Volume 1
Capítulo 29: VITÓRIA DOCE-AMARGA
A chuva intensificou. Terra e sangue se misturaram, formando poças de lama fedendo a ferro.
Havia enormes crateras aqui e ali, e incontáveis partes destruídas na floresta sombria, cada uma contando um pouco da história que foi essa luta pela vida.
Ambos lutaram por suas vidas. A princípio, o que era para ser uma caçada unilateral, se tornou uma intensa batalha pela vida, recheada de pura brutalidade e apego pela sobrevivência.
Fera e humano… criança. Qualquer um daria esta vitória como certa para a criatura vil e voraz…, mas Milan não era um simples menino… e provou a si mesmo que era capaz. A cada momento desta batalha, a cada segundo, minuto, hora passada, Milan persistiu e resistiu, chegando por diversas vezes ao estopim de suas forças.
Mas o garoto não era comum, e tinha um senso irresponsável e profundo pela vida e por uma vingança que preenchia todo seu coração, dando um sentido para sua vida.
A batalha, enfim, acabou, e a floresta ficou silenciosa. Horas se passaram, com a chuva aumentando, sulcos se aprofundando na terra, manchando as raízes profundas das árvores antigas e imaculadas.
Sangue regou essas raízes mais profundas, e inundou o ar com o odor bolorento, meio doce, meio amargo… nojento.
E distante de toda aquela confusão de trincheiras criadas, terra revirada e árvores destruídas, estava um longo, pesado e enorme corpo negro, seu sangue inundando e queimando a terra ao seu redor, o vapor se misturando ao orvalho frio da densa chuva.
Por longos dias ele ficou ali, imóvel, sob uma chuva nunca cessante, misturando-se ao sangue, terra e vermes que surgiram consequentemente. Imperturbavelmente quieto.
Pois então a chuva diminuiu, mas as sombras se aprofundaram, como se criando vida e sentido. E houve sinal de movimento no corpo que jazia quieto.
Seus ombros se mexeram, mas era anormal demais o modo como se mexia. Isto é, era comum que levantasse a cabeça ou abrisse os olhos, mas não o fez e, em vez disso, começou a se mover em ângulos estranhos e confusos. Seu dorso se remexeu, como se uma protuberância abaixo o empurrasse para cima.
Então debaixo do pêlo e de todo aquele sangue fedorento, algo surgiu, sujo de sangue, terra seca e lama. Um grito fraco e sufocado foi solto, rouco, silencioso.
Pouco a pouco, a voz de Milan foi ganhando força. Seu rosto, completamente sujo, os olhos fechados por causa da lama seca… e queimado…
… Milan gritou, pedindo socorro, mas era fraco, inaudível. O menino sobreviveu por longos dias embaixo do corpo da criatura, sabe-se lá como.
Um choro frouxo ousou escapar de seus lábios num ricto silencioso, mas ele comprimiu-os tão logo quanto abriu. Não podia nem devia chorar. Era hora de sobreviver, pois cada dia era uma batalha.
Pelas próximas horas a chuva tornou a cair, e Mil tentou desesperadamente sair de debaixo da fera. Ainda extasiado e dormente pela batalha, mal acreditando que vencera.
Não por sua força, claro, mas num ardis perspicaz e oportuno. Ora, uma vitória era uma vitória, afinal.
… Então por que ele sentia um gosto amargo, figurativamente falando?! Pois, afinal de contas, acabara de enfrentar e matar uma besta…, mas não estava contente.
Todo o pensamento de que arriscaria perder coisas valiosas se isso significasse vitória… caiu por terra.
Milan afastou os pensamentos sombrios para os cantos mais distantes de seus salões mentais e lutou para finalmente surgir fora da trincheira criada pelo corpo da criatura.
Se arrastando para longe, mal com força nos braços, Milan persistiu, a mão direita firmemente segurando Espectro, não diminuindo o aperto nem se ele quisesse.
Depois de duas horas, Milan conseguiu se afastar o bastante, e caiu de costas, respirando pesado.
Todo o seu corpo era um confusão de feridas, queimaduras e sangue seco. Ele estava pálido, e a dor finalmente cobrou seu preço.
Então ele adormeceu, cheio de desespero e ressentimento. Ressabiado, Mil despertou horas depois, se afogando com a água da chuva.
Ela lavou seu rosto, permitindo que ele abrisse um pouco os olhos, mas também inundou suas narinas, trazendo ardência e falta de ar. Ele tossiu, se engasgou e lutou, pouco a pouco, para conseguir se manter.
Mil não conseguia sequer virar a cabeça. Tudo doía, tanto externa quanto internamente. Então ele procurou manter a calma, mas foi difícil.
Abrindo a boca, os lábios ressecados e partidos… queimados, ingeriu pequenas gotas de água pouco a pouco.
E conforme a chuva persistiu e os dias se passaram, Milan sobreviveu a base dessa água. Por vezes tossia sangue e quase se engasgava, mas nessa altura, ele conseguia virar a cabeça para não sufocar com o próprio sangue até a morte.
Mas foi uma luta, por que até mesmo para respirar era difícil. Imagine que tivesse somente um pulmão, some isso a pequenos gravetos perfurando-o… eram partes de suas próprias costelas, quebradas e perfurando os dois pulmões… um queimado e mal funcionando, e o outro embebedado por água… sangue, na verdade.
Milan era esperto e já tinha lido livros demais, até mesmo de medicina básica, para saber do que se tratava.
Sua irmã teria dito que de nada serviria a leitura daqueles livros… e ele concordaria, já que realmente não poderia fazer nada com essa informação… mas saber sua situação já era algo.
E enquanto os dias passavam, ele pensava nas razões de ter persistido tanto até aqui. Uma pessoa comum já teria morrido… mas não ele. Milan era um recém-desperto, com resistência sobrenatural… mas somente isso não deveria ser o suficiente, afinal, despertos não eram imortais.
Então ele resolveu atribuir isso a outros dois fatores… um era sorte.
Ninguém sobreviveria tanto sem sorte, mas é claro que Mil não era supersticioso o bastante para não creditar isso ao fato de que uma boa sorte caminhava sempre ao lado do azar… e isso Mil tinha de sobra.
Portanto, virando-se levemente para o lado – não sem gritar e chorar por vários momentos – Milan encarou a besta. Sua feição ficou sombria, mortalmente obscura.
Só podia ser isso…
Ele lutou para não acreditar, mas a única resposta era essa… Afinal, como alguém sobreviveria sem uma razão tão sobrenatural e fantasiosa feito essa?!
A verdade é que Milan teve uma virada brusca em sua crença. Antes, ele era credor fiel dos contos de fantasia e histórias épicas de magia.
Ao conhecer a verdadeira e sombria face do mundo, Mil percebeu que não era tão simples assim. Nem tudo era só flores… e ele precisou se remodelar… remodelar sua crença.
Não havia algo como justiça divina e mágica… não havia nada parecido com a bondade nos corações e o bem superando o mal.
Não. Milan descobriu da pior maneira que todo dia era uma batalha, e nem sempre havia uma luz no fim do túnel. Nem sempre a magia prevalece, isso se ela existe. E mesmo que no fim haja vitória, que o bem ganhe, não será sem perdas consideráveis… sem dor, sem sacrifício.
Essa dura batalha foi um lembrete para Mil, mais um dos incontáveis, de que uma vitória às vezes pode ser amarga.
Ele experimentou isso pela primeira vez quando conseguiu salvar sua irmã…, Mas a que custo?
Foi enviado para um lugar distante e sombrio, e sua irmã lidava com as consequências graves de seu despertar… sua família foi desfeita, e talvez seus pais estivessem desolados neste momento…
Uma vitória amarga…
Mas às vezes a resposta mágica e sobrenatural não precisa estar acompanhada pela luz e bondade. Às vezes pode ser sombrio… e é.
A razão de Milan ter sobrevivido não era outra senão a fera e sua morte.
Milan foi salvo por sua sorte, claro, e pela resistência absurda que tinha, superando e muito a expectativa…, mas o corpo da criatura também foi um ótimo condutor para salvar a vida de Mil.
Isto é, conforme todo o tempo em que ele passou embaixo da criatura, desacordado e sufocando, o corpo em decomposição da fera vinha trazendo componentes curativos a ele.
Ele considerou todas as faces da situação, é claro. Milan foi cruelmente mutilado, mordido, arranhado e tudo o que se tem direito ao enfrentar um monstro desta magnitude. Ele sequer conseguiu ferir a criatura até que enfiasse uma faca em sua goela…, e a criatura jazia morta.
Então considerando tudo isso, ele deveria estar, senão morto, no mínimo aleijado. Mas fora as lacerações no corpo e os danos internos, era só isso. Não tinha muitos ossos quebrados em seus membros, nem pernas ou braços inválidos.
No fim, só podia ser uma coisa, e era a cura por meio do corpo em decomposição da criatura.
Milan observou os membros queimados, e percebeu que não estavam tão ruins quanto na hora da batalha intensa, e atribuiu isso também ao fator curativo da criatura.
Sendo somente uma a resposta, ele deveria ter certeza…, mas não era tão bom quanto ele gostaria que fosse, pois mesmo de uma distância considerável, o fedor já se alastrava, e vermes andavam lentamente pelo corpo do bicho.
Milan suspirou, comprimindo os lábios – soltou um grito sufocado devido à ardência. Ele não se recuperaria a menos que fizesse um esforço… e tinha de ser rápido.
Sem pensar duas vezes e com lágrimas ousando cair, Mil se arrastou de volta pelo mesmo caminho traçado por ele dias antes, ainda fundo no chão, e diminuiu seu espaço até a besta caída.
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