O Brasão da Coragem Japonesa

Tradução: Rudeus Greyrat

Revisão: Rudeus Greyrat


Volume 1

Capítulo 1.2: Sangue e Ferro (2)

— Dois anos...

O gladiador Orba, encarando a escuridão que o rodeava, murmurou essas palavras em sua boca. Apesar de fazer apenas dois anos desde que ingressou neste ramo de trabalho, ele já estava atolado até o pescoço com as dificuldades, o sangue e os cadáveres. Quantas vezes lutou por sua vida, apenas para ter os pés acorrentados, passar a noite nas senzalas dos escravos, onde seu único passatempo era treinar a manhã inteira para continuar vivendo como um espadachim-escravo? E então, no dia seguinte haveria uma nova luta.

Ninguém, exceto o próprio Orba, esperava que ele fosse capaz de viver por mais de cinco batalhas. Dois anos atrás, quando pisou na arena pela primeira vez, ele só tinha quatorze anos. Seu corpo era ainda mais magro do que agora e mal conseguia segurar uma arma também.

No entanto, no momento da verdade, ele sobreviveu. Ele brandiu a arma em suas mãos, escolhida entre as poucas que ele conseguia empunhar dentro dos limites de sua força. A única coisa que sabia era correr para cima do inimigo de forma imprudente, mas a medida em que ganhava experiência, sua habilidade, a espessura de cada fibra muscular, o domínio de novas armas, bem como os cadáveres do adversário por onde pisava, aumentava toda vez em que emergia vitorioso.

Assim, dois anos se passaram. Orba não sabia se isso era muito ou pouco tempo e, às vezes, ele pensava que em si mesmo como uma pessoa consideravelmente velha. Ao mesmo tempo, ele também pensava que ainda era aquele garoto que não sabia nada sobre lutar até a morte.

De qualquer forma, talvez isso tenha a ver com o fato de ele não ter sido abençoado com a oportunidade de ver o próprio rosto. Deitado de bruços, ele ainda estava com a mesma máscara de ferro que usou no ringue de batalha. Por ela nunca ter sido removida durante esses dois anos, os outros espadachins-escravos do mesmo Grupo Gladiatorial Tarkas não tinham como saber sua verdadeira face.

— Levantem-se, seus escravos! Vocês acham ruim ter de acordar dedo? Pois saibam que hoje vai ser o pior dia das suas vidas!

Quando a manhã chegou, outro dia para os escravos teve início. O supervisor geral dos escravos e responsável por treinar os espadachins-escravos, Gowen, colocou todos para fora de suas celas e os fez limpar as acomodações.

Quando terminaram, ainda tinha os cuidados com os leões, serpentes, javalis, tigres e similares – em suma, todos os animais utilizados ​​na arena. Em particular, cuidar dos dragões era um trabalho árduo. Mesmo os dragões de pequeno e médio porte eram demais para uma única pessoa, mas cuidar dos enormes Sozos de tamanho grande foi ainda pior. Embora fosse esperado que os escravos morressem pela espada, muitos também encontraram seu fim esmagados por esses dragões que foram propositadamente treinados para não se acostumarem com seres humanos.

Orba pôs os pés na enorme jaula dos dragões, que era muito maior do que as habitações dos escravos – muito, muito maior do que elas – que mais se assemelhava ao pátio de um castelo. No entanto, ele parou quando percebeu as costas de uma mulher.

O nome dela era Hou Ran. De todos os outros escravos ordenados a alimentar os dragões, ela foi a única que conseguia tocar diretamente as suas escamas. Obviamente, os dragões foram acorrentados nas suas pernas e no pescoço, mas isso não era, de forma alguma, garantia de que o exemplo de ontem não se repetiria. A uma distância que faria até um gladiador hesitar, ela cumprimentou cada dragão um por um, tocando gentilmente as escamas com a ponta dos dedos.

— Orba.

Dizendo o nome dele, ela rapidamente se virou.

— Parece que fui descoberto.

— Foi a "voz" dos dragões quem me disse.

Ran sorriu. Ela parecia realmente inadequada em um campo de detenção só para homens, sem mencionar os violentos espadachins-escravos. Orba ainda não tinha se acostumado com seu sorriso indefeso.

Sua pele como ébano polido, combinada com cabelos que pareciam ter empalidecido, emitia um charme misterioso. Originária da tribo nômade dos adoradores do Deus Dragão, que vagavam pelas montanhas ao oeste de Mephius, diferente de seus parentes reclusos, Ran estava cheia de curiosidade sobre o mundo a fora e, por isso, embarcou secretamente em caravana que passava por perto de sua tribo. Como ela nunca o contou exatamente o que aconteceu depois disso, ele não sabia quando foi que Tarkas a comprou, ou como ela conseguia cuidar dos dragões sozinha assim.

— Eles sabem o meu nome?

— Suas "vozes" vêm como imagens na minha cabeça. Todos conhecem o seu rosto, Orba. Você é querido pelos dragões.

Embora pareça tolice, os olhos de Ran passavam uma impressão profunda, como se o atraísse para as profundezas do mar. Ou melhor, como se possuíssem algum tipo de conhecimento antigo, perdido para sempre pelos homens civilizados.

Do outro lado da cerca, os dragões de pequeno porte colocavam seus focinhos para fora da gaiola, rosnando e bufando para ele.

— Não é assim que se parece — disse Orba com um leve sorriso.

Quando ele chegou, dois anos atrás, Hou Ran já estava no campo de detenção. Naquela época, ela não fazia sequer contato visual com os outros escravos de Tarkas, muito menos abrir a boca para ele. Para ter um pouco de entretenimento, os escravos logo começaram a apostar se eles veriam primeiro o rosto de Orba ou a voz de Ran.

Mas, uma vez, Ran estava prestes a ser violentada por um grupo recém-chegado de Espadachins-Escravos, quando Orba chegou e espancou a todos. Desde então, ela vem ao menos trocado algumas palavras com ele.

— Ouvi dizer que você foi atacado por um Sozos em Ba Roux.

— Fui eu quem o atacou, na verdade. O Sozos começou a ficar violento.

— Mesmo com as drogas, é inútil tentar aprisionar seu coração pela força. Se eu tivesse supervisionado, isso nunca teria acontecido.

img 2

Ela mordeu os lábios, mas não por estar frustrada pelo que aconteceu com Orba ou os espectadores. Com a figura da garota acariciando a nuca de um dragão da raça Baian no canto da vista, Orba terminou seu trabalho e deixou a jaula dos dragões para trás.

Após a alimentação dos animais e a limpeza, era a vez de conferir seus armamentos. Já que suas vidas dependiam dessas armas, os gladiadores cuidadosamente conferiam uma a uma. No entanto, sempre que chegava a hora de fazer a manutenção, guardas fortemente armados ficavam de guarda, vigiando cada movimento deles. Naturalmente, essa era uma medida necessária para evitar que qualquer revolta acontecesse.

Então, depois de terminarem de comer uma quantidade lamentável de pão e sopa – enquanto que os sobreviventes da lua do dia anterior eram servidos com carne e frutas como recompensa – eles começariam seu treinamento até o meio dia. Da mesma forma de quando fizeram a manutenção das armas, soldados foram colocados para vigiar, mas, havia uma diferença agora, as correntes que os prendiam pelas pernas tinham sido retiradas.

Espadachins escravos que sobreviviam por mais de dois anos como Orba eram extremamente raros. Vidas foram perdidas uma após a outra, enquanto novas faces iam aparecendo rotineiramente ao longo dos dias. Gowen os ensinava incansavelmente o trabalho de pés necessário ao se manejar uma arma ou uma espada, e os acompanhava até que estivesse totalmente preparados.

Orba também engajava em lutas-treino com os recém-chegados. Algumas vezes, eles cruzavam espadas, assim como numa luta de verdade, e não era incomum que alguém acabasse perdendo um pedaço dos seus membros ou às vezes a própria vida no meio de um treino...

Hoje, porém não houve casualidades, mas isso não significava que eles estavam com sorte. No dia seguinte, um destino ainda mais miserável poderia acontecer e uma morte sangrenta os espreitava a todo instante.

Quando o rosto de todos os espadachins-escravos se nublou e suas peles se cobriram de suor e areia, Orba foi até a cerca que separava o campo de treinamento do corredor que levava até o outro lado, e avistou a figura de Tarkas.

Gritando "Descansar!" para um novato, Orba correu logo em seguida na direção dele.

Percebendo a aproximação do homem mascarado, Tarkas parou o que estava fazendo. Um sentimento de desconfiança era sentido em sua face envelhecida.

— O que você quer, Tigre de Ferro? Ah... bom trabalho ontem.

O seu rosto dizia que ele acabara de se lembrar que precisava jogar um osso para seu fiel cão.

— Verne se tornou um gladiador famoso muito rápido e por isso os outros grupos de gladiadores começaram insistir que gostariam de colocá-lo contra você. "Assim, nós não conseguiríamos recuperar todo o dinheiro que investimos nele?". Não me venham com essa merda! Bem, eu suponho que preciso agradecê-lo por se livrar dele por mim. Agora, quanto a ter matado aquele Sozos...

— Tarkas, quanto mais tempo eu vou precisar continuar ganhando?

— Como é?

— Já faz dois anos e eu continuei ganhando o tempo todo. Quantas vezes vou ter que ser o "evento principal" como ontem? Não está na hora de você tirar essas correntes dos meus pés?

Espadachins-escravos, todos eles, quando comprados, eram obtidos através de um contrato com algum um comerciante. Embora parecesse que Tarkas dificilmente lidava com isso diretamente.

— Não pense que eu não saiba ler. Até um escravo deveria ter o direito de examinar o seu contrato. Eu tenho esperado aqui, Tarkas! Eu deveria ter saído há muito tempo!

Quando Orba falou isso na sua cara, Tarkas lançou um olhar furioso com os olhos.

— Então, para onde planeja ir? Você pode até escapar das minhas mãos, mas ainda continuará sendo um criminoso! Você não tem dinheiro para pagar a fiança da pena que ainda te resta. Ou talvez você queira trabalhar nas minas de Tsaga ao longo da fronteira oeste? Gases venenosos, bestas devoradoras de homens, tribos Geblin que caçam humanos e - é claro - trabalho extremamente miserável e rigoroso. Você acha que um inferno assim é melhor do que aqui? Se não, então trate de voltar logo para o treino e nunca mais fale comigo como se fôssemos iguais! Não até que você tenha se tornado espadachim completo que ganha seu próprio salário!

Enfiando o dedo na cara de Orba, Tarkas rapidamente saiu, indo para o escritório. Atrás dele, rostos desconhecidos seguiram o exemplo. Considerando que este era um lugar onde as pernas estavam amarradas em correntes, provavelmente eram escravos recém-adquiridos.

Orba ficou calado. Seus olhos estavam cheios de raiva, no entanto, mas as palavras de Tarkas também não eram mentiras. Em relação à lei de Mephius, você pode basicamente, vender sua vida ou ir para a prisão. Assim como as Minas de Tsaga das quais Tarkas falou - ele deveria solicitar o serviço público do país, acompanhado pelos perigos, e se vender como escravo lá?

Segurando a cerca com força em suas mãos, seus dedos acabaram ficando dormentes antes que ele percebesse.

Orba permaneceu ali parado no lugar.

— O que você está fazendo, Orba!? Volte já aqui!

Depois de finalmente ser repreendido por Gowen, ele voltou a praticar. Como sempre.

Poucas horas depois, após lavar o corpo com um copo cheio de água, chegou a hora da segunda refeição do dia. Orba, arredondando seu corpo como um corcunda no canto da sala de jantar, estava quase abraçando sua comida. Como hábito, ele não podia fazer uma refeição sem ler um livro.

Foi então...

— Bom trabalho na luta de ontem, Orba.

Outro espadachim-escravo, aquele chamado Shique, chegou se apoiando nas costas de Obra, que logo empurrou para trás com a mão.

— Verne da Bola de Aço. Quando ouvi que a luta tinha sido arranja, eu não sabia o que fazer. Cheguei até a considerar em atirar nele de fora da arena, caso você ficasse numa situação de vida ou morte.

— Fica longe de mim. A menos é claro que você queira que eu esmurre essa sua carinha bonita.

— Wow, que assustador. Mas eu não me importaria de ficar com uma cicatriz no meu lindo rosto se isso criar uma ligação entre você e eu.

Apesar do comportamento zombeteiro de Shique, era difícil de se dizer se ele estava falando sério ou não. De qualquer forma, Orba não queria socializar com ele também.

O belo Shique deixou seus cabelos crescerem e usava até mesmo maquiagem antes de uma luta na arena, assim, ele se tornou extremamente popular entre as mulheres. Embora o mesmo se auto proclame um imenso misógino.

— Mas, eu não esperava menos de você, Orba. Mesmo sem a minha ajuda, você conseguiu fazer uma performance magnífica. Isso não te faz agora, tanto em nome como na realidade, o melhor gladiador de Tarkas?

— Eu não diria que foi “magnífica”.

De repente, o homem encarregado de treinar os gladiadores, Gowen, fez a sua aparição. Embora Orba tivesse uma cara aborrecida quando ele se sentou na mesma mesa, a verdade era que não se incomodava.

— Você se saiu bem, mas se arriscou demais. Quando partiu para cima, ainda era muito cedo. É péssimo hábito seu partir para cima quando está encurralado, mesmo que seja só um pouco. Você deveria colocar mais esforço em assegurar a sua dominância. Quanto ao Verne, embora ele fosse um espadachim brilhante, o ponto fraco dele era não saber aproveitar as fraquezas do oponente. Qualquer um com mais experiência iria facilmente perceber esse seu pavio curto e puxar o tapete dos seus pés.

Gowen era um homem com cabelos grisalhos no meio dos seus cinquenta anos, mas apesar disso, se corpo bronzeado era forte. Além disso, o olhar afiado que ele dava aos outros espadachins-escravos foi cheio de intensidade.

— Mas o oponente dele era o Verne. Querendo ou não, aquele cara estava em perfeita forma.

Uma outra voz se juntou ao grupo. Desta vez, foi o gigante número um do Grupo Gladiatorial Tarkas, Gilliam.

Ele esteve na mesma arena que Orba e Shique no dia anterior, carregando um machado de batalha no ombro, e com isso, os três gladiadores mais fortes estavam reunidos. Com longos cabelos ruivos em tanta desordem quanto possível, seu rosto, sorrindo com dentes cerrados, parecia tão intimidador quanto o de um leão selvagem.

— Quando soube que você tinha que lutar contra o Verne, sinceramente achei que você tinha ficado sem sorte. Bem, você não tem habilidades ruins, mas, como sempre, não sabe o que significa ser um gladiador. Não vale nada se você ganhar sem graça. Não vai satisfazer o público assim. A maneira como tu continuou correndo de um lado pro outro e, de repente, decidiu a partida com um só golpe, não foi nada divertido. Você precisa abater o oponente lutando de frente com ele.

Para um espadachim-escravo, não se tratava apenas de vencer a partida. Você tinha que ser popular, em suma, garantir que muitos espectadores viessem apenas para vê-lo. Gladiadores sem fama, depois de ganharem uma pilha de dinheiro para seus donos, seriam atirados contra dragões ou feras, apenas para satisfazer os desejos sádicos do público.

Foi por isso que os gladiadores - todos eles - se esforçaram para aprimorar suas habilidades e também tentaram apelar para o público com personalidades chamativas, a fim de sobreviver. Alguns decoraram seu corpo com armaduras berrantes, outros fizeram um show arrastando o coração de seu oponente após a morte, enquanto teve aqueles pintaram seus corpos com tatuagens misteriosas.

Quanto a Shique, ele afirmou dramaticamente ser "um descendente de uma antiga dinastia real".

— Desta vez, venha contra mim, Orba. Vou te ensinar o que é lutar de verdade!

— Não interessado.

— Haha, você tem medo de mim?

— Ah, como estou com medo. Muito, muito medo... Se estiver feliz agora, vá embora e não em encha mais.

— Não fode comigo, seu pequeno bastardo!

Enquanto Orba continuava comendo com seu comportamento habitual, Gilliam o empurrou pelas costas.

— Pare com isso! — Ordenou Gowen.

Se houvesse qualquer perturbação, os soldados de Tarkas viriam correndo. E assim, Gillian fez a sua saída com a cara vermelha de raiva.

— Agora que parei para pensar nisso, um grupo estranho de novatos apareceu hoje.

Disse Gowen, depois que se lembrou o que aconteceu durante o dia. Aparentemente, ele se referia ao grupo que Orba viu seguindo Tarkas hoje mais cedo.

— Estranho? Tipo, com chifres no cabelo e um rabo enorme saindo das costas? — Perguntou um espadachim-escravo chamado Kain.

Ele era apenas um garoto, da mesma idade que Orba, que chegou por volta de um ano atrás e acabou se estabelecendo. Ele não era muito forte fisicamente ou mesmo segurando uma a espada, mas mostrou grande destreza ao manejar pistolas ou rifles.

— Ou quem sabe, algum sobrevivente da tribo Ryuujin? Soa meio que romântico, não?

— Ryuujins, Geblins, ou qualquer outra coisa que apareça, eu não ficaria nem um pouco surpreso. Afinal, essa é uma companhia de espadachins-escravos, um lugar para toda e qualquer raça.

— Na verdade, a história é muito mais simples do que vocês imaginam. Pelo que eu ouvi dizer, nenhum deles tem qualquer habilidade com espada.

— Como é?

Kain moveu os braços para os lados, indicando que não tinha o menor interesse.

— Eu quase não acreditei quando me disseram que o Tarkas comprou um bando de inúteis sem nem pestanejar. Mas aparentemente, ele estava com um humor muito bom mesmo depois disso.

— Oh?

— Eu sei. Alguém como o Tarkas, que sempre fica hipnotizado pelo brilho do ouro, fazer algo assim pode soar estranho, não é?

— Mas, sério. De bom humor? Aquele cara? — Disse Orba, se lembrando da reação de Tarkas hoje mais cedo.

— Eu o conheço a mais tempo do que vocês. A única coisa capaz de deixar aquele homem de bom humor é a chance de fazer uma boa grana.

— Eu me pergunto se algum nobre veio visitá-lo sobre uma exibição ou coisa assim. Talvez esses novatos sejam de origem nobre e tenham sido trazidos por causar alguma ofensa política contra o Império Mephius, ou coisa assim. Poderia ser, uma execução pública usando os dragões?

— Você parece estranhamente animado com isso. Tanto que até acho difícil de ler a expressão no seu rosto.

— De qualquer forma, onde está o meu livro novo? Faz três meses que o pedi.

Perdendo o interesse na conversa, Orba perguntou sobre outra coisa e os demais também passaram a conversar sobre questões diferentes. Amanhã, eles provavelmente se enfrentariam como inimigos, mesmo sendo gladiadores à serviço do mesmo empregador. A ideia de aprofundar uma amizade mais do que o necessário nunca esteve na mente de Orba desde o início.

— Ahh, já foi comprado. Estará aqui amanhã. No entanto... embora pareça um pouco tarde para dizer isso, você também é meio excêntrico. Entre os caras daqui, mesmo aqueles que sabem ler e escrever, duvido que algum já tenham lido mais de cem palavras em tuda sua vida.

Devorando o pedaço de uma pele de galinha, Gowen olhou para Orba.

— Às vezes, até eu penso em arrancar essa sua máscara. Que tipo de rosto tem aí por baixo? Há momentos em que acho que você é apenas um jovem pirralho selvagem e há vezes em que acho que você é um homem de cabeça fria que já sobreviveu a inúmeros campos de batalha. Ontem foi assim. Você tomou as ações apropriadas contra um Sozos sem vacilar um instante sequer.

— Você está me elogiando ou não?

— Estou te elogiando. Além de pegar uma espada e lutar por si mesmo, você considera as circunstâncias com calma. Embora, se não fosse por esse seu pavio curto, eu acho que você serviria melhor como líder de um time. Você gosta de livros sobre história e pessoas, fica absorvido nisso até tarde da noite e devora todo o conhecimento.

Quando eles se viram pela primeira vez, isto é, quando Tarkas comprou Orba, o rosto dele já tinha sido coberto pela máscara. Desde então, ela nunca tinha sido removida uma única vez. Claro, todo mundo queria saber o motivo. Todo mundo queria ver o rosto por trás dela. Por isso, os escravos tentavam adivinhar qual era a origem daquele menino.

No início, Gowen estava preocupado que Orba e os outros escravos começassem a trocar socos por causa da curiosidade deles. Foi então que meio ano depois, ele teve a ideia de espalhar o rumor de que “um feitiço colocou uma maldição naquela máscara” e assim, quando completou um ano desde a sua chegada, ninguém mais o questionou sobre isso. Embora, sempre que chega algum novato, a primeira coisa que eles fazem é ir perguntar sobre isso, mas agora Orba já é capaz de ignorá-los completamente.

— O que é que se ganha lendo um livro? Ao menos no lugar onde eu nasci, ninguém ganha mais respeito, independente de quantos desses você tenha.

— Isso faz parecer que você foi criado por alguma tribo de macacos ou de Geblins.

— Olhe como você fala comigo, Orba. Considerando as circunstâncias, eu acho que tenho sido muito bom com você. Se isso não te agrada, então posso muito bem adotar a sua mesma atitude.

Agir como se não tivesse entendido a piada era um dos hábitos que Gowen mais gostava. Orba respondeu com um sorriso no rosto, mas inesperadamente, o responsável por treinar os espadachins-escravos respondeu com um olhar ainda mais a sério.

— Normalmente, um espadachim-escravo se preocupa apenas em dar o melhor para viver outro dia. Alguns conseguem sair dessa vida infernal, mas, como a maioria não consegue viver sem cometer algum tipo de crime, muitos acabam sendo gladiadores pela vida toda. Apesar de que a “vida toda”, provavelmente será bem curta… Mas você é diferente, Orba. Você não se deixou ser engolido pela carnificina e continua focando no seu futuro. Eu sempre me perguntei o que falar para um homem assim? Deveria aconselhá-lo a esquecer disso e viver o agora? Mesmo depois de te ver insistindo tanto apesar do inferno em que vivemos? Ou será que eu deveria te falar para nunca perder a esperança? Talvez isso te desse a coragem suficiente para superar isso.

— Velho, por acaso não andou bebendo escondido? Você está muito mais que o normal hoje.

— Ei, eu estou tentando ser sério aqui.

Gowen sacodiu a cabeça para os lados em desapontamento, mas Orba decidiu apenas considerar que ele tinha realmente ficado bêbado. Afinal, o treinador dos escravos jamais permaneceria em silêncio depois de ser chamado de “velho”.

— Pelo que você luta, Orba? Pelos outros espadachins-escravos? Por si mesmo? Ou por algum outro objetivo em sua vida?

— E-Eu mesmo q-queria saber...

Gaguejando como uma criança, Orba desviou o rosto. Ele não queria que seus sentimentos internos fossem expostos.

Terminando o jatar, Orba saiu rapidamente do refeitório. Embora gladiadores pudessem andar livremente, não tinha nada além do refeitório e dos quartos no campo de detenção. Poiam chamar de "quarto", mas a verdade era que não diferia muito de um estábulo onde o gado ficava preso. Quando ele se deitou em um canto, Orba olhou para suas próprias mãos.

Fazia dois anos desde então. Ainda hoje, ele conseguia se lembrar de tudo perfeitamente. E se ele não tivesse vivido isso pessoalmente, esses "dois anos" não seriam mais que um número. Por dois anos, Orba mal se manteve vivo, cercado pelo cheiro de sangue, tripas e ferro.

No entanto, ele matou, sobreviveu, fez tudo de novo, e qual era o sentido disso tudo?

Ele se virou chão. Seu corpo já havia se acostumado com a sensação da máscara dura tocando o solo. Foi como disse Tarkas, mesmo que deixasse de ser um escravo, ele não sabia mais como viver uma vida "limpa", mas parecia que Gowen tinha entendido uma coisa errado - Orba não tinha esperanças para um futuro melhor. Tudo o que ele tinha era...

Sob a sombra fina formada pelas presas da máscara, Orba rangeu seus dentes com força.

Mesmo que eu sobreviva a tudo isso, o que vou fazer depois?

Não havia mais retorno. Ele já estava cansado de repetir as coisas indefinidamente na arena. Já estava cansado dos massacres, do sangue, das lutas, de matar uns aos outros. Em seu caminho, ele nunca foi capaz de pensar que "está tudo bem, não importa" ou "com o tempo, ficará mais fácil".

Uma raiva inexplicável emanava de seus olhos, do outro lado da máscara.

Eu vou pegar a minha vida de volta de volta. Eu vou tomar tudo o que é meu outra vez. E para aqueles que tiraram tudo de mim, mesmo que não seja o suficiente, farei com que experimentem toda a dor e os gritos agonizantes das pessoas que matei nos últimos dois anos.



Comentários