Nisoiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume II – Arco 5

Capítulo 35: Desafio

Longe dali, em poucas horas, Mitensai despertava ao menor sinal do amanhecer. Estava num galpão enorme, com as inúmeras crianças que ali dormiam junto dele, usando qualquer coisa improvisada de cama. O lugar parecia morto para o jovem, que podia ouvir a sua própria respiração ao andar na ponta dos pés até a saída. Mitensai deu uma última olhada naquelas pessoas antes de abrir a porta.

Atravessando as estradas, passando por comércios e barricadas, chegando nos limites da cidade. Poucas pessoas, muitas casas abandonadas. Ele parou numa delas. Dois andares, recém pintada, parecia nova exceto pelas dobradiças enferrujadas na porta. O local estava vazio, quando Mitensai bateu quatro palmas e imediatamente a porta se abriu.

— Você, logo cedo aqui? — Um homem alto, colocava um de seus olhos pela brecha da porta — é urgente? 

— Mais que urgente, na real, acho que você não vai gostar nada do que vou te pedir — revirou os olhos levando as mãos para trás.

— Desembucha — girava a maçaneta.

— Eu preciso que me ajude a tirar alguém do Ninho da Coruja. 

Pelo que parecia uma eternidade, os dois permaneceram num silêncio quebrado somente por Noriaki, que abriu a porta por completo, revelando seu rosto cansado, com cabelo rente à cabeça e barba mal feita.

— Espera — coçou o ouvido esquerdo — Eu acho que não ouvi direito. Livrar um prisioneiro? O que te faz pensar que posso conseguir isso?

— Você é o órfão mais velho e foi o que mais se aproximou dos assuntos da gangue. Deve saber algo que possa ser feito para reparar isso — gesticulou com as mãos.

— Ainda não entendi — levou a mão ao queixo — pedir ajuda a alguém que nem está na ativa, só por ter sido o primeiro que o Hideki adotou? Por que não tenta com o Dai? Soube que ele tem prendido uns foragidos. 

— Esse é o problema, foi o Dai que prendeu ele — respondeu revirando os olhos.

— Nesse caso, só posso dar um conselho — suspirou, coçando o olho — Desista.

— Não posso fazer isso. 

— Que bicho te mordeu, Mitensai? — cruzou os braços — Execuções nunca são revertidas. O que você tem a ganhar com isso?

— O prisioneiro é um estrangeiro! Não pretendo ganhar nada, é só que… a prisão dele é um erro. 

— Se o Hideki não disse nada, eu duvido alguém tirar algo da cabeça dele — virou-se de costas — nem sempre o que é errado para você, é para os outros. A gente já falou sobre isso — estava prestes a fechar a porta novamente. 

Foi então que o garoto avançou até a entrada impedindo que a porta fosse fechada dizendo: 

— O prisioneiro não é um estrangeiro qualquer. É um príncipe do império Ao que só quer voltar para casa. Temo que se ele for executado, os azuis terão motivos suficientes para invadir essas terras.

— Olha a gente que você se mete, Mitensai — Imediatamente Noriaki abdicou da força que fazia — Sabe que se Hideki descobrir isso você está fora, certo? 

— Eu sei — se afastou — mas, a vida dele e a segurança do território vale mais que isso.

Noriaki coçou a barba após as palavras de Mitensai, logo se encaminhou até sua casa, olhando ao redor foi até uma escrivaninha, puxando um baú negro debaixo de uma mesa. Agachou a sua altura, destrancou o objeto e o abriu, revelando um machado. Voltando a porta, a trancou com uma chave, já do lado de fora junto ao órfão mais novo.

— Obrigado, Noriaki — disse percebendo a atitude do companheiro. 

— Não estou fazendo isso por seu amigo, mas sim por dias menos piores para esse lugar — caminhou guardando o machado por dentro das vestes — vamos!

Mitensai concordou com a cabeça. Os dois saíram dali rumo à prisão, quando o dia já estava claro.

Dentro da cela, no topo da torre leste, Suzaki se escorava na janela estreita, buscando o melhor ângulo por onde a luz entrava. com o papel em mãos, ele tentava colocá-lo contra os raios de Sol para lê-lo. Mexia a cabeça de um lado para o outro, invertia o papel e o virava do avesso de minuto a minuto.

— Não consegue ficar parado um minuto, espertinho? — disse Munny, deitado ali perto. 

— Mensagens importantes assim deviam vir cifradas — sentou-se ao lado do caçador — talvez haja uma pista para mim que estou perdendo — suspirou, fechando os olhos. 

— Já tá a noite toda revirando esse papel. Uma coisa é o tédio, outra é a teimosia. Por que não faz que nem o resto? — gesticulou vagamente para o resto da cela, onde os outros estavam dormindo — Os guardas vêm a qualquer momento para levar a gente para morrer, não tem o que ser feito.

— Na verdade — desceu o papel lentamente com as mãos para o rosto de Munny — tem sim o que ser feito. 

— O que é isso? — arregalou os olhos por um momento.

— Fale baixo — puxou o papel de volta para si — são instruções para condução dos condenados. É uma maneira de escapar.

— E como conseguiu isso, espertinho? — perguntou olhando ao redor. 

— Não consegui, isso simplesmente caiu em cima de mim durante a madrugada — levou uma mão à testa. 

— Ninguém entra no ninho sem ser visto — dizia Munny, deixando de deitar para sentar-se e ver o papel de perto — Algum guarda pode estar tentando tirar uma contigo.

— Eu pensei nisso, mas tem um detalhe — pegou do bolso um pedaço de papel que havia rasgado da mensagem para mostrá-lo — de alguma forma, o mandante desta carta sabe meu sobrenome. 

— “Suzaki Sora” — leu munny — e o que isso significa?

— Os sobrenomes das famílias da corte são reservados apenas à nobreza do império.

— Quer dizer que aqueles Heishis nojentos estão vindo te buscar? — cruzou os braços — Quanta importância você tem.

— Isso não faz sentido, mas acaba sendo o mais provável — se ergueu do chão — teremos que ver para crer. 

— Teremos? — riu — está sozinho nessa, espertinho. 

Andando de volta para a janela, Suzaki parou para reparar Munny pálido escorado na parede e com sua mão esquerda que não saía de cima do ferimento.

“Pode ser uma armadilha. Mesmo assim, a melhor coisa que posso esperar disso é que seja você mesmo… Pai.”, pensou, amassando o papel em suas mãos.

Um homem de capuz marrom conduzia um jovem de blusa abotoada branca, com uma fita verde amarrada em seu tornozelo, por uma colina. Eles davam passos erguendo os joelhos até a cintura por conta da mata densa e terra úmida, que se confundia com a lama grudenta no topo do morro. 

A partir dali, os dois subiram nas árvores, pulando cuidadosamente de tronco em tronco, de galho em galho. Até que o mais novo de repente pisou em falso, sendo segurado pelo seu companheiro no último instante.

— Cuidado — disse Noriaki, escorando no tronco — Segurar os galhos com força pode te machucar, melhor darmos uma pausa — comentou, percebendo a palma da mão do amigo sangrando. 

— Nem pensar — respondeu Mitensai, escondendo o ferimento — já perdemos muito tempo. 

— Próximo ao ninho da coruja há diversas armadilhas espalhadas — se reergueu — então se quiser ter a mínima chance de negociar por seu amigo… 

— Temos que andar com cuidado — interrompeu levando a mão ao tornozelo — Já entendi, mas isso não quer dizer que devemos parar.

Retirou o laço verde que ali estava e começou a amarrá-lo em sua mão. Quando terminava de improvisar o curativo, Noriaki o puxou para trás de si bruscamente.

— O que foi? — sussurrou Mitensai.

— Tem gente se aproximando — respondeu, tampando a boca do garoto.

Ele observava o matagal se movendo, no solo, como um predador em sua direção.  Os que estavam atravessando certamente não tinham cuidado algum com onde pisavam. O som dos passos da nova companhia estava mais perto. 

Noriaki tirava a mão da boca de Mitensai, saltando para um galho mais próximo do chão. Assim que passaram por um arbusto ficou de frente com o órfão mais velho e caiu para trás com gritos, que ressoavam pela floresta. Mitensai, que viu tudo, saltou para o tronco do companheiro:

— Espera Nori… — tentou chamar por ele, mas engoliu o resto das suas palavras ao ver o grupo.

Eram oito jovens com mais ou menos sua idade. Todos rostos muito familiares para ele.

— Quer matar a gente de susto, Noriaki?! — uma delas tomou a dianteira gritando. 

— Kin?! Pessoal?! — Mitensai pulou para o solo — O que estão fazendo aqui?

— Por que trouxe as crianças? — indagou Noriaki — Quem mais você avisou Mitensai?

— Mas eu não avisei ninguém.

— Para de baboseira vocês dois, esses são os mais velhos. Nem nos falamos, mas eu tô sabendo do que tem que ser feito — Kin interrompeu os dois.

— Como assim, Kin?

— Alguém quer que o prisioneiro de ontem seja solto, e tá pagando um dinheiro bom por isso. Falando nisso, por que estavam nos galhos?

— Por causa das armadilhas — respondeu Mitensai coçando a cabeça — Espera, alguém tá pagando vocês para resgatar o Suzaki?

— É bom vocês terem uma ótima explicação para isso — cruzou os braços Noriaki — e rápido.

Kin puxou do bolso um pergaminho, abrindo-o de baixo para cima: 

— Ele disse ser um cara da gangue, tinha a braçadeira e tudo.

— E você acreditou nele? — questionou Noriaki.

— Acreditei no baú de dinheiro que ele me mostrou. E sobre esse lance das armadilhas — disse com um sorriso de canto, o papel era um mapa do terreno com uma trilha desenhada — vejam. 

— Uma rota para os ninhos, sem armadilhas? Então por isso conseguiram chegar até aqui pelo solo — apontou Noriaki, deslizando o dedo pelo desenho — Tá, vamos supor que seja isso. Quem aqui dentro iria querer soltar esse cara que só o Mitensai conhece?

— Talvez não seja só ele que conheça — supôs Kin, dando de ombros.

— Isso é mau, mas não temos outra escolha. Vamos seguir o plano, pegar o Suzaki e depois o que ele pediu para fazermos? — perguntou Mitensai.

— Ele deixou uma carruagem a alguns metros daqui. Também disse que os fundos estariam sem guarda pela tarde. É pegar, entrar pelos fundos do Ninho que o Suzaki ia tá ali. Depois levamos ele para cidade, onde ele vai pagar a gente.

— Não tem nada garantido nisso — insistiu Noriaki.

— Ele cumpriu todas as promessas até aqui. O cara é sério e qualquer coisa eu falo que foi tudo ideia minha, pode ser? — disse Kin, indo na frente — Não tenho nada a perder mesmo.

— Então vamos — disse Mitensai enquanto Noriaki apenas assentiu indo atrás de todos.

Já era de tarde no Ninho da Coruja, quando abriram a porta da cela dos condenados. Em fila, os homens entraram portando espada na cintura e grilhões nas mãos. Suzaki, guardou a carta no bolso da calça, enquanto acorrentavam todos.

Os presos faziam uma única fila, ligada pelos elos de uma corrente que foi puxada por um dos guardas até o pátio. Na medida em que suas vistas se acostumaram com a clareza do lado de fora, Suzaki voltava sua atenção para as torres nos extremos.

“Se a carta estiver correta…”, pensou Suzaki, “Só falta…” olhou para cima.

Do ponto onde Suzaki estava, o vigia que andava pela sacada da torre oeste estava prestes a ficar no ponto cego, obstruído pela própria torre de olhar o pátio principal. Quando ele finalmente saiu do seu campo de visão, as correntes nas suas mãos de repente se soltaram.

Ao mesmo tempo, um grito vindo da torre leste foi ouvido pelos guardas.

— Socorro! O que está acontecendo?

Suzaki aproveitou da distração para mergulhar na mata densa do jardim. Observando o movimento brusco do garoto, estava Munny seguindo a fila dos prisioneiros, pensando:

“Adeus, espertinho” 

Ainda com os olhos na torre oeste, Suzaki repara que o homem ali, nunca mais apareceu.

“Será que…”, ponderou antes de dar um passo em falso.

Distraído, seu pé entrou no que parecia um vácuo, que o engoliu por completo. Por um breve instante, ele parecia cair num buraco, aquela escuridão cessou rapidamente e ele pôde ver seus arredores. Estava nos fundos da prisão, atrás do castelo. 

“Como eu vim parar aqui?!”, pensou espantado.

Antes que pudesse construir uma explicação para o que acabara de acontecer, uma carruagem entrava no terreno pelos fundos e estacionou bem na sua frente. Suzaki já se preparava para lutar, quando uma voz saiu de dentro do veículo.

— Suzaki! — A porta se abriu e Mitensai descia dela dando um forte abraço em seu amigo.

— Então é você — sorriu Suzaki por um momento.

— O que você está fazendo aqui?! Como conseguiu fugir?

— Espera, pensei que você tinha feito tudo, eu só… — alcançou o papel no seu bolso e mostrou a Mitensai — Recebi essas instruções na cela e… pensei que poderia ser meu pai também.

— O importante é que deu certo, estamos aqui — apontou para a carruagem com Noriaki e Kin — sobe, precisamos te levar…

— Negativo. Eu preciso voltar — interrompeu Suzaki, virando para o castelo

— Ei bonitão — Kin se aproximava — agora lembrei de você, agora entre nessa carroça e para de enrolação. 

Os dois abordaram Suzaki enquanto Noriaki cruzava os braços, aguardando no veículo com os outros.

— Espera, você acabou de escapar! — pegou Suzaki pelo ombro.

— Minha arma ainda está lá. E… Um amigo também — virou-se respondendo.

— Quem é esse seu amigo? De onde você tira essas coisas? 

— É complicado, confie em mim. Eu só vou pegar minha arma, e volto para explicar tudo — já se adiantava em direção ao castelo.

— Ei maluco, isso tá valendo grana, então não demora hein! — dizia em direção ao príncipe — as armas confiscadas ficam no porão do castelo. Me falaram que só vai ter que achar a entrada.

— Certo — respondeu partindo. 

Depois de escutar a conversa, observando o avanço de Suzaki, Noriaki pensava:

“Quem quer que seja estar por trás disso, está sob total controle da situação… Isso parece estar acima das questões da gangue. Precisamos sair dessa logo”.

Suzaki seguiu seu caminho de volta à prisão de onde saíra. Do outro lado, a súbita aparição do vigia da torre oeste fez com que os guardas se mobilizassem pelo pedido de socorro. Dai chegava naquela mobilização, rodeado por seus homens, além da fila de condenados de onde Suzaki havia escapado, agora sob sua custódia.

— Posso saber quem foi que ordenou essa insubordinação?

— É que houve um acidente e… — um dos guardas justificava.

— Eu vou te mostrar o acidente — mostrou os grilhões rompidos de Suzaki em suas mãos — Sabe de quem é isso aqui?

— Senhor, como isso aconteceu?

— Não importa! — gritou, entregando os condenados a um guarda do seu lado — levem eles daqui. Se quer algo bem feito, faça você mesmo. Venham comigo, eu sei bem o próximo passo dele.

No castelo, Suzaki entrava por uma das janelas dos lados. O corredor estava vazio e se esticava de ponta a ponta com paredes gastas, revelando algo por trás da mobília. Estava escuro, mas a luz da tarde, que passava pela janela, revelava uma escada, descendo até as profundezas do castelo. Suzaki desceu ao fundo, onde encontrou uma porta. Girou a maçaneta e, para sua surpresa, estava aberta. 

Entrando lá, viu fileiras de armários de carvalho escuro, com portas de vidro empoeiradas. Passando a mão por aquela densa camada de sujeira, viu seu conteúdo: espadas, escudos, até mesmo bombas. Um verdadeiro arsenal repousando na base do castelo. 

Então um barulho cortou o silêncio: algo arrastando no chão, um som agudo. Metal, rasgando madeira, lentamente.

— Então — virou-se rapidamente Suzaki — é você de novo.

— Em todos esses anos — respondia Dai trazendo a lâmina de Suzaki em suas mãos mais para perto, admirando-a — nunca vi nada parecido. O material, a leveza, o poder.

— Pretende usá-la contra seu dono? Logo você que diz querer acabar com esses problemas.

— E eu vou — apertou a arma com força, ativando sua aura — eu, Dai, o desafiante, te desafio a uma luta um contra um — apontou a lâmina que reluzia com um brilho verde.

— Essa violência tem que chegar ao fim — erguia os punhos em postura de luta — do jeito certo — sua aura azul crescia a partir de seus olhos determinados.

 


Ilustradora: Joy (Instagram).

Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.

 



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