Volume II – Arco 6
Capítulo 39: Heishi Celestial Pt.1
Dentro dos corredores do palácio, casa das famílias nobres do Império Ao, um homem de colete de couro, que prendiam um arco de madeira, com empunhadura de ornamentos douradas, nas suas costas, corria deixando o rastro de terra e lama das suas botas pelo tapete preto. A cada um que passava por ele, a mesma pergunta.
— O imperador — ele dizia — preciso falar com o imperador. Onde ele está?
Alguns apontavam uma direção, outros apertavam o nariz com os dedos para afastar seu fedor e só o dispensavam dali, mas eventualmente ele ficou na presença de quem procurava. As orientações o levaram a um salão escuro, com vidraças altas, uma de cada lado da parede, de onde vinham a única luz do lugar, incidindo diretamente sobre o trono, onde ele estava sentado. De cada lado do trono, uma fila de Heishis aguardava a menor ordem que fosse. O pobre homem se prostrou diante dele aos gritos.
— Imperador, eu vi ele.
— O que uma criatura dessa faz diante do meu trono? — virou o rosto para o lado, evitando contato visual com o mensageiro — Está sujando o chão por onde passa.
— Por favor, é o príncipe.
— E por que as atitudes de Satoru me importam? Heishis levem esse infeliz daqui.
Assim que os homens armados deram um passo à frente, o arqueiro jogou seu rosto no chão suplicando.
— Eu imploro! Não é Satoru, meu amado imperador. É Suzaki! Suzaki está de volta.
— Parem — Koji ergueu o braço a seus homens, que pararam de imediato — Escolha bem as suas próximas palavras.
— Eu sirvo à vossa majestade nos arredores da montanha. Nossa guarnição avistou ele entrando nessa cidade há poucas horas. Como o contingente lá é baixo, eu me prontifiquei a vir aqui sozinho, mas tenho testemunhas que confirmam o que vi.
— Ah, então está tudo explicado. Quer mendigar mais dinheiro e Heishis a um lugar sem a menor necessidade para tal. Heishis, joguem o lixo fora — apoiou seu cotovelo no trono e inclinou a cabeça sobre o punho.
As súplicas do arqueiro ecoaram pelo corredor, enquanto resistia à prisão dos Heishis, quando uma outra dupla chegava diante do Imperador para falar-lhe.
— Imperador — o primeiro disse — Suzaki está às portas do castelo. Venha recebê-lo.
Koji ergueu a cabeça.
— Viram? — exclamou o arqueiro, ainda nos braços dos Heishis — É ele. Por favor, tenha misericórdia de mim, alteza.
Descendo do trono em direção a saída, o imperador passou pelo homem que mandou prender e ordenou.
— Heishis, ensinem uma lição a esse infeliz, mas não o matem. Seu oportunismo por regalias sujou minha casa, isso não é uma boa servidão.
O homem continuou a protestar, mas não havia nada a ser feito. Koji se uniu aos seus dois visitantes, que seguravam suas túnicas para que não tocassem no rastro de sujeira deixado pelo arqueiro, e se dirigiu ao muro da fortaleza onde podia ver os portões descendo para conectar o palácio à cidade. Era uma larga ponte movida a correntes, que se estendia para receber Suzaki do outro lado.
Apoiado na mureta acima da entrada, Koji via seu filho sujo, envolvido em faixas manchadas de sangue, com as roupas rasgadas e cabelo solto, mas inteiro. Da cabeça aos pés, nenhum ferimento grave. Aquela vista o fez esboçar um sorriso sutil, que sumira no instante em que seu filho ergueu a cabeça para vê-lo. O garoto estava acenando para ele, mas recebeu apenas uma virada de costas em troca.
O pátio de entrada recebeu Suzaki com bandeiras, faixas e uma pequena multidão, quase tão numerosa quanto o dia em que se tornou candidato ao cargo de Heishi Celestial. Os criados entravam e saíam do pátio, com tábuas nas mãos, erigindo um palco às pressas, enquanto Koji tomava a frente de Suzaki, junto com alguns Heishis, que formavam uma barreira entre eles e as pessoas.
— Como era esperado — o imperador dizia — Suzaki, meu filho, retornou dentro do prazo — apontou o palco para Suzaki subir.
Outros nobres se juntavam a Suzaki naquela plataforma de madeira, cercada por Heishis, durante o discurso de Koji.
— Desde a guerra, estivemos à espera de alguém que fosse digno. Alguém escolhido para restaurar o respeito que nos foi por tanto tempo negado — levantou a mão de Suzaki — Hoje, é um recomeço para todos nós, pois o meu filho é o Heishi Celestial!
A nobreza no palco batia palmas, os abaixo do palco e nas janelas faziam o mesmo, gritando o nome de Suzaki, que voltava seu olhar para o pai, cuja atenção estava por inteira na plateia abaixo de si.
“Será que consegui mesmo?”, pensativo, Suzaki analisou a plateia, encontrando um indivíduo com roupas imundas. O sujeito tirou uma moeda do bolso e atirou-a no palco. Assustado, o garoto encarava a moeda que ficou aos seus pés.
— Depois de tanto tempo, essa será a nossa vez! O nosso tempo — o imperador ergueu o punho cerrado — o maior soldado do mundo conduzirá nosso império rumo à dominação do continente!
A declaração dessa vez arrancou um grito rancoroso da garganta dos azuis. Mais moedas eram jogadas no palco, aos pés de Suzaki, ao tempo que o garoto se assustava com as reações.
— Em breve — continuou o imperador — Teremos nossa vingança contra o Reino de Sangue. Os vermelhos caíram sob nossos…
— Espera! — gritou Suzaki, entrando na frente.
Koji interrompia seu discurso. Toda euforia cessava naquele instante, na medida em que a plateia ficava em silêncio absoluto. Suzaki engolia seco, surpreendido com a quietude súbita, sem saber o que falar, até que o imperador pegou em seu ombro.
— Tem razão, vamos deixá-lo descansar. Essas questões podem esperar mais um pouco, agora é o momento de comemorar. Estejam nos jardins dos fundos esta noite. Não percam!
Os aplausos e as risadas retornaram ao ambiente, ao passo que os membros da corte deixavam o palco por trás, saindo do pátio e entrando nos corredores. Suzaki, que acompanhou seu pai pelo mesmo caminho, puxou-o pela manga da túnica.
— Pai eu não queria ter falado aquilo — tentava se explicar.
— Entregue o relatório das suas viagens na reunião daqui a pouco. O resto trataremos depois. Agora, vá para seu quarto — respondeu prontamente, virando as costas para o filho.
As ordens de seu pai foram logo seguidas por Suzaki, que entregava sua bolsa aos Heishi’s locais. Se encaminhando até o palácio, olhou para a estrutura debaixo para cima como costumava fazer na infância. Adentrando seu lar, notava o mesmo acabamento, porém com novas peças, pedras preciosas decoravam com mais presença os corredores. O lugar ostentava uma riqueza nunca antes vista pelo jovem.
Abrindo a porta de seu quarto, o local estava arrumado, aparentava não ter sido visitado por ninguém. Porém as prateleiras de livros e roupas de cama, estavam bem conservadas sem odor algum. Suspirando fundo, o príncipe se deitou com os olhos voltados para o teto.
“No internato estudamos várias coisas. Descobri que os nossos povos são rivais por uma guerra de décadas atrás. Já que você está voltando agora e eu me formando no exército, e se da próxima vez que nos encontrarmos, estivermos em lados opostos?”
Lembrou das palavras de Yanaho, se levantando da cama levou as mãos a testa por um momento, logo um espelho chamou sua atenção. Se atentando ao seu reflexo, abaixou sua veste percebendo a cicatriz de sua infância no ombro.
“Agora entendo o que estava querendo dizer sobre se sentir pequeno, Yanaho”, pensou retirando sua lona de viagem. “Mas, temos que continuar acreditando!”
O garoto encarava sua face no espelho, quando ouviu a porta ranger, virando-se arregalou os olhos frente a um homem com uma boina, surpreso.
— Ma-Masao?! — correu em direção a porta.
— Desculpa senhor — fechava a porta — eu pensei que ainda não estivesse…
— Por que está se retirando? — interrompeu colocando a mão sobre a brecha — é muito bom te ver novamente.
Os dois trocaram sorrisos.
— Igualmente — se curvou — você cresceu bastante.
O mordomo entrava no quarto analisando as roupas e novas cicatrizes do príncipe.
— Terei que aprontar uma jaqueta nova para você, e novas vestes para a festa de hoje — analisou do braço até o ombro do garoto — seu cabelo está muito grande, teremos que cortar também, além dessas cicatrizes. Nem imagino o que deve ter passado lá fora com as outras cores.
— Não é como pensa. Na verdade não é como nenhum de nós pensávamos — pegou no ombro de Masao — eu conheci pessoas em quase todos os territórios. Fiz amigos com alguns.
— Só pode estar brincando — riu com a boca fechada — nos amarelos, verdes eu até posso acreditar. Mas nos vermelhos? Além deles nos odiarem, é difícil entrar lá. Imagina ser amigo de um deles — percebeu o sorriso permanente no rosto do príncipe — Espera aí, é sério mesmo?
— É sério. Às vezes era como se eles só tivessem mais medo da gente do que nós temos deles. Um deles me ajudou a perceber isso. Somos parecidos eu e ele. Queremos melhorar as coisas entre esses reinos — cerrou um dos punhos — é um sonho grande, mas eu sei que podemos conseguir.
— Minha mãe costumava dizer quando era viva— pegou a lona de viagem do príncipe no chão — que sonhos grandes formam grandes pessoas — se encaminhou até a saída — então, siga em frente alteza.
— Sim, obrigado, senhor Masao.
— A-Alteza! — virou olhando para um lado e pro outro — já disse para não me chamar de senhor! — a atitude do mordomo arrancou uma gargalhada do garoto, que o fez sorrir, se curvando — Agora se me der licença, vou jogar essa lona imunda fora.
Quando Masao fechou a porta, Suzaki desabou sobre sua cama, dessa vez fechando seus olhos para adormecer.
Já havia pegado em um sono leve, quando novamente ouviu batidas na porta de forma mais bruta dessa vez. Se levantando, abria a porta.
— Senhor Suzaki — disse o visitante alto, que notava as olheiras no rosto do jovem — quanto tempo.
— Daisuke, o que faz aqui? — abria a porta completamente.
— Se apronte e venha comigo, seu pai convocou uma reunião da corte.
Daisuke abriu a porta para Suzaki, que se deparou com uma longa mesa, cruzando a sala, onde na cabeceira estava seu pai, com uma cadeira vazia ao lado. Enquanto andava até seu assento, reparava nos homens ali. A maioria tão velhos quanto seu pai. Se não estavam com coletes alinhados, estavam com longas túnicas que desciam até os pés das cadeiras. O conjunto estava debruçado sobre a mesa, olhos fixos em Suzaki, com papéis nas mãos.
— O retorno de meu filho é importante — dizia Koji, enquanto Suzaki se sentava — Mas tão importante quanto, são os resultados de sua viagem. Diga-me, o que viu nos seus dois anos no continente?
— O continente é dividido, tanto quanto me ensinaram nos meus primeiros anos aqui. Mesmo o território Kuro — o jovem parou por um instante, contendo suas mãos trêmulas — está em um conflito armado pesado.
— Há dois anos atrás não foi o que pareceu, meu jovem — um dos senhores disse — Tem certeza que o seu filho viajou pro mesmo continente que conhecemos, Koji?
— Ele obviamente está falando em comparação com nós, que somos organizados e unidos — respondeu Koji — Apesar de sermos três famílias, esse palácio nunca foi espaço para disputas. Chisei, Tsuki e Sora, todos unidos em um mesmo propósito.
— Então — continuou Suzaki, desobstruindo a garganta — Essas disputas por outro lado são a exceção do outro lado do continente. Aka e Kiiro estreitaram laços. Praticamente, os Senshis controlam as vilas do deserto.
— E depois daquele fiasco no cerco, Osíris não quer ouvir nossas propostas — completou Daisuke — É como se os Aka soubessem do nosso acordo e fizessem uma contraproposta ao patriarca pelas nossas costas.
— Eu não posso dizer que foi maléfico — retrucou Suzaki — Estive nas vilas desérticas antes e depois da intervenção dos Senshis e o resultado foi impressionante. A vida lá realmente melhorou.
Alguns sentados ali engasgaram, outros soltaram uma risada discreta, enquanto o Imperador cerrava as sobrancelhas. Mesmo de seus jeitos particulares, a fala de Suzaki arrancou reações de todos ali sentados.
— O que está sugerindo, Heishi Celestial? Que deixemos nossos objetivos de lado em prol dessa… gente do deserto? — outro questionou.
— Na verdade, eu…
— Isso nunca esteve em questionamento — interrompeu Koji — Todos nós sabemos que nosso revés há dois anos se tratou de uma antecipação dos Senshis aos Hanmã. Suzaki nos reportou na época, e tenho certeza que não mudou sua versão dos fatos, estou certo filho?
— Sim, mas…
— É isso que importa. Com você aqui, podemos fazer diferente do passado.
— Eu concordo — continuou Suzaki — Por isso gostaria de falar com vocês sobre os Midori. Eu vi um templo na Floresta Hercinia, com o brasão Sora, o que está lá dentro? Por que os Midori se sentem ameaçados por aquilo?
Dois homens do outro lado da mesa começaram a escrever ferozmente com suas penas. Um deles juntou o papel de ambos e saiu pela porta.
— Alteza, eu sinto muito — um deles se levantou da cadeira — Mas a família Chisei não está interessada nos problemas dos outros reinos. Chamem por nós quando tiverem nosso bem-estar em primeiro lugar.
Aquele que se retirava, levou consigo outros juntos de si, todos com espadas na cintura. O contingente da mesa foi reduzido quase pela metade e Koji apenas reclinou-se na cadeira.
— Então, filho, o que mais você tem a dizer? — estendeu os braços — A mesa é sua.
— Eu só queria saber qual era o motivo. Fui pego de surpresa por aquilo no caminho de volta.
— Heishi Celestial, se quer mesmo ser digno desse título, sugiro falar com mais respeito — respondeu Daisuke — Afinal, nós nunca construímos coisa alguma na Floresta Hercínia. E mesmo se tivéssemos, os Midori pertencem a nós. Quem além deles mesmos reconhecem aquela pocilga como independente?
— Não quis ofendê-los.
— Pois, ofendeu — levantou-se da cadeira também, agora se dirigindo a Koji — Me perdoe, imperador. Pode conversar depois, quando estiver em melhor companhia.
Koji voltava a se apoiar na mesa. Cerrando os punhos, ele soltou um grunhido baixo, mas que foi ouvido por Suzaki, antes de erguer a cabeça aos que restavam na mesa, agora com um sorriso estampado no rosto.
— Obrigado pela presença, senhores. Esse inconveniente é passageiro e espero contar com vocês no futuro. Estão livres para ir.
Todos se retiravam da sala, deixando Suzaki e Koji à sós, embora não por muito tempo. O Imperador andava em direção à porta, quando Suzaki se colocou entre ele e a saída.
— Pai, o que está havendo? Desde que cheguei tem estado assim comigo e agora essa reunião, por que não me respondem?
— Era só o que faltava. Desde que você chegou, tem agido dessa forma desrespeitosa conosco. Primeiro me interrompe no palco depois me faz parecer um idiota na frente dos meus súditos e agora esse desaforo? Suzaki, você realmente espionou os territórios, ou ficou escondido por dois anos?
— Pai… Como você diz uma coisa dessas? — disse, abrindo um pouco a jaqueta para revelar as feridas enfaixadas.
— Seu irmão incompetente voltou sem um braço. Se quisesse imitar ele era só dizer e não te mandaria para o Rito de Passagem. Era isso que você queria, me fazer passar vergonha que nem ele?
— Não, senhor — interrompeu, abaixando a cabeça.
— Foi o que pareceu! Seguinte, eu sei que não gosta de mim, mas enquanto estiver nesse teto, exijo um mínimo de respeito. Você me desapontou.
O coração do príncipe afundou em seu peito. Recuou sua jaqueta, escondendo as feridas.
— Saia da minha frente — ordenou Koji, abaixando a cabeça para olhar Suzaki nos olhos.
O príncipe deu um passo para o lado, deixando que seu pai fosse embora. Ele recostou-se na parede da sala, respirando pesadamente, e ficou ali até recuperar o fôlego. Quando sentiu-se melhor, subiu para os andares superiores onde seu quarto, principalmente sua cama, esperavam por ele.
Ilustradora: Joy (Instagram).
Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.