O Apocalipse de Yohane Brasileira

Autor(a): Henrique Ferreira


Volume 1 – Arco 1

Prólogo: Rachadura

 

 

Seu pesadelo começou como todos os outros. Estava no topo da ponte de Manhattan, observando a grande destruição causada na ilha por uma força descomunal. Os gritos de socorro vinham de todas as direções, famílias choravam suas perdas e mães pediam seus filhos de volta para uma divindade que não respondia.

Mas diferente do que se podia imaginar, a garota de cachos ruivos olhava para tudo aquilo com um sorriso no rosto. Suas mãos, cobertas de sangue, seguravam o coração, ainda pulsante, da mulher aos seus pés. Não conhecia sua vítima, mas olhava atentamente para seu rosto, que se tornava pálido conforme a vida escapava de seu corpo. Ao olhar para a frente, viu duas pessoas chocadas com a atrocidade que a garota cometera.

Porém, antes que pudesse olhar em seus rostos, sentiu algo em seu bolso. Toda aquela visão repentinamente se tornou um breu absoluto, até que uma luz alaranjada fez seus olhos marejados se abrirem.

Estava deitada abaixo de uma figueira, no topo de uma colina em uma área rural. O cheiro e o silêncio do campo a lembravam de casa e acalmavam sua mente.

Pegou seu celular e notou o alarme, já era final de tarde. Estava quase na hora de sua festa de formatura. Todos da sua turma no colégio iriam se reunir para comemorar o fim do ensino médio.

Levantando seu torso, se espreguiçou e encarou o céu através das folhas da árvore. Sua mão estava esticada em frente aos olhos, cobrindo os raios de sol que passavam pelas folhas e, com isso, pôde observar a brilhante gema carmesim que carregava em seu anel.

A jovem limpou os cantos de seus olhos azuis e ficou de pé, ajeitando a jaqueta branca que ganhou de sua melhor amiga e voltando para seu Impala.

Após cerca de meia hora, chegando no local do encontro, encarou aquela lanchonete com olhos melancólicos. Mesmo de longe conseguia sentir o cheiro familiar e delicioso dos hambúrgueres na grelha. As vitrines estavam brilhando de limpas como sempre e a placa neon começava a iluminar o ambiente com a chegada da noite. Aquele já foi seu local favorito, onde passara horas com sua melhor amiga e seus colegas de classe, mas hoje a visita apenas causava um aperto no peito.

A garota respirou fundo e, após estacionar seu carro, seguiu até a entrada. Assim que entrou, um homem de cabelos desgrenhados e barba por fazer, segurando uma bengala e usando óculos escuros, levantou um copo em direção a entrada:

— E a última a chegar é, para a surpresa de ninguém, Yohane Pride!

— Nem na despedida conseguiu chegar no horário, ruiva? — Um garoto loiro de olhos castanhos comentou sorrindo, segurando o ombro do homem.

Veja bem, aquele era Marko Hoffman, o professor de física da turma e o único que se dispôs livre para o evento. A ruiva sorriu sem jeito enquanto coçava a cabeça e foi até o balcão, sentando-se ao lado do tutor. O garoto loiro já havia se afastado. Um longo momento de silêncio se instalou entre os dois, até que o professor resolveu iniciar a conversa.

— Sabe, perdi a visão há mais de dez anos e, mesmo após todo esse tempo, consigo perceber quando você não está bem.

Encarou o balcão enquanto bebia o líquido em seu copo. O cheiro era característico de uísque.

— É, pra um professor cego, você sempre foi bom em enxergar esse tipo de coisa. — Sorriu tristemente e pediu uma bebida para o garçom.

— Algo mudou?

— Não, o mesmo pesadelo de sempre. Manhattan completamente destruída, uma mulher no chão, cheia de sangue... — Lembranças de noites aterrorizantes voltaram, a fazendo engasgar com as próprias palavras. — E o coração dela... na minha mão. Após todo esse tempo acabei me acostumando com ele, mas o que não consigo engolir é essa sensação no meu peito. São horríveis, cruéis e me fazem querer vomitar, mas algo dentro de mim, lá no fundo... gosta de ver.

Ele segurou a mão de Jô e a encarou com empatia no rosto. Porém, antes que pudesse falar algo, ouviu alguém chamar a atenção de todos.

— Pessoal, agora que estamos todos reunidos aqui, acho que está na hora das considerações finais do nosso professor. Marko, por favor.

Com o rosto enrubescido, ele se levantou com ajuda do jovem de antes e foi até o centro para que todos pudessem vê-lo. Com um pigarro, iniciou:

— Quem diria... finalmente chegou o dia em que vou me livrar de todos vocês. — Todos deram risada. — Brincadeiras à parte, é maravilhoso ver como vocês cresceram desde que chegaram na escola. Durante esses anos, todos nós construímos uma relação mais forte e importante do que a de alunos e professor. Eu considero todos vocês meus amigos e creio que vocês também pensem o mesmo sobre mim. Ao menos espero, caso contrário eu poderia chorar aqui mesmo. De todo modo, espero que vocês se lembrem de tudo que aprenderam nesses anos, e não me refiro apenas ao conteúdo de sala de aula. Creio que tudo o que houve nesses anos, principalmente há alguns meses atrás, mudou muito a forma como vocês veem o mundo... e talvez até tenha influenciado na personalidade de alguns. Mas independentemente da situação, nunca deixem de lado seus princípios e vençam na vida da forma mais honesta e justa possível. Espero ver cada um aqui dando início a jornada para realizar seus sonhos e ambições. Um brinde a todos vocês!

Todos levantaram seus copos e gritaram comemorando.

— Mas antes de podermos começar a aproveitar essa despedida, gostaria de pedir um minuto de silêncio por nossa querida colega e amiga, Carolyn White, que nos deixou ano passado. Espero que ela possa ter encontrando seus pais em um lugar melhor.

Os presentes ficaram em silêncio, em respeito a jovem colega de classe que havia falecido. Jô abraçou sua jaqueta, lembrando da antiga dona da roupa.

Marko disse algumas últimas poucas palavras para que o clima não permanecesse tão sério e, após isso, voltou ao seu lugar.

— Ainda está aí, Yohane?

— Estou sim — respondeu, girando o dedo suavemente sobre seu copo.

— Eu sei que deve ser difícil pra você, voltar aqui depois da morte dela.

— É... Era nosso lugar favorito. Houve dias que até perdemos aulas só pra ficar fofocando na mesa dos fundos. Me irritava o fato de ela só pedir coisa vegetariana, e eu sempre ficava provocando, falando o quão gostosa era a carne daqui. — Seus olhos ficaram marejados e virou o rosto, envergonhada.

— Ela era uma garota incrível. Mesmo depois do que houve com Reiner e Grace, permaneceu firme.

Yohane sorriu com as lembranças e bebeu um gole da bebida gaseificada em seu copo.

— Mas e então, quando vocês se mudam?

— Em dois dias. Amanhã vamos preparar a mudança. Vou ver se consigo fazer Direito.

— Desistiu de psicologia? Como é que você falava quando entrou na escola? Ah! “Vou fazer o que profissionais não fizeram e explicar esse pesadelo!”

— Eu tinha catorze anos, dá um tempo. — Sorriu, dando um soquinho no professor. — Eu só acho que está na hora de superá-los. Ninguém vai me dar a resposta que quero, então bola pra frente, né? E eu sempre quis ajudar as pessoas de algum jeito, sabe? Acho que me tornar advogada é uma boa opção.

— É, eu lembro dos rumores sobre você limpar o chão com a cara dos valentões. Acho incrível você não ter sido expulsa.

— Fiz o meu melhor pra não passar novamente o que passei no Texas, mas também não ia ficar quieta vendo outros sofrendo o mesmo que eu. Além do mais, os vídeos acabaram mais ajudando do que atrapalhando.

— Eu queria muito poder ver esses vídeos. Mas cá entre nós, a verdade é que ninguém queria se meter com a melhor amiga de Carolyn White. — Ele riu. — De todo modo, quando se mudar talvez você esbarre com meu filho em algum momento. E tome cuidado, os desaparecimentos continuam aumentando.

Marko bebeu o resto do whisky em seu copo e levantou a mão para a garçonete servir mais um pouco.

— Vou tomar cuidado, sim. Mas sobre seus filhos, você nunca mais teve notícias das outras duas? — perguntou a garota.

— Eu troco mensagens de vez em quando com a Amélia, mas a Magda é... difícil. Aconteceram muitas coisas, apenas eu e o Adam viemos para os Estados Unidos. Magda e a mãe dela ficaram na Alemanha e acabamos perdendo contato.

— Sinto muito. Deve ser difícil se separar de alguém desse jeito.

— Foi a decisão mais difícil que tomei na vida, mas não tive muitas opções. Minha ex-esposa e eu estávamos com muitos problemas. Ela tomou algumas decisões que colocaram nossos filhos em risco de vida. — O professor parecia irritado só com a lembrança de sua ex-mulher. — Queria ter trago as duas comigo, mas a Amélia estava longe e a Magda insistiu em ficar. Sua mente já estava convencida de que sua mãe estava certa e me chamou de covarde por fugir... Ah!, mas se esbarrar com meu filho, não comente sobre isso com ele, por favor.

Bebeu uma dose completa e bateu o copo na mesa, antes de continuar.

Yohane ouvira aquela história algumas vezes, mas nunca ousara perguntar por mais detalhes. O motivo de Marko insistir em manter isso em segredo também era um mistério para a menina.

 

***

 

Após cerca de quatro horas, a maioria dos formandos havia ido embora. Marko foi o último, tendo voltado pra casa em um táxi que Yohane chamou.

Quando notou, a ruiva estava sozinha no bar, apenas com o som dos ponteiros do relógio e dos funcionários limpando as mesas.

Um flash acertou sua mente. Um rosto familiar foi visto em seu subconsciente. Uma jovem de cabelos acobreados e olhos cor-de-jade. Seu sorriso, uma vez caloroso e gentil, não estava mais em seu rosto. No lugar, uma expressão vazia, com sangue escorrendo pela boca.

Por que não me impediu de ir? — perguntou a jovem.

A garota ruiva apertou os olhos em reflexo e, no segundo seguinte, a visão desapareceu. Ela pediu um copo de água com açúcar, estava estressada. O som do relógio na parede começa a ficar mais alto.

Tic. Tac. Tic. Tac. Seu rosto começou a ficar quente, seu cérebro doía.

Se você não tivesse pedido, eu não teria ido. — A jovem retornou.

Tic. Tac. Tic. Tac. A cada tentativa de fingir a inexistência daquela visão, a imagem ficava mais clara e a voz falava mais alto.

Se você não tivesse insistido, eu poderia estar viva hoje!

Naquele momento sua cabeça parecia estar prestes a explodir e seu corpo estava coberto por suor frio. O som do relógio era como dinamites estourando em seu cérebro.

Memórias. Lembranças.

“Incêndio na floresta.” “Herdeira de White Valley morta.” “Detetive se recusa a dar detalhes sobre a operação que matou Carolyn White.”

Sua mente trouxe à tona trechos de reportagens e jornais, tudo que era relacionado à morte de Carol.

Tic! Tac! Tic! Tac!                                                                                                      

A imagem estava ali, na sua frente. Os olhos cinzentos sem vida, o rosto pálido sem alma, o corpo ferido cheio de sangue.

Podia ter me salvado com uma palavra, mas preferiu me deixar morrer!

O corpo da jovem entrou em combustão na frente da ruiva, que se derramava em lágrimas de culpa.

Naquele momento a gema de rubi do anel, que ganhara de sua mãe anos atrás, rachou.

Em seguida, sentiu o clima do ambiente mudar, a temperatura aumentou subitamente. Sabia que não se tratava de uma sensação somente dela, pois podia-se ver que os funcionários também estavam com calor. No começo, era apenas um incômodo.

Eles tentaram ajudar a jovem aos prantos, mas quando se aproximaram para tentar, brasas surgiram em suas mãos, se espalhando através dos braços pelo resto do corpo. Aquilo causava uma angustia tremenda que se transformou em uma dor ardente, conforme as brasas se tornavam chamas e carbonizavam suas peles lentamente.

Gritos foram ouvidos, vindos da cozinha. As garçonetes e cozinheiros corriam pelo cômodo enchendo baldes e arremessando água em seus corpos ferventes, mas a temperatura ali dentro chegou ao ponto de a água evaporar segundos após sair da torneira.

Já quase não era possível definir suas expressões nos rostos deformados, e suas vozes começavam a falhar. Com suas gargantas sendo queimadas, nem gritar conseguiam mais.

O fogo aumentou, tomando uma cor mais vibrante. Correu dos corpos que esperneavam no chão e começou a se espalhar pelo local. Mesas, cadeiras, armários, até que, não muito tempo depois, finalmente alcançou a única jovem presente que restava.

Ninguém pôde nem reagir. Nos poucos segundos restantes, o silêncio reinou. Sem gritos. Apenas o queimar do fogo em seu alimento. Já no segundo seguinte, uma enorme explosão destruiu o que restava do local.

 



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