orba perdeu de vista sua mãe. Assim que correu com angústia e medo atrás dela, ele avistou...
— ALICE!
Alice estava tendo as mãos amarradas atrás das costas. Mesmo sendo prestes a ser levada, ela ainda gritou para ele fugir.
Perdendo completamente o controle, Orba saltou para frente. A sensação de matar uma pessoa ainda permanecia em suas mãos e agora ele decidiu fazer a mesma coisa de novo. Ele estendeu a mão para a espada que o soldado carregava...
Mas, no momento em que segurou a alça, um golpe forte o atingiu na nuca. O mundo ao redor começou a girar diante dos seus olhos e, quando a sua consciência estava prestes a desvanecer, ele teve a sensação de ter ouvido a voz de Alice o chamando.
Quando acordou, Orba estava deitado de costas, com os braços abertos, no chão. Sua cabeça latejava dolorosamente e sua consciência ainda estava um pouco turva, o fazendo questionar se tudo aquilo era um sonho ou não.
— General Oubary, o que o senhor pretende fazer?
Ele não sabia quanto tempo tinha se passado quando ouviu aquela voz. Entre os gritos de homens, mulheres e disparos ao redor, Orba secretamente espiou com os olhos entreabertos para o homem que tinha sido chamado de Oubary.
Em cima de um cavalo, uma pessoa tomava sem pressa uma garrava de licor, provavelmente saqueada de algum lugar. Ele era homem careca, vestindo uma armadura leve e elegante, com uma atmosfera majestosa ao seu redor. Apesar de sua figura selvagem e coerciva, ainda podia-se notar uma fina camada de batom violeta sobre os lábios do homem, dando a ele uma aparência ainda mais estranha e assustadora em meio aquele cenário infernal.
— Se já pegaram tudo o que tinha de valor, queimem o resto. Não deixem um único grão de trigo para aqueles bastardos de Garbera.
Dizendo isso, o general jogou a garrafa de suas mãos que caiu, se espatifando no rosto de Orba.
— A partir de agora, essa vila foi saqueada por soldados Garberans. Deixem que nossos homens se divirtam com as mulheres, mas não se esqueça de ordenar quem matem todas quando estiverem satisfeitos. Nem mesmo pense em vender uma única como escrava, fui claro? Vou deixar isso sob a sua supervisão.
Em pouco tempo, os disparos e os gritos cessaram. O ar quente queimou a sua pele e um fedor pútrido encheu os seus pulmões. Quando Orba finalmente conseguiu se levantar, tudo o que ele viu foi um mar de chamas.
Não restava uma única alma viva, mas, mesmo assim, Orba continuou a se arrastar pela vila, chamando o nome de Alice e de sua mãe, enquanto apagava com as mãos nuas, as fagulhas das chamas que o vento trazia. No entanto, não importava o quanto gritasse tudo que vinha do cenário eram corpos de velhos, mulheres e crianças.
Oubary...
Com o lugar todo ardendo em brasa, o corpo de Orba ficou vermelho e sujo com a fuligem que caia de cima.
Oubary... da Fortaleza de Apta...
Ele se lembrou de já ter ouvido aquele nome. Quando a fortaleza estava recrutando soldados com urgência, os militares que apareceram na aldeia tinham dito que a segurança da fortaleza tinha sido confiada a um general veterano de guerra.
Então, isso significava que quem atacou a vila foi o exército Mephian. Depois que a fortaleza caiu, as tropas, incluindo Oubary, fugiram para o norte, à frente das tropas perseguidoras de Garbera, e incendiaram a vila para onde Orba e os outros tinham escapado. Assim, eles tomaram de volta para a capital, tudo que era de valor, impedindo que caísse nas mãos de Garbera.
Eu vou matá-los. — Jurou Orba.
Reunindo forças de onde já não mais existiam, ele continuou caminhando, sendo alimentado apenas pelo desejo de vingança.
Embora ele não tinha uma resposta clara se quem ele queria matar fosse Oubary, os soldados Garberans ou o Imperador Mephius, ou mesmo como atingiria esses objetivos, por enquanto, Orba continuou apenas caminhando.