Volume 1 – Arco 2
— Capítulo 10: Duelo —
Bem… acho que minha breve trégua nesta academia chegou ao fim. Com a divulgação dos resultados da prova teórica ontem, meu nome – ou melhor, o maldito sobrenome que carrego – voltou à tona como uma chama em palha seca.
— O quarto filho? Pensei que ele tivesse sido expulso…
— Como ele conseguiu entrar?
— Vocês ouviram? Dizem que ele não tem nem uma fagulha de energia!
— Foi deserdado por agredir uma serva, não foi?
— Que horror!
— Como tem a audácia de aparecer aqui?
Minha reputação passou, num piscar de olhos, de "o sortudo que ficou em oitavo lugar" para "o monstro descarado". É impressionante o quanto tudo pode mudar em menos de um dia. Quem diria, hein?
Mas enfim, isso pode esperar. Tenho questões mais urgentes a tratar. Hoje é o tão aguardado dia da prova prática.
Eu não fazia a menor ideia do que esperar, mas uma coisa era certa: precisava estar preparado.
Por isso, após minha rotina matinal — que começa antes mesmo do nascer do sol — decidi dar uma passada no centro da cidade para comprar alguns itens.
Como comentei antes, a Ilha de Avalon é completamente autônoma. Além da Academia Arcadya, temos uma cidade grande chamada Diane. Pelo que me lembro, esse nome é uma homenagem à fundadora da academia — ou algo assim.
O ponto é: Diane tem tudo que se espera de uma metrópole. Casas, estabelecimentos, parques... e, principalmente, um vasto centro mercantil.
Talvez eu encontre algo útil por lá. Mas isso é assunto para depois — agora preciso terminar minha sessão de treino.
Disse isso enquanto me alongava, preparando o corpo e a mente. Resolvi treinar no mesmo lugar de ontem: o setor leste da academia, próximo ao dormitório feminino. Um canto sossegado, quase esquecido, onde mal se vê uma alma viva. O ar ali é puro e carrega o aroma da floresta — algo que realmente me agrada.
Eu sei que temos um centro de treinamento ultratecnológico e tudo mais. Com certeza vou visitá-lo em breve. Mas não sei se algum aparato de última geração consegue substituir o bom e velho ar fresco.
— Você fala como um velho, sabia?
— Vai dizer que eu tô errado agora?
Cheshire, como sempre, aproveitou a brecha para zombar de mim. Flutuava por perto, com aquele sorriso incorrigível no rosto.
— Sabe, acho que você nasceu na raça errada, garoto! Se fosse um elfo, imagino o quão insuportável seria quando o assunto é natureza. Hehe.
Mesmo já tendo passado por cidades imensas como a capital Yhona, esse lugar ainda conseguia me surpreender.
Diane era um redemoinho de vida e movimento — pessoas pra lá e pra cá, cada uma mergulhada em sua rotina, como formigas num formigueiro de concreto. A população era formada, em sua maioria, por funcionários de Arcadya e suas famílias, mas também se via de tudo: mercadores, andarilhos, viajantes de terras distantes. Um verdadeiro caldeirão de rostos e histórias.
Dei uma olhada ao redor e percebi que não era o único com a brilhante ideia de dar um pulo no mercado pra me preparar. Ontem, tinham distribuído o dinheiro inicial — 1000 talons, o que daria mais ou menos umas 100 moedas de ouro lá fora. Era uma bolada, pra ser sincero.
Por isso, o lugar estava coalhado de alunos: uns comprando feito loucos, outros só batendo perna. E olha, não demorou muito pra eu perceber o absurdo que eram os preços ali. Os vendedores claramente sabiam que alguns nobres por aqui mal sabiam o valor de uma moeda — e se aproveitavam disso com gosto.
Uma poção simples de regeneração estava custando 100 talons! Com isso, lá fora, dava pra levar dez dessas fácil. Um assalto à mão armada. Mas sinceramente? Desde que o assalto não fosse comigo, tô nem ai.
Enquanto esses pensamentos passavam pela minha cabeça, um rosto familiar surgiu ao longe. Ela parecia estar tendo uma pequena guerra numa das lojas.
— I-isso é um roubo! Raiz de planta-dragão custa um décimo disso!
Annabeth Bloomrise estava indignada. Com as bochechas infladas e o rosto ruborizado, protestava com uma fúria quase fofa — mas sua altura mal alcançando o balcão não ajudava muito na hora de intimidar alguém.
— Tsk. Veja bem, mocinha — respondeu o vendedor, dando de ombros e revirando os olhos com desdém — isso aqui são só negócios. Se não gostar, é só não comprar, ué.
— E-eu sei! Mas isso não faz o menor sentido!
— Tá com dificuldade aí, Betinha? — uma voz grave ecoou bem atrás dela.
— O-que? Mas quem é ago— Ah… Artemy!
Annabeth, já irritada só de ouvir aquele apelido, virou-se com o olhar afiado... mas congelou ao ver um rosto familiar, o que amenizou o clima por um instante.
— Fala aí! Não achei que a gente fosse se esbarrar tão cedo.
— Humpf.
— Pfft, beleza, beleza… foi mal pelo apelido. Não vai ficar brava, né?
— Arff, tá… tanto faz. — resmungou, mas um leve sorriso escapou. Logo retomou aquele jeito alegre e habitual.
— Também não esperava te ver por aqui. Fico feliz que esteja bem.
— Mas e aí? Qual é a treta com o vendedor?
— Ergh… eu tava tentando comprar esse ingrediente, mas o preço tá um absurdo!
Annabeth era uma das poucas pessoas que eu achava incapaz de cair nessas ciladas inflacionadas. Mas parecia que, dessa vez, nem ela ia conseguir dobrar o sujeito.
— Beleza. Deixa eu trocar uma palavrinha com ele. Às vezes, sei ser bem… convincente.
— Ah… certo. Fica à vontade. — Mas pelo olhar dela, dava pra ver que confiança era o que menos tinha.
Do outro lado do balcão, o vendedor já ouvia tudo e bufava de tédio.
— Arf. Olha só, vocês dois. Não vou abaixar o preço, não importa o que digam—
POW.
A frase morreu na garganta quando uma faca se cravou no balcão, perfurando uma nota de 50 talons. Atrás dela, eu olhava pro sujeito com um sorriso que era tudo, menos amigável.
— Vamos lá, camarada. Mesmo vendendo isso pelo preço justo, você ainda vai sair no lucro.
— 500 talons! Não vendo por menos!
O vendedor até deu uma estremecida, mas tentou manter a postura.
— I-isso não vale nem 40! — Annabeth quase gritou, incrédula.
— Hehe… certo. Então que tal uma nova proposta?
Tirei a faca do balcão e comecei a girá-la entre os dedos.
— Eu não tenho tanto ouro assim... mas tenho bastante aço.
A ameaça era clara. Uma gota de suor escorreu pela têmpora do homem. No fim, decidiu não arriscar — ainda sairia ganhando.
— Peguem isso e sumam daqui! — resmungou, empurrando um saquinho com raízes arroxeadas e embolsando a nota de 50.
— Ué, aço? Você ia fazer escambo? — Annabeth perguntou, confusa, inclinando a cabeça.
— Eh… tipo isso, haha! — brinquei, jogando o pacote nos braços dela.
— Caramba! Muito obrigada! Nem acredito que conseguiu! Era o último ingrediente que faltava pra minha poção! Sem ele, ela só soltava fumaça sem parar…
Annabeth parecia radiante segurando aquele saco de raízes estranhas. Cada um com suas paixões, né?
— Ah, é verdade! Deixa eu te devolver o dinheiro!
— Nah, relaxa. Peguei aquela nota do seu bolso.
— Q-quê? Como é que…
— Hahaha! Acho que você devia prestar mais atenção.
Fui saindo de fininho, me divertindo com a cara dela.
— Mas já que tá querendo agradecer… que tal me dar aquela poção “fracassada”?
— Ergh… bom, não sei pra que você quer isso, mas claro. Aqui está. E obrigada.
— Relaxa. E aliás, parabéns pelo primeiro lugar na prova teórica. Ainda não entendo como você faz isso.
— Ah, bem… é meio que a única coisa que eu sei fazer. — respondeu, mexendo nos cabelos, meio sem graça.
Ela também tinha ficado surpresa com a oitava colocação de Artemy. E ainda mais com os boatos sobre seu sobrenome. Tinha ouvido coisas bem pesadas... mas nada batia com a pessoa que conhecia. Decidiu, sabiamente, não tocar no assunto. Talvez fosse delicado demais.
— Fiquei impressionada com seu oitavo lugar também, Artemy. Chegou a ler aqueles livros que eu recomendei?
— Ah... claro, dei uma olhada, sim…
— Mente que nem sente. — a voz sarcástica soou dentro da minha cabeça.
Cala a boca, Cheshire!
Depois de um tempo, acabei me separando da Annabeth. Assim que contei o que tinha vindo fazer no mercado, ela praticamente explodiu — cuspiu uma lista interminável de itens, poções, acessórios, tudo que poderia ser "útil" pra mim. Falou por uns bons cinco minutos sem parar. No meio de tanta coisa, admito que algumas sugestões até fizeram sentido.
No fim, resolvi montar minha própria lista com o que realmente achei importante. Acho que deu pra manter tudo dentro do orçamento... embora desviar dos vendedores picaretas tenha sido um verdadeiro teste de paciência. Precisei "dialogar" muito mais do que gostaria.
O primeiro item que peguei foi uma corda feita com escamas de peixe vampírico. Fina como linha de pesca, mas absurdamente resistente — dizem que aguenta até uma tonelada. Útil.
Depois, encontrei um cristal de éther flamejante. Parecia um quartzo polido, semitransparente, de um vermelho vibrante. Gerava uma chama pequena, ideal pra acender coisas — um bom gatilho inicial.
Também peguei algumas poções de regeneração. Fracas, claro. No máximo servem pra fechar uns cortes. As melhores poções do mundo são lendárias — dizem que conseguem regenerar membros inteiros, mas custam o equivalente a uma vida de trabalho.
Junto com todas as tralhas que comprei, ainda tinha aquela poção estranha que a Annabeth me deu. Um potinho de vidro redondo, onde uma fumaça branca girava lentamente, como uma nuvem presa ali dentro. Esquisito, mas se tiver o efeito que ela mencionou… pode ser útil.
Já estava na hora de ir. Caminhava pelo mercado com todas as minhas aquisições cuidadosamente escondidas sob o uniforme, pronto pra me localizar pro teste prático. Mas então… uma última loja me chamou a atenção. Recheada de itens extravagantes — quase lendários.
Espadas brilhantes cravejadas de gemas mágicas, cajados luxuosos esculpidos em madeira rara, joias com efeitos absurdos... A loja parecia feita pra atrair nobres, como se fosse uma armadilha dourada.
Nada me interessou. Eram só enfeites caros pra arcanistas exibicionistas. Mas, quando fui até o fundo da loja, uma parte mais vazia e esquecida apareceu — e lá, apenas um item repousava solitário numa prateleira empoeirada.
Sem vidro, sem ornamento. Apenas um pequeno anel prateado com um cristal no topo, acompanhado de uma plaquinha com nome, função e preço:
Anel de Cristal
Ornamentado com um cristal que emana uma pequena quantidade de éther
200 talons
Inútil. O material era barato e o efeito, pior ainda. Até um arcanista iniciante mal sentiria diferença. E o preço… completamente inflacionado. Mas, mesmo assim...
— Quero levar isso.
Sem mais palavras, coloquei o anel no balcão junto com as 200 moedas.
— Oh, mas é claro, meu nobre cliente! — exclamou o lojista, sorrindo como quem acabara de ganhar na loteria. Era gordinho, bigode de vigarista, e mal conseguia esconder a empolgação.
— Um segundo, meu jovem...
Me interrompeu no momento em que eu virava pra sair.
— Esse colar no seu pescoço… tem uma pureza de prata impressionante. Que tal vendê-lo? Posso oferecer um valor muito generoso.
Colocou uma algibeira pesada sobre o balcão. O tilintar das moedas deixava claro que era uma oferta grande — absurda, pra um simples crucifixo.
— Não tenho interesse, obrigado.
— Ah, não seja assim! Que tal isso então? Além do dinheiro, pode levar qualquer item da loja. Qualquer um.
Com a voz trêmula mas ainda sorridente, o lojista apontou pra toda a coleção de relíquias cintilantes à sua volta. Uma proposta irrecusável… pra qualquer um.
— Não. — disse, já virando as costas.
— E-espere, nesse caso, o que acha de—
Ele nem terminou a frase. Sua mão tocou meu ombro e então... viu. Um par de olhos dourados o encarava como se pudesse devorá-lo ali mesmo. Suor escorreu por sua testa enquanto ele dava um passo pra trás.
— Eu preciso repetir?
Sem conseguir responder, ele apenas me viu sumir na multidão.
POW
— Porra!
Bateu com força na mesa. Já havia fechado a loja, mas a frustração transbordava. Não podia acreditar na oportunidade que deixara escapar.
— Soulrite...
Pouquíssimos reconheceriam aquilo — um material lendário, protetor de espíritos. Aquele colar... poderia garantir a ele uma vida inteira de luxo. E estava no pescoço de um simples calouro. Isso não podia ficar assim.
— Frustrado com alguma coisa, patrão?
A voz surgiu com um tom irônico. Atrás do balcão, mesmo sob o capuz, as cicatrizes no rosto do homem ainda eram visíveis. Um sujeito parrudo, discreto, encostado na parede com um sobretudo gasto.
— Jack. Acho que tenho um trabalho pra você.
— Ora ora... o que um nobre feito você quer com um bandidinho de segunda, hein? Hehehe...
— Vai valer a pena. Confia em mim, só dessa vez.
— Pelo seu desespero, parece que vale mesmo. Manda.
— Um garoto. Alto, olhos dourados, cabelo preto preso num coque bagunçado. Encontre-o e pegue o colar. Mate, se for necessário.
Jack sorriu. Um sorriso feio, marcado por cicatrizes. Pela primeira vez em muito tempo, ouviu algo realmente interessante.
— Matar e roubar um calouro dentro do território de Arcadya? Hehehe… você sabe muito bem quanto isso vai custar, senhor nobre.
Enquanto girava uma faca entre os dedos, deixou claro que o preço seria alto. Absurdo. Mas o lojista nem hesitou.
— Tsk. Só anda logo com isso.
— Com prazer, chefe. Hehe...
Serviço fácil.
Era isso que passava pela cabeça de Jack — um filho das ruas, forjado na violência e crescido à sombra dos becos, que virou mercenário antes mesmo de saber escrever direito. Ele era ladrão, assassino e, acima de tudo, um fantasma. Mesmo no meio de uma multidão, desaparecia entre as sombras como se fosse parte delas. Passos leves, rápidos, e um instinto afiado como navalha.
No início, tudo aquilo era só uma forma de continuar respirando no dia seguinte. Mas, com o tempo — e com muitos cadáveres no caminho — Jack aprendeu a gostar. Gostar do silêncio antes do golpe. Do olhar de pavor congelado nas vítimas. Do sangue quente no frio da noite. E hoje, pensando no rosto desesperado daquele garoto mimado, ele chegou a salivar. Nobrezinhos de Arcadya... como ele os desprezava.
Arrogantes, inúteis, frágeis. Uma piada de gente. Jack mal podia esperar.
Não demorou a encontrá-lo perambulando pelas ruas de Diane. Aquela altura e postura pomposa chamavam atenção demais — um alvo pintado de dourado. Mas pouco importava. Quando uma adaga encosta no pescoço, até o mais valente vira poeira.
Mesmo a cinquenta metros de distância, com gente por todo lado, Jack não tirava os olhos do alvo. Sua visão sempre foi quase sobrenatural. Esperou o momento certo como quem espera o último gole de uma bebida cara. E quando o garoto virou numa viela estreita, Jack sorriu. Um sorriso faminto.
Seguiu por entre sombras como se fosse feito delas. O garoto entrou ainda mais fundo na viela, virando outra esquina. Jack viu sua chance: ali, naquele ângulo cego, ele ia encurralá-lo. O trabalho estaria feito antes mesmo que a vítima entendesse o que aconteceu.
Mas quando fez a curva...
— Não achei que ia ser tão rápido. Você é bom!
O mundo de Jack parou.
O cano da arma parecia maior do que qualquer coisa. Encaixado bem entre seus olhos — frio, cruel, definitivo. Ele congelou. Aquilo era impossível. Ele havia sido detectado? Como? Ninguém nunca ouvia seus passos, nem mesmo arcanistas veteranos. Quem era aquele moleque?
— Não pretendo te matar, mas não testa minha paciência. Passa pra cá.
“Passa pra cá”? O quê? A mente de Jack girava como um redemoinho.
— Não entendeu? Dinheiro. Achou que ia tentar me matar de graça?
A audácia do garoto era surreal. Um ladrão experiente sendo assaltado por um estudante? Aquilo era patético. Humilhante. Mas no meio da frustração, um sorriso brotou em sua mente.
— Claro... deixa só eu pegar minha bolsa.
Com calma ensaiada, Jack enfiou a mão no bolso do sobretudo. O tilintar das moedas denunciava a bolsa de dinheiro... mas seus dedos procuravam outra coisa. E logo se fecharam sobre o cabo da adaga oculta. Ele sorriu.
“Você vai se arrepender, garoto. Meu saque é mais rápido que o de um arcanista de terceiro grau. Você nem vai ver o que te cortou.”
— Eu não faria isso se fosse você.
A voz gélida atravessou sua cabeça como uma lâmina. O instinto de perigo gritou. Um grito que já o salvara muitas vezes. Talvez salvasse de novo.
Morte.
Por um segundo, Jack enxergou o fim dentro da escuridão do cano daquela arma. E sem pensar, soltou a adaga. O saco de moedas caiu no chão com um som seco.
— E como dizem, né? Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.
Jack saiu do beco com o orgulho feito em pedaços. Roubado. Humilhado. Quase morto. Um estudante! Ele cerrava os punhos com tanta força que gotas de sangue pingavam no chão.
Isso não vai ficar assim.
Enquanto isso...
Artemy saiu da loja com a pulga atrás da orelha. O jeito insistente do vendedor não era normal — provavelmente era por causa do colar. Cheshire já tinha dito que valia alguma coisa... mas ele não esperava que fosse tanto.
No fim das contas, achava que não daria em nada. Mas esse pensamento evaporou quando o cheiro surgiu.
Um fedor denso, entre mofo e flores mortas. Como um túmulo recém-aberto. Era insuportável.
— Argh, desse cheiro eu não sou fã, mas tenho que admitir... é um dos mais úteis — disse Cheshire, cobrindo o focinho com as patas.
Eu também estava enjoado. Útil? Como assim útil?
— Simples, garoto... hehehe... intenção assassina. Poucas coisas fedem tanto.
Intenção... assassina?
Foquei meus sentidos, e então ficou claro. Como se uma corda invisível me ligasse à origem daquele cheiro pútrido. Cinquenta metros atrás.
Eu estava sendo seguido.
Ligar os pontos foi fácil. Armar uma emboscada? Mais ainda. No fim, mesmo tendo gasto horrores na loja, saí com uma bolsa cheia de talons. Conveniente demais, né?
O vapor quente se agarrava aos azulejos brancos do banheiro luxuoso, escondido em um dos quartos do dormitório feminino. Os longos fios ruivos, pesados de água, cobriam o corpo esculpido de Lilith Lionheart — tão atlético quanto uma estátua renascentista. Secar aquele cabelo todo com uma simples toalha era quase uma missão hercúlea.
Mas Lilith adorava isso. Nada batia o prazer de um banho demorado depois de um treino puxado. Ainda envolta no conforto do calor, vestiu seu uniforme: um colete de mangas curtas que deixava braços e parte do abdômen expostos, uma calça de detalhes dourados — diferente da saia padrão das alunas — e, por cima, um pequeno colete de pelugem animal que cobria as costas e o pescoço, lembrando a juba de um leão.
— Cara... tô morta.
Os últimos dias tinham sido uma tortura mental. Virou noites estudando pra prova teórica, mas no fim, valeu a pena. Um sorriso ansioso brincava nos lábios dela — a parte mais infernal tinha acabado. E hoje era o dia da melhor parte:
Exame prático!
— O que será que vai rolar? Duelo, monstro, teste de força? Pra mim, tanto faz. Tô tão estressada que só quero socar alguma coisa!
Diferente da prova teórica, Lilith não se preparou de forma específica. Treinava desde criança. Seu plano era simples e direto: esmagar o que aparecesse na frente. Simples assim. Um orgulho quase assustador.
Nos corredores de Arcadya, as fofocas corriam mais rápido que feitiço de vento. Era impossível ficar desinformado. Enquanto Lilith seguia em direção ao salão principal, os rumores se repetiam como disco arranhado:
Von-Doix pra cá, Von-Doix pra lá.
Monstro inútil.
Mancha na nobreza.
Blá, blá, blá...
— Foda-se essa merda! Se o cara é um inútil, pra que repetir isso mil vezes? É por essas que eu odeio rumores...
No fim, aquela academia era um ninho de idiotas. Nobres arrogantes, tarados com olhares nojentos, desastrados que não olham por onde andam... E esse último fazia o sangue de Lilith ferver. Aquele idiota em específico — o único em anos que teve peito para encarar ela. Pelo menos coragem ele tinha, né? Uma rivalidade estranha brotava daquele encontro. Ambos pareciam odiar o mundo, e isso tornava tudo mais interessante.
A21, A22, A23...
— Sério, quem foi o gênio que inventou de numerar uma cadeira pra cada aluno?
No meio da multidão, Lilith mantinha os olhos colados no papel da mão: A36. Péssimo hábito...
POFT.
Quase como um déjà vu, bateu de cara em alguém — ou melhor, em um poste humano. Quando levantou o olhar, sentiu o sangue ferver mais que o normal.
— Porra! Você de novo?
— Garota... me responde uma coisa: esses olhos na sua cara servem pra quê?
Artemy esfregava a testa com raiva. Parecia prestes a explodir.
Qual é a desse cara? Tá me seguindo? Ou é só uma piada cósmica? Mas então ela viu o papel na mão dele: A35.
— Nem fudendo...
No palco do salão principal, uma figura imponente surgiu. Corpo largo, coberto de cicatrizes, cabelo preto rente à cabeça e um olhar tão afiado quanto lâmina de guerra.
Muitos o reconheceram: Brock Volkov, professor de combate arcano e um dos raros arcanistas de grau 1 do continente. O nível dos instrutores em Arcadya era realmente absurdo.
Ele estava prestes a falar — até que o improvável (ou talvez o esperado) aconteceu.
Uma fenda roxa, rasgando o ar como se rasgasse a própria realidade, se abriu no palco. E de dentro dela, como numa reprise cômica...
Atlas d'Arcadya.
De novo.
— Opa, opa, opa! Preciso me orientar melhor com esses portais, hein!
O medo que os calouros tinham sentido na primeira aparição do diretor foi substituído por um silêncio constrangedor. Era difícil sentir respeito por alguém com uma personalidade... tão irritante.
— Foi mal aí, Brockzão. Mas acho melhor eu anunciar isso aqui. Juro que vai ser rapidinho.
Brock só suspirou, como quem já viu aquilo vezes demais.
— E aí, calourinhos! Dormiram bem? Quer dizer... não que eu me importe, hehe!
Sinceridade cortante.
— Vocês devem estar se perguntando por que esse diretor sumido resolveu dar as caras de novo, né? A resposta é simples: surpresinha pra vocês!
— Eu ja vou cortando o misterio por aqui, e dizer que o exame prático será um duelo amistoso entre os alunos. Mas com um pequeno diferencial...
— Um dos problemas dos duelos é que e praticamente impossivel se soltar 100%. Afinal, ninguém quer matar o coleguinha por acidente, né?
— Por isso apresento a vocês uma nova tecnologia da Torre de Éther. Um presentinho, cortesia do meu atributo. Eu chamo de... Subespaço.
Click.
Com um estalo de dedos, tudo mudou. O luxuoso salão sumiu. De repente, estavam em uma planície verdejante, o vento nos cabelos, o sol no rosto. Era real... ou quase.
— O-o que aconteceu...?
— Onde estamos...?
— C-como...?
Os calouros estavam em choque. Quem não estaria?
— Esse lugar é um espaço simulado, um avatar de vocês domina aqui — mesmo corpo, mesma mente. Olhem pra palma da mão: a marquinha roxa confirma que vocês estão num subespaço.
— Em outras palavras... o que acontecer aqui não afeta o corpo real. Inclusive... a morte. Hehehe.
Palavras que gelaram muitos e incendiaram outros. Medo, empolgação, dúvida — estava tudo ali.
— Acho que vocês já entenderam, né?
Click.
Num piscar de olhos, estavam de volta ao salão principal.
— A arena será individual e sorteada aleatoriamente. Todos os duelos vão acontecer ao mesmo tempo, em subespaços separados.
— Ah! E sobre o oponente... é só olhar pro lado. Seu vizinho de cadeira é o seu desafio. Simples, né? Hehe.
Alguns sorriram nervosos. Outros engoliram seco. Mas uma dupla específica estava quase rindo de satisfação.
Finalmente... uma chance de esmagar essa pessoa insuportável.
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