Nisoiro Brasileira

Autor(a): Pedro Caetano


Volume II – Arco 4

Capítulo 27: Novo Ciclo

O sol ainda não tinha surgido no céu, quando Yanaho teve seu sono interrompido por uma rajada d’água. Ele saltou da cama, ensopado, na medida em que abria os olhos com a guarda alta.

— Ah! O que é isso? — cobriu-se com os braços de tanto frio.

— Surpresa! Hoje é o seu dia — gritou Onochi erguendo os braços.

— Eu d-devia t-ter lembrado de p-pedir para não fazer isso esse ano — rangia os dentes — Aqui faz mais frio.

— Não fica assim. É assim que vai agradecer o seu mestre? — disse dando uma gargalhada.

— Agradecer? Só pode tá brincando — pegou lençóis limpos para se enxugar.

Esperando por ele na mesa, estava um café da manhã com ovos, leite, pães e outros grãos.

— Eu não tinha visto nada disso nos armários. Pegou tudo na madrugada? Não é sempre que vejo tudo isso na mesa — sentou-se, começando a comer.

— Nada disso, tudo foi preparado com antecedência. Algumas coisas daqui nem vieram dessa fazenda. É uma ocasião especial, então coma à vontade, porque o dia será longo.

Aproveitaram da comida, mas algo chamou a atenção do Shiro. Yanaho não tirava os olhos de uma espiga de milho na mesa. 

— Alguma coisa está ruim? — perguntou Onochi, apontando para a comida do garoto.

— Não, só que esse milho é parecido com os que eu e meu pai colhíamos. Visitou ele nesse meio tempo?

— Sim, eu já lhe disse que tudo que eu souber de Yoroho, você vai saber. Pode ficar despreocupado. 

— Obrigado por comprar dele, Onochi, só que essa caridade não precisa durar para sempre. 

— Não fiz por caridade. Seu pai disse que você gostava do milho dele, que já tentou até pegar um do carregamento de vendas do Akemi.

— Isso foi há muito tempo. Não devia ter nem sete anos — começou a rir mas se impediu — Mesmo que eu esteja no lugar que ele queira pra mim hoje, ainda penso que ele precisa de mim lá. 

Onochi se levantou, colocando a mão sobre os cabelos curtos de Yanaho.

— Tenho orgulho de você e com certeza seu pai vai sentir o mesmo, quando você voltar — trocaram um sorriso amistoso, antes do mestre pegá-lo pelo ombro — Você é capaz, Yanaho. Se você está aqui e progredindo tão bem, continue! 

— Obrigado, mestre — suspirou — Viu? Eu agradeci. Tá feliz?

— Tudo tem o seu propósito, Yanaho, até a gratidão. Mas não seja por isso. Quero te entregar uma coisa. 

O mestre puxou uma maleta debaixo da mesa, abriu-a, retirando uma capa vermelha com um tecido único.

— Uma capa para mim?

— Se você aceitar, ela é sua. É uma antiga tradição do meu povo. Damos para o aluno que está se tornando independente. As capas são bonitas, mas usar elas é um motivo de honraria. Significa que você é de fato um subordinado do legado Shiro — vestiu a capa no jovem e terminou — Meu irmão me deu, quando chegou a minha hora. E hoje chegou a sua também, Yanaho.

— Eu não sei se mereço toda essa confiança, mestre — acariciou a capa com as mãos — Muito menos como vou dar algo melhor no seu aniversário para compensar.

— O seu melhor é o bastante. Agora termine de comer e vamos começar nossa viagem de volta.

Em pouco tempo, os dois aprontaram suas malas e saíram em direção à Kagutsuchi. Passadas algumas horas, ainda pela manhã Yanaho desembarcava no complexo onde mora desde que saiu da Vila da Providência. Deixado na entrada por Onochi, rapidamente foi reconhecido pelo porteiro, que o conduzia até um de seus professores.

— Olha, senão é o colônia de férias voltando da folga. 

— Garanto, senhor Arata — se curvou — Não houve descanso, somente mais treino. 

— Falar é facil, fazer já é outra história, porque hoje e os próximos dias vão ser pesados para ti. Os exames finais estão chegando, tá ligado? — bateu nas costas do mirim.

— Pode contar comigo — levantou a cabeça Yanaho — Vou entregar mais do que antes.

Continuava em direção aos alojamentos observando o campus que deixou de lado por semanas. Um caminho de pedra, cercado por gramas, e dormitórios que se estendiam até o final do lado leste do complexo. Nas outras direções, havia refeitórios, blocos de treinamento, e outros dormitórios da administração junto às salas de reuniões.

Chegando em seu dormitório, estranhou todo local estar vazio. No corredor de seu quarto, notou uma linha fina em meio a passagem. Seguindo a direção com os olhos, percebeu um balde cheio de tinta, prestes a ser derrubado da telha através de seu peso. 

— Boa tentativa, Jin — disse pulando por cima da linha. 

No quarto ao lado, surgia um garoto de estatura média, com cabelo amarrado mais volumoso no topo. 

— Não deu tempo para pensar em uma coisa mais elaborada. Não senti sua aproximação a tempo. 

— Tinha que ser você. Sumir com os outros fazia parte da peça? Estão escondidos? 

— Isso aí foi porque os treinamentos estão ocorrendo mais cedo por causa dos exames finais. 

— Então tenho que me aprontar logo — abriu a porta do quarto.

— Pode ser, mas antes você vai tá ocupado com outra coisa — puxou a linha, derramando toda a tinta do balde no corredor.

— Ficou maluco? Por que fez isso? — perguntou Yanaho ao som da gargalhada de Jin.

— É o seu aniversário! Não se lembra?! No primeiro dia de todo novo ciclo, você vai aceitar qualquer ordem do quartel, mesmo que não seja de um superior — pegou o balde e o ofereceu ao camponês — Toma, use isso para limpar. Aproveita e arruma os quartos do pessoal aí. Todo mundo deixou pra você dar uma geral — finalizou descendo as escadas.

“Droga! Como fui esquecer disso?”, pensou levando uma das mãos à cabeça.

Antes de começar, voltou ao seu quarto, que já estava completamente arrumado. 

“Provavelmente Katsuo não concordou com o plano e aliviou para mim. Onde será que ele está agora?”, pensou deixando seus pertences. 

Passando pelos quartos, percebeu que o aviso de Jin não era um blefe. Todos estavam mais desarrumados que o normal. 

“Se os fiscais virem isso, eu vou limpar quartos como punição pelo resto do ano”, sentiu calafrios pelo corpo.

Ao ouvir passos no corredor, escondeu-se num dos quartos, pensando ser um dos fiscais. Quando espiou do lado de fora, ficou aliviado. Era uma garota de cabelo curto, com alguns materiais de limpeza e outro balde cheio de água com sabão.

— Umi! Vai me ajudar? — saiu do quarto.

— Claro que não — riu — Esse é o seu novo ciclo. Só trouxe os produtos porque se o chão não ficar intacto depois de hoje, pode ser que sobre pro Jin. 

— Se não fosse você, ele já estava expulso — pegou o balde e foi até o local sujo de tinta — Acho que irmãos são para isso mesmo.

— Só não quero que ele caia fora. De um tempo para cá, ele só tem regredido. Tipo, ele se empolga mais para fazer os trotes dos aniversários do que treinar — apontou para a poça de tinta.

— Eu não entendo. Se Jin é esperto suficiente para fazer essa pegadinha, tenho certeza que pode virar um mirim que os professores gostem — começou a esfregar.

— É algo muito mais complicado do que parece — deu as costas, indo embora — Inclusive, quando terminar passa no pátio principal. O pessoal quer te ver por lá.

— Para eu receber mais pedidos, não obrigado.

— Eu estou pedindo, então você não pode negar — descia as escadas quando gritou — E não esquece de arrumar meu quarto! 

Horas depois, Yanaho terminava de arrumar o dormitório por completo. Voltou ao quarto, vestiu sua capa e se dirigiu ao pátio, onde os mirins treinavam em pequenas arenas distribuídas pelo local. Entretanto, assim que o aprendiz de Onochi se fez visto, todos pararam suas tarefas. O professor responsável fez sinal para que os fiscais abrissem caminho na arena central.

— Yanaho Aka, apresente-se — ordenou — Eu lembrava de ter avisado que esse era um exercício de mãos nuas. Entregue sua espada ao Senshi!

— Ninguém me avisou disso, senhor Tomio — desembainhou sua espada e a entregou ao fiscal — Estou à sua disposição — terminou curvando a cabeça.

— Todos aqui estão à minha disposição, por isso são mirins e se tudo der certo, serão Senshis — olhou para os mirins que cercavam a arena, escolhendo quem lançar contra Yanaho.

Sem aviso ou ordem, um rapaz salta pela mureta, jogando sua espada para o lado.

— Chegou a hora, eu quero você! — apontou o dedo a Yanaho — E dessa vez não vai poder fugir de mim.

“Yukirama, suas mãos estão mais calejadas que o normal. Andou se preparando para isso?”, pensou Yanaho reparando no olhar raivoso do jovem.

— Yukirama Aka, você ainda não foi escolhido — disse Tomio, se colocando entre ele e o camponês — Volte para seus colegas. 

— Yanaho Aka, eu peço que lute comigo! — disse Yukirama com os olhos fixos nele.

Ele tentava passar, mas acabou empurrado para trás pelo professor. 

— Já disse que não chamei você! — apontou Tomio, com o dedo em riste sobre o peito do garoto.

— Ele não pode recusar, é o seu novo ciclo  — respondeu Yukirama. 

— Pode deixar, professor — ergueu os punhos Yanaho — Eu aceito.

— Se for assim, Etsuko e Tsuneo — gesticulou Tomio para os dois entrarem — Vocês podem formar o trio para o teste de hoje, então. Qualquer desvio, serão punidos em dobro. E você, Yukirama, vamos nos ver depois dessa luta.

Yukirama ignorou a fala de seu superior, enquanto seus dois parceiros entregavam suas armas para se juntarem a ele. O combatente voluntário deu o primeiro passo, balançando o corpo para um lado para socá-lo do outro. 

Desviando por milímetros, Yanaho usou seus pés para fazê-lo tropeçar, mas o braço de Yukirama recuou com uma cotovelada. Para evitar o golpe, o ex-camponês girou o corpo para se defender. De costas para os outros dois, ele foi pego pelos braços.

— Cara, se eu fosse você nem tinha voltado — disse Etsuko chutando sua perna — A vida boa com aquele branco vai te fazer falta.

— Está de volta a realidade agora, Yanaho — adicionou Tsuneo, torcendo o braço do garoto — Aqui todo mundo é igual e vai ter que trabalhar de verdade para ser alguém.

O aniversariante improvisou uma cabeçada em Tsuneo e pulou por cima do segundo, que recebeu todo o impacto do soco de Yukirama, que vinha para se aproveitar da armadilha criada pelos outros dois. Ele ignorou o acidente e continuou a perseguir o adversário pelo ringue. 

— Essa foi feia — disse Tsuneo com a mão no nariz sangrando — Você tá bem? — perguntou a Etsuko.

— Nem doeu, cara — levantou-se — Mas o Yukirama tá levando isso a sério, de novo! 

Yanaho e seu oponente trocavam socos e pontapés, interrompidos por um chute certeiro no queixo, que fez Yukirama cambalear para trás ofegante.

— Eu não quero te machucar — disse Yanaho, limpando o sangue do rosto — Isso é apenas um exercício.

— Vê se chuta que nem homem da próxima vez — cuspiu no chão.

Yukirama investiu o corpo contra Yanaho, pressionando-o contra a mureta de concreto que cerca a área.

— Acha que pode entrar e sair quando quiser e ainda ensinar a gente como lutar? — acertou uma joelhada na cintura de Yanaho — Você é um oportunista que engana todo mundo com essa sua capa e marra de herói, mas a sua vida é tão inútil quanto a dos outros aqui — sua aura cresceu de repente, impressionando os outros ao redor.

— A minha vida… — grunhiu, juntando as mãos — Não é inútil!

A aura de Yanaho brilhou mais forte, soprando Yukirama que bateu com força na mureta da outra ponta da arena. Seus outros dois oponentes chegaram mais perto para continuar, mas um outro mirim saltou para perto para ajudá-lo.

— Fica com Yukirama, eu afasto os dois.

— Katsuo, esse exercício é para mim. 

— Isso já saiu um pouco do controle, eu serei os reforços! — investiu contra os outros dois.

Apesar da parceria, Katsuo teve seu ataque frustrado pelos dois lutadores. De maior tamanho e mais fortes, eles derrubaram o ajudante de Yanaho e o cobriram de chutes e pisões, deixando-o ao chão. O aprendiz de Onochi teve pressa e usou outro kazedamu, dessa vez mais intenso, jogando os dois para fora da arena, acertando alguns mirins de fora. 

Assim que Yanaho recuperou seu fôlego, ouviu um forte impacto vindo das suas costas. Virou-se para encontrar Tomio segurando o braço estendido de Yukirama, que segurava uma espada de madeira em mãos. 

— Quem vocês pensam que são, hein? — vociferou o professor — Senshis? Porque não é isso que eu vejo. Eu estou olhando para crianças. Crianças, isso sim.

— Professor, eu — tentou explicar Yanaho.

— Fora. Katsuo também — apertou o braço de Yukirama, que soltou a espada virando de costas — E quanto a você, se empunhar até um graveto sem a minha permissão, vai enfrentar consequências maiores do que voltar para casa. Aqui não é lugar para meninos! 

— Você não aguentaria mais um minuto comigo, Yanaho — provocou Yukirama.

— Fora. Já! — ordenou Tomio.

Yukirama obedeceu, massageando o pulso, quando se uniu aos mirins ao redor.

— O que você estava pensando? — uma das alunas comentou — Chegamos tão longe e você colocando tudo a perder?

— Como se eu tivesse algo a perder, Masori — abaixou a cabeça.

“Yukirama… está cada dia pior”, pensou Yanaho observando os dois partirem.

Todos prosseguiram para seus quartos. Yanaho, era o último a sair do local. Observava de repente que um dos alunos fugia do caminho dos alojamentos. Na tentativa de ir atrás, foi puxado por Katsuo.

— Qual o problema dele? Está desobedecendo — disse Yanaho.

— Olha bem, não reconheceu? — apontou para o jovem, que se sentou debaixo de uma árvore com as pernas para cima.

— Entendi. Kazuya não muda mesmo, né?

— Acho que até os professores desistiram.

— Tem algo muito errado nisso. Vai fazer três anos que estamos todos juntos aqui, e não vi ele falar com ninguém além dos professores.

— Eu ficaria mais preocupado com a sua luta. Foi só você pisar fora daqui que o Yukirama ficou doido. Quer dizer, mais do que já é.

— Eu estava me virando. Você que não devia ter entrado. Acabou sobrando para você na briga — passou a mão nos hematomas no rosto do amigo — Ainda não está pronto para esse tipo de luta.

— Ele pegou numa arma, Yanaho! Poxa, vou ter que esperar algo pior acontecer para agir? 

— Não é isso — balançou a cabeça — Eu e Yukirama… Isso é entre nós dois. Além disso — lembrou-se de quando tentou machucar um cobrador pelas costas com uma espada de madeira — Já conheci pessoas que agiam assim antes.

 


Ilustradora: Joy (Instagram).

Revisado por: Matheus Zache e Pedro Caetano.

   

 



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