Volume 1 – Arco 2
— Capítulo 12: Fantasma —
Os prédios principais de Arcadya repousavam em silêncio. Graças ao teste prático dos calouros, a maioria dos estudantes e instrutores estava ausente, deixando corredores e salões mergulhados em um vazio espectral.
Em um desses corredores desertos, o som de passos ecoava, acompanhado pela batida cadenciada de um cajado contra o piso frio.
Uma garota caminhava sozinha. Vestia roupas largas que arrastavam no chão, seus cabelos eram tão brancos quanto a neve, assim como a pele pálida que parecia refletir a luz fraca dos vitrais. No rosto, porém, um detalhe destoava: uma marca vermelha, semelhante a um hematoma recente, destacava-se ainda mais sobre a pele alva.
Mas, ao contrário do que se poderia supor, Vanilla Novigrad não recebera aquela marca no duelo que acabou de disputar.
Na noite anterior, ao retornar dos testes teóricos, fora convocada por sua mãe. Vanilla sabia que recusar não era uma opção, e de certa forma, já sabia o que a aguardava.
— Estou aqui, mãe.
Sua voz soou apática dentro da sala escura, iluminada apenas pelo prateado da lua que atravessava as janelas.
Ali, uma mulher de cabelos cinzentos, não tão brancos quanto os da filha, encarava-a com uma expressão carregada de ódio. Mesmo com a penumbra dominando o cômodo, a raiva em seu rosto era inconfundível.
Diante daquela visão, apenas um pensamento cruzou a mente de Vanilla, ainda de semblante vazio:
"Essa parte sempre dói."
SLAP.
O estalo ecoou alto. O tapa foi tão violento que fez as cortinas oscilarem e pilhas de papéis caírem das mesas.
O rosto de Vanilla virou com o impacto, mas sua expressão permaneceu inalterada. Logo, porém, sentiu os cabelos serem puxados bruscamente, trazendo-a para mais perto da mãe.
— Você só tinha um trabalho… uma função!
As veias da têmpora de Vangressa Novigrad saltavam, pulsantes, enquanto a voz carregava veneno.
— E, mesmo assim, conseguiu ficar abaixo daquele traste!
Vanilla sabia exatamente a quem ela se referia. No teste teórico daquela manhã, havia ficado abaixo de Lilith Lionheart, tudo por causa de três questões absurdas que pareciam impossíveis de resolver.
— Aquela família tirou tudo de nós… e é por isso que você vai superá-los!
A raiva de Vangressa transbordava, seus olhos faiscando como brasas. Ela puxou ainda mais a filha contra si, até que suas testas se tocaram.
— Você vai ser melhor, Vanilla. Melhor do que eu jamais fui!
Agora seus olhos estavam úmidos, lágrimas escorrendo de uma mistura de fúria, frustração e tristeza.
— Melhor do que eles jamais vão ser!
Em seguida, abraçou a filha com força, como se tentasse expurgar a própria culpa junto ao gesto.
— Você entendeu?
Vanilla apenas acenou. O rosto ardia pelo tapa, o couro cabeludo latejava pelo puxão, mas seus olhos permaneciam frios, indiferentes, como se seus canais lacrimais estivessem congelados.
Ou talvez estivessem mesmo…
Isso foi ontem.
No teste prático de agora, Vanilla foi uma das primeiras a concluir sua prova, selando o oponente em uma montanha de gelo em questão de segundos, sem lhe dar chance de reação. Talvez tenha exagerado, guiada por uma fagulha de frustração. Talvez não. Ela mesma não sabia.
— O que eu deveria fazer?
Perguntava-se em silêncio, enquanto caminhava pelos corredores, absorta em pensamentos.
O verdadeiro obstáculo, afinal, foram aquelas três questões que não conseguiu responder. Na verdade, pelo que observou, apenas três pessoas haviam conseguido. Lilith acertou uma delas, mas sem grande destaque.
Annabeth Bloomrise, por outro lado, parecia uma opção plausível… mas sendo de longe a melhor em teoria, era também intimidante.
Bolt Stormrider? Absolutamente não. Vanilla franziu a testa só de considerar a ideia.
E, por último, Artemy von Doix.
Esse era um caso peculiar. Ele havia acertado apenas aquelas três questões, e nenhuma outra.
Estranho. Será que ele sabia do verdadeiro valor delas e simplesmente não se importou com o restante? Ou teria sido pura sorte? Talvez trapaça?
Independentemente da resposta, Vanilla não conseguia evitar: estava curiosa.
— Orelha queimando? Acho que estão falando de você, garoto… ou talvez seja só por estar no meio de um incêndio, hehe.
O tom debochado de Cheshire, em uma situação dessas, era simplesmente irritante.
— Cala a boca… cof cof!
Respondi entre tosses, engasgado pela fumaça que enchia meus pulmões.
Ainda não acredito que ela fez isso.
Lilith havia feito o impensável: simplesmente colocou fogo na floresta inteira.
Agora eu corria entre as árvores em chamas, cobrindo o rosto com o braço para evitar respirar mais fumaça. As labaredas se contorciam e abriam diante de mim, revelando um caminho tortuoso, como uma trilha
Mas o que ela está tentando fazer? Se for pra me encontrar, o fogo e a fumaça só vão atrapalhar. Será que ela quer me matar queimado?
Não… ela tá me encurralando.
Se me levar pra um combate direto, acabou. Balas e facas de frente são inúteis. Eu ainda preciso daquele ataque surpresa, antes parecia impossível, mas agora…
— Cof cof! Preciso acelerar!
Enquanto isso, o clima no salão de avaliação se tornava cada vez mais animado. Aquela já era uma das últimas batalhas ainda em andamento.
— Oh… ela é mesmo uma amplificadora? — Dorothy parecia genuinamente impressionada com o que via no portal de observação.
— O fato de ser uma floresta ajudou, mas ainda assim, a expansão das chamas é notável — Victor comentou, mantendo seu tom habitual de elogio contido.
— Vai morrer se elogiar a garota direito? — Vanessa retrucou, soando como alguém que já havia visto aquele tipo de cena muitas vezes antes.
Todos ali sabiam, arcanistas do tipo amplificador não conseguiam materializar seu próprio atributo muito longe do corpo. O feito de Lilith, incendiar uma floresta inteira, era impressionante até mesmo para calouros emanadores. Talento bruto podia ser assustador às vezes.
— Mas… se ela queria encontrar o garoto, esse incêndio não vai atrapalhar? — Dorothy questionou, franzindo o cenho.
— Grande poder destrutivo, mas pensamento estratégico nulo — Victor rebateu com desprezo, como se observasse algo decepcionante.
— Heh, acho que você está subestimando a inteligência da nossa “flor flamejante” ali — Atlas disse, tentando não rir do apelido popular de Lilith.
— Se liga nisso.
Atlas se endireitou na cadeira onde estava largado e fez um gesto com as mãos. A imagem no portal tremeu, distorcendo-se até assumir uma nova perspectiva, uma visão isométrica da arena, vista de cima para baixo.
O que surgiu na projeção fez todos prenderem a respiração.
— O… o quê?! Tá de sacanagem… — Dorothy quase caiu do travesseiro onde estava sentada.
— Urgh… — Victor ficou imediatamente mais sério.
— Hahaha, queimaram a língua — Vanessa riu dos dois, embora seu tom deixasse escapar uma pontinha de tensão.
O incêndio nunca foi aleatório. De cima, a floresta inteira formava um desenho, uma lótus de fogo. Os caminhos entre as labaredas traçavam pétalas perfeitas, todas convergindo para um único ponto, o topo da flor!
Só aquele feito já seria impressionante para uma amplificadora novata, mas o mais assustador era a intenção por trás dele.
— E-ela está guiando o garoto! — exclamou Dorothy, e todos perceberam o verdadeiro plano.
Os caminhos criados por Lilith eram os únicos trechos seguros em meio às chamas, além do ponto de origem. E agora, um a um, eles começavam a se fechar, empurrando tudo para o centro da lótus.
A ideia era simples… e cruel.
Não importava para onde Artemy corresse, desde que não se jogasse nas chamas, em poucos minutos estaria exatamente onde Lilith queria, na palma de sua mão.
— Corre, corre, coelhinho!
Lilith parecia completamente à vontade, apoiada na própria lança fincada no chão. Ao seu redor, uma pequena área permanecia livre das chamas, um oásis de calma em meio ao inferno ardente que consumia o restante da floresta.
— Argh… que entediante.
Definitivamente, aquele não era o tipo de duelo que agradava Lilith. Amante de confrontos diretos e brutais, ela detestava caçadas prolongadas, embora houvesse algo de viciante na sensação de ser a predadora em um jogo mais estratégico.
Desde criança, Lilith sempre fora chamada de estranha. Vinda de uma família nobre, nunca se comportou como uma dama, recusava-se a usar vestidos cheios de babados e detestava as refeições refinadas da mansão.
Em vez disso, passava o dia inteiro explorando a floresta ao lado das terras da família, e, para o desgosto dos tios e primos, muitas vezes retornava com presas impressionantes. Javalis, coelhos e até cervos, caçados e depois dissecados com uma curiosidade quase clínica, transformados em pedaços suculentos que mais tarde se tornavam o jantar da casa.
Era um espetáculo grotesco aos olhos dos outros, mas seu pai nunca a condenou. Pelo contrário, o velho Leão Branco dos Lionheart até a incentivava. Boa parte da fama guerreira da família existia por causa dos feitos daquele velho monstruoso.
Um leve sorriso se formou no rosto de Lilith ao lembrar-se de sua família. mãe, pai, e seu irmãozinho Leonard, que nunca teve uma saúde muito boa.
— Como será que está o Leo?
Um arrepio súbito percorreu-lhe a espinha, e o sorriso gentil deu lugar a uma expressão feroz.
— Finalmente chegou!
Detecção de éter. Uma habilidade básica a qualquer arcanista que se preze, a percepção da energia emanada por outros seres. Para iniciantes, esse “sexto sentido” era quase inútil, mas para um veterano podia decidir uma batalha.
E lá estava, do outro lado da cortina de fogo, aquela mesma energia fraca que ela havia sentido mais cedo. Quase imperceptível, mas inconfundível.
Lilith arrancou a lança do chão com um brilho excitado nos olhos.
— Fim da linha, ratinho!
Um pé à frente do outro. Postura perfeita para uma estocada certeira. No salão de observação, todos prenderam a respiração.
— Parece que acabou — Dorothy disse, relaxando sobre o travesseiro de panda.
— Um longo prelúdio para chegar a um resultado óbvio — Victor resmungou, decepcionado.
Atlas, porém, exibia um sorriso travesso, como se soubesse de algo que os outros ainda não tinham percebido.
O chão sob os pés de Lilith rachou, e ela avançou. Uma estocada rápida, precisa, devastadora. A ponta da lança perfurou o ar, mirando exatamente o centro daquela energia fraca…
Mas quando o golpe atingiu o alvo, o que se quebrou não foi um coração — e sim um anel, agora estilhaçado em meio às brasas.
Artemy não estava ali.
— Hã?
— O… o quê?!
— Nem ferrando…
Dezenas de pessoas, Lilith, professores, nobres e instrutores reagiram ao mesmo tempo, boquiabertos. Todos, menos Atlas, que mantinha o sorriso confiante no rosto.
— Tsk… só pode ser brincadeira.
Lilith, que antes exalava confiança, agora parecia acuada. A postura firme deu lugar a uma tensão visível. Ao redor, só restavam chamas que estalavam periodicamente, iluminando seu rosto suado.
Onde ele está?
Os olhos percorriam o ambiente, atentos a qualquer movimento. Um vulto cruzou sua visão periférica, ela se virou num estalo. Nada. Uma moita balançou atrás de si, girou novamente. Nada.
Lilith experimentava uma sensação inédita em combate. Pela primeira vez em sua vida, perdera completamente o rastro de um oponente. Estava vulnerável. Frágil. E a sensação era horrível.
Era como lutar contra um fantasma.
— Merda…
Um passo ecoou atrás dela. Lilith se virou de imediato, executando um golpe em meia-lua com sua lança, rápido e letal o bastante para arrancar a cabeça de qualquer um que estivesse ali.
Mas atingiu apenas o ar.
— Fim da linha — A voz soou logo atrás dela
Lilith virou o pescoço tão rápido quanto um raio… e o que viu foi o cano de aço frio, apontado diretamente entre seus olhos.
Uma sentença silenciosa.
BANG!
O disparo ecoou por toda a floresta em chamas — um som seco e final que atravessou até o grande salão de avaliação. O portal que exibia o duelo tremeu, e então se desfez junto com o subespaço.
Fim do combate.
O escritório de Serenna, naquela noite, tinha um ar surpreendentemente tranquilo.
A ampla janela se abria para o céu, posicionada de modo a enquadrar perfeitamente a ascensão da lua, e os feixes prateados que entravam por ela pintavam a sala com uma luz suave e melancólica. O contraste vinha da iluminação amarelada dos candelabros e do aroma envolvente do café quente que fumegava sobre a mesa.
— Dia difícil?
A voz soou familiar, preguiçosa e descontraída. Atlas apareceu sem cerimônia, como quem já era de casa. Largou o sobretudo sobre o encosto da cadeira de Serenna e cruzou os braços, observando-a por cima dos papéis.
— Nada demais estava apenas terminando aquele seu pedido. — respondeu ela, levando a xícara aos lábios.
Os dias de avaliação, tanto teóricos quanto práticos, eram exaustivos para os avaliadores, mas Serenna parecia lidar com tudo com uma eficiência quase sobre-humana. Raramente demonstrava cansaço, trabalhava com uma calma quase irritante.
— Ainda assim, não entendo completamente o propósito dessa lista. — Ela folheou uma das pastas sobre a mesa, franzindo o cenho. — Não soa… um pouco preferencial?
Puxou uma folha e a girou na direção de Atlas. Na parte superior, o título em letras marcantes: “Supernovas”. Abaixo, doze nomes acompanhados de fotos e descrições detalhadas.
— É só uma questão de segurança… — comentou Atlas, observando com o olhar curioso.
A lista não era apenas um registro de talentos promissores. Era também um mapa de riscos, uma coleção de possíveis focos de instabilidade ou pontos de interesse capazes de atrair forças perigosas.
Noah Shade — Seu atributo único e suas técnicas o tornam notável, mas o mais intrigante é a presença espiritual que o acompanha, pesada e sufocante, afastando todos ao redor. Um dos três admitidos por indicação pessoal.
Finn Darkwood — Lembra demais a Vanessa. Genial em engenharia arcana, ambicioso e ousado, embora por vezes imprudente.
Adrian von Doix — Talento e força notáveis, mas tendências éticas e comportamentais preocupantes — mesmo para os padrões dos von Doix. Valioso, mas instável.
Maria D’Aurencia — A princesa do continente e filha mais nova do Rei dos Reis. Sua entrada na academia foi postergada, mas ainda assim requer atenção especial.
Vannila Novigrad — O passado conturbado da família Novigrad pode reacender antigos conflitos com os Lionheart. Um talento bruto, vasto em energia, mas de visão tática limitada.
Lilith Lionheart — O teste prático deixou claro o poder avassalador de Lilith. Força destrutiva e raciocínio estratégico, em potencial, talvez só abaixo de Bolt Stormrider e Kazehara Yuto.
Bolt Stormrider — Considerado o mais honrado entre os calouros. Pela opinião popular, a maior estrela em ascensão. Graças a falta de conhecimento sobre Kazehara Yuto. Ainda assim, seu vício em poder e desprezo pelos fracos podem torná-lo perigoso.
Polius Fairytail — Portador de um atributo único de luz. Potencial imenso, admirador de heróis e da justiça, embora um tanto ingênuo. Outro dos três indicados pessoais.
Annabeth Bloomrise — Pouca energia e quase nenhuma aptidão para combate, mas um talento teórico incomparável, especialmente em alquimia. Sua paixão pelo conhecimento soa quase gananciosa.
Theodore Hartmann — Um jovem empreendedor com visão além da idade. O passado parece deliberadamente apagado, mas seus feitos atuais, como fundador de um dos maiores grupos mercantis do continente, falam por si.
Kazehara Yuto — O único aluno vindo do isolado País do Vento. Um desastre natural em forma humana, poderoso, mas incontrolável. O mais talentoso e, paradoxalmente, o mais desinteressado. Outro dos três indicados pessoais — e ainda me impressiona como você o convenceu a fazer alguma coisa — murmurou Serenna, semicerrando os olhos para Atlas.
Artemy von Doix — Por fim, o acorrentado dos von Doix. Após a expulsão da família, seus registros tornaram-se inacessíveis, mas de alguma forma retornou, demonstrando uma aptidão surpreendente para combate, algo que antes julgávamos impossível para alguém sem energia. O estilo de luta com armas de fogo e aquelas pistolas especiais… soa familiar, embora eu ainda precise investigar melhor.
Atlas analisou a lista em silêncio por alguns segundos antes de soltar um suspiro preguiçoso. Encostou-se na cadeira e, com um sorriso satisfeito, cruzou as pernas.
— Bem… Vamos ver o que acontece. — disse, com aquele tom leve e confiante.
Os supernovas pareciam prometer um futuro interessante
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