Volume 2: Correntes invisíveis.
Capítulo 6: Imposição.
A sala do conselho estava em silêncio absoluto — o vácuo do espaço talvez faria mais barulho. As reações da nobreza, ao ouvirem a verdade sobre Harkin, eram de incredulidade.
A história contada por Eiden fez o Senado silenciar pela primeira vez em mais de cem anos. Era algo difícil de engolir até para os senadores que buscavam brechas em tudo dentro da aristocracia. Nem mesmo Bahrein se manifestou — a surpresa em seus olhos tornava a situação um misto de desconfiança e a esperança de que alguém surgisse dizendo que tudo não passava de uma brincadeira.
Kaius entrou na sala, rompendo o silêncio com o som seco de sua bengala:
— Vejo que Vossa Alteza revelou a verdade aos demais. — Seus olhos varreram o conselho.
Nenhuma reação digna — nem raiva, nem protesto, nada.
— Confesso que esperava entrar aqui e ver um verdadeiro caos.
Eiden olhou para o velho companheiro e riu levemente.
— Se você tá aqui, quer dizer que o pirralho chegou. — concluiu.
— O garoto é bom. A nova geração certamente tem garra. Leona vai querer matá-lo... o olhar dele irrita.
Antes que Eiden respondesse, Bahrein interveio:
— Kaius... isso tudo é sério. Sério demais pra sua leveza.
— Devo ter ficado velho mesmo. — respondeu Kaius.
O velho general olhou para Bahrein, ainda de olhos fechados — mesmo assim, o senador podia sentir Kaius o avaliando de cima a baixo. Um arrepio subiu por sua espinha, e ele desviou o olhar.
Mesmo sem encará-lo diretamente, Bahrein retrucou:
— Você sempre foi assim desde a infância... Entenda que não quero te desafiar, velho idiota. Só lembrar que o que nos foi revelado... faz a estrutura do império tremer. Pode nos enfraquecer.
— Quem ousaria nos atacar? — perguntou Dharma.
— Não é de ataques que Bahrein está falando. — disse Eiden, enquanto seu general mais antigo se sentava ao lado dele, entre os membros do conselho.
— Quando criei o Império, foi após uma série de guerras civis. As repúblicas falharam. Reinos centralizados falharam. Um reino religioso falhou. E um parlamento também.
— Então decidi que o Império seria a melhor opção... e até que funcionou. Estamos aqui depois de seiscentos anos.
Ele encarou o conselho, um por um, olho no olho, para que entendessem a gravidade.
— Nosso conselho existe para garantir que o povo do Império continue. Para que não voltemos ao caos absoluto que eu vi antes mesmo de vocês nascerem.
— Sempre falo disso em meus discursos, mas Kaius, Bahrein e até mesmo Erik... se lembram do inferno.
— Não precisa continuar, Vossa Graça. — interrompeu Bahrein.
— Os horrores do passado devem permanecer lá.
Eiden se recostou no trono e soltou um longo suspiro antes de continuar:
— De fato. O que eu estou tentando dizer é que, mesmo com força absoluta... existem muitas formas de tudo o que construímos em séculos desmoronar em segundos.
— Como vivo dizendo, Dharma: poder nem sempre é mana, força ou capacidade de combate.
— A mente pode ser uma arma fatal. — completou Dharma.
— Exato. E se tal poder for usado pelas pessoas erradas... até mesmo o Império pode ruir, de dentro pra fora. É sobre esse perigo que Bahrein está falando.
— Enfim... se ninguém aqui agir fora da conduta deste conselho, não teremos problemas. Sendo assim, posso contar com todos novamente?
Os conselheiros trocaram olhares. A bomba já havia sido lançada. Aquela era uma daquelas situações sem saída: mesmo o melhor estrategista, o mais sábio dos homens, sabia que não havia como sair sem perder algo valioso.
Sentindo o peso do momento, todos os conselheiros bateram a mão sobre o peito, fazendo a saudação:
— Pelo povo, pelo Império!
Eiden sorriu ao ver a união do conselho e disse:
— Ótimo. Agora... cadê aquele moleque?
Ele olhou para o relógio próximo ao trono.
— O filho da puta tá dez minutos atrasado.
Caminhando em silêncio até a sala do trono, os herdeiros do Império — desconfortáveis com toda a situação — tentavam achar a melhor brecha para falar, mas nenhum dava o braço a torcer.
Pietro via seu pai e todos os tios de costas para ele, e pensava:
“Um bando de velhos orgulhosos demais pra dar o primeiro passo.”
Irritado com o silêncio, mas sem coragem para desafiá-los, acelerou o passo e ficou lado a lado com seu amigo:
— Você já tem ideia do que vai dizer na câmara real?
Harkin não desviou o olhar das portas no fim do corredor, cada vez mais próximas — as mesmas que os separavam da prisão política do Império.
— Não... mas isso me traz péssimas lembranças.
— Mesmo você tendo escondido muita coisa de mim, eu ainda tô aqui pra te apoiar.
As orelhas do príncipe se mexeram ao ouvir o sobrinho. Ainda caminhando, ele sorriu e apoiou a mão boa no ombro dele:
— Valeu, cara. Eu sei que você ficou puto, mas era muita coisa pra processar... e, pra ser sincero, até agora tô com dificuldade de encontrar uma solução pra tudo. Não que justifique, claro.
— Tá. Foda-se, já foi. Agora só segue o plano, beleza?
— Beleza.
Gordon, que os observava à distância, percebeu que eles nem se importavam com os outros ouvindo a conversa.
“Planos, é? Interessante…”
Gordon manteve o tom neutro, mas já calculava como usaria isso a seu favor — ou contra seus irmãos.
— Independente do que esses dois idiotas tenham tramado... façam questão de garantir que meu meio-irmão idiota — que tá merecendo uma surra — sobreviva. Porque eu mesma quero matar ele depois.
Para a surpresa de todos, Leona foi quem fez tal declaração. Quando todos pararam no meio do corredor e se viraram para encará-la, ela apenas ergueu uma sobrancelha e disse:
— Que foi? Não é como se a gente pudesse se livrar desse imbecil. E também não é como se ele tivesse feito algo diretamente contra nós. Pelo menos... podemos dar uma chance.
— Eu não esperava isso de você. — disse Solomon, ainda processando. — Mas... você não tá totalmente errada.
— Traduzindo: você quer usar ele. — comentou Gordon.
— Exatamente. — respondeu ele sem hesitar.
— Tá, tá... todo mundo pode tirar um pedaço de mim mais tarde, seus babacas. — murmurou Harkin, virando os olhos com exaustão.
— Alguém claramente já tirou. — disse Leona, apontando para o braço.
A piada arrancou olhares de todos. Era um assunto sensível, mas não para Harkin, que foi o primeiro a cair na gargalhada.
Markus observou a cena descontraída e, então, assumiu a dianteira do grupo, sorrindo:
— Vamos. Nosso pai nos aguarda.
As portas rangiam pesadamente, derramando um som oco pelo salão, como se o próprio Império anunciasse sua próxima peça, revelando Markus e os outros, que caminharam até ficarem diante de Eiden e seus conselheiros.
— Vossa Majestade, eu trouxe Harkin, filho da Rainha Vermelha e príncipe de Nerio, conforme solicitado. — anunciou Markus, ajoelhando-se diante do pai.
Os demais, com exceção de Harkin, seguiram o gesto e fizeram a reverência.
— Obrigado, general Markus. Agora, vocês e os demais assumam suas cadeiras. Esta sessão deve começar.
Eles se levantaram e foram para suas posições, deixando Harkin e Pietro — que ainda permanecia de joelhos — para trás.
— Meu neto — disse Eiden, a voz firme —, creio que pedi a você que mantivesse Harkin no horário. E que Okini o ajudasse.
Pietro, ainda com a cabeça abaixada, engoliu seco. O Imperador notou o nervosismo e prosseguiu:
— Saia. Aguarde com Drake na sala da família. Continuaremos nossa conversa lá.
Pietro se levantou, pronto para sair — mas Harkin colocou a mão sobre seu ombro.
— Ele não vai sair.
A tensão preencheu o ambiente. Um calafrio coletivo percorreu os presentes.
“Ele comeu merda?” — foi o pensamento geral.
— É assim que vai ser? — perguntou Eiden, agora com a voz ainda mais fria.
— Depende. É uma exigência. Eu, junto com todos aqui presentes, limpei sua bagunça depois que você perdeu o controle das próprias emoções, velho. Então, o mínimo que você poderia ter feito era me dar tempo pra me organizar. Como isso não aconteceu... quero ao menos uma pessoa de confiança comigo nesta sala.
Se antes a surpresa já era grande, agora todos estavam de queixo caído. A ousadia do jovem príncipe fez até Kaius abrir os olhos.
— Sabe, garoto... coragem sem força é só tolice. — disse o fóssil vivo.
— Parem com o teatro, ok? Todo mundo aqui sabe quem eu sou. Por que a gente não pula direto pra parte onde resolvemos isso? Além do mais, Vultor... você não me intimida.
Harkin encarou Kaius diretamente. Seu braço estava em frangalhos, o corpo gritava por descanso — se não fossem as propriedades de sua magia, já teria desabado. Ainda assim, em meio às dificuldades, pensava:
“Se eu recuar agora, eu morro. Eles que se fodam com a etiqueta imperial.”
A tensão aumentou quando Kaius liberou sua aura — um peso invisível que despencou sobre a sala como uma avalanche de chumbo, mas ele se recusava a cair.
Tum.
Tum.
Tum.
O coração de Harkin batia como um tambor enfurecido enquanto a aura de Kaius desabava sobre ele.
Os olhos brilhavam com intensidade. Um turbilhão de energia girava ao seu redor. Ele absorvia a pressão de Kaius e a transformava em mana, fortalecendo-se.
Percebendo o impasse e o risco iminente, a presença de Eiden dominou completamente a sala. Ao contrário do que acontecera no restaurante, desta vez ele não se conteve.
A força esmagadora do Imperador colapsou Harkin, que caiu de joelhos. O braço metálico estalou, liberando uma rajada de faíscas antes de pender, solto como um galho seco prestes a cair.
Kaius também não saiu ileso. Embora os demais não percebessem, Eiden impôs pressão sobre ele, deixando claro que aquele comportamento havia ultrapassado o limite.
— Pode ficar, Pietro. — decretou o Imperador. — E você, moleque, precisa aprender a hora de parar.
— Nessa... você tem razão, Vossa Graça. — respondeu Harkin, com dificuldade.
— Agora que todos estão situados... e de acordo — continuou, encarando os presentes —, em que posso ajudar você... e este conselho?
Harkin se levantou, ajeitou as roupas e respirou fundo.
“Finalmente, algum progresso.” — pensou o Imperador.
A interação tomou a atenção do conselho. O silêncio diante da insolência de Harkin frente ao próprio pai deixava até os mais antigos inquietos.
— Hrumhum.
Bahrein pigarreou, como se algo o incomodasse na garganta, e tomou as rédeas da conversa:
— Jovem príncipe, já que você exige clareza e o fim do “teatro”, seria justo sabermos suas reais intenções.
Harkin analisou a sala e sentiu o peso de um silêncio político e sufocante.
“Eu não nutri nenhuma esperança… mas porra, corte é tudo igual. Só teatro e interesse.” — pensou.
— Estudar. Essa era minha única intenção. Todo o resto foi uma sequência de coincidências inoportunas. Pra falar a verdade, se dependesse de mim, ninguém nem saberia que eu existo.
O herdeiro falou gesticulando com a mão ainda funcional.
— Belo jeito de passar despercebido. — ironizou Dharma.
— E você, velhote... quem é mesmo? Que tal se apresentar antes de sair falando merda? Eu não tô nem aí pro que vocês pensam sobre minhas ações. Principalmente vindo de um nobre mimado que não faz ideia do que é conquistar algo sem ter tudo entregue de bandeja.
A veia na testa de Dharma saltou. Mesmo entre os que achavam que o garoto já havia cruzado todos os limites do desrespeito, essa fala ainda surpreendeu.
— Garoto! — disse Dharma, com raiva contida. — Existe um limite pro que se pode dizer. E eu vou deixar essa passar só por você ser filho do imperador.
Dharma, ao contrário dos outros, era um guerreiro. Não manipulava a mana como um mago, mas como um cavaleiro da corte. E fez questão de mostrar isso ao garoto insolente.
O conselheiro ergueu sua mão e a ajeitou na posição de um peteleco, uma lasca de energia formou-se na ponta do dedo. Um ZNNK! seco ecoou na sala quando a lasca de energia cortou o ar e atingiu a prótese de Harkin.
O impacto o desequilibrou, e ele caiu de costas.
— Tanta arrogância… pra isso? Você nem consegue se manter de pé. Vamos lá, me mostra esse espírito de novo. — provocou Dharma, ajeitando-se de volta na cadeira.
— Por favor… repete pra mim quem é o nobre mimado?
Harkin sentiu o sangue ferver. Se apoiou sobre um joelho, mas seu braço direito — já em ruínas — se despedaçou por completo, e ele tombou outra vez.
Pietro o segurou pelo ombro e o ajudou a ficar de pé:
— Os nobres daqui não são como os de Nerio. Aqui, só força importa. — sussurrou, dando a ele o impulso que faltava.
— Eu vou matar ele.
— Não, não vai. Foca. Você não tá em condição de enfrentar nem eu ou até mesmo Drake, quanto mais um conselheiro. Se comporta. Engole o choro e foca no que importa agora.
As palavras do sobrinho bateram como uma rajada fria, ainda que difíceis de aceitar.
— Desiste, garoto. Agora não é a hora. — disse Eiden, sério. — Sem falar que Dharma não é um mago. Seus poderes não funcionam nele.
“Ele já percebeu...? Claro que sim. O velho é basicamente o pai da magia humana.”
O ego ferido de Harkin começava a ceder diante da realidade. A fala de Eiden e o conselho de Pietro o reconectaram com o bom senso.
— Ok... agora devemos continuar.
O imperador retomou o controle da sessão.
— O que você tem pra dizer, Harkin?
Se recompondo, Harkin ergueu a mão funcional e mostrou o dedo do meio para Dharma. Antes que alguém reagisse, falou com firmeza:
— Eu quero abdicar do trono.
Alguns conselheiros trocaram olhares em silêncio; uns aliviados, outros desconfiados, um deles limpou a garganta, apenas para em seguida se calar. Nem mesmo Bahrein ousou dizer uma palavra.
Leona arqueou uma sobrancelha, descrente, e disse:
— Você está falando sério? Abdicar... assim, na frente do conselho? Esse é um assunto familiar garoto.
— É. Eu não quero isso. Nunca quis. — Harkin respondeu, com o tom cansado, mas firme. — E depois do que vi aqui, agora é que não quero mesmo, assunto de família ou não foram vocês que perguntaram.
— Tsc... — Dharma resmungou. — Moleque insolente, joga palavras como pedras sem saber o que quebra.
— Ou talvez eu só esteja cansado de ver gente tropeçando nelas e fingindo que não existem. — rebateu, tentando manter a postura.
Kaius riu. Um riso curto, áspero.
— Hahah... o garoto tem coragem, se nada mais.
Eiden ainda observava calado. Não interveio, não criticou. Só escutava.
Harkin virou-se para todos, falando sem pensar muito, mas com o que restava de convicção:
— Eu não quero ser mais um nome numa estátua, nem parte dessa farsa política. Não vou ser mais uma engrenagem nessa máquina quebrada que vocês fingem que ainda funciona. O império já tá caindo aos pedaços e vocês sabem disso.
— E você pode explicar que tipo de "máquina quebrada" o império se tornou? — Fernanda perguntou, com um olhar firme.
Harkin respirou fundo e respondeu, sem hesitar:
— O império, por séculos, foi o único país que produziu magos constantemente... mas se vocês prestarem atenção, a qualidade dos magos cai a cada geração. E esse império é de vocês, não é? Eu preciso mesmo explicar o porquê?
O silêncio foi imediato. Olhares pesados e curiosos dominaram o ambiente. Sem perder o timing, ele continuou:
— Eu não quero fazer parte disso. Vocês não percebem, mas a fraqueza do império é se apegar demais à ideia de força e poder. E a incapacidade do sistema atual só vai afundar tudo.
Gordon, com os braços cruzados, quebrou o silêncio:
— Então... já que você quer se afastar da linha sucessória... eu proponho que entre para o corpo acadêmico. A academia precisa de mentes vivas, mesmo que rebeldes. Você parece ser bom com isso.
Eiden pensou, ouvindo seus dois filhos:
“Ele enxerga os problemas. Ele tem a solução, mas não vai falar. Morgana disse sobre sua astúcia... Ninguém mandou ele começar. Se apontou o problema, então que traga a solução.”
Assentiu levemente.
— Não é uma má ideia, Gordon. De fato... existem muitos problemas no Império. E se perdemos sequer um general, a sociedade pode colapsar.
Ele colocou a mão no queixo, pensativo, e olhou diretamente para Harkin.
— Então é por isso que você vai garantir que os mais promissores jovens entrem nas expectativas. Dentro da academia, você vai treinar as elites — independente de status.
Harkin piscou, surpreso.
— Eu? Treinar? A ideia era estudar, não dar aula...
— Essa é a única forma de você permanecer aqui. — Eiden cortou, com a autoridade que silenciava a sala inteira. — Ou aceita... ou vá embora. Você viu o problema. Agora assuma a responsabilidade de resolvê-lo. Eu não vou te destronar... mas te tiro da linha de sucessão sob essas condições.
Harkin fechou os olhos por um instante. A mente fervia. O orgulho gritava. Mas ele sabia:
“Eu não tenho escolha. Melhor usar isso a meu favor… e isso vai me dar tempo de terminar a Arkan.”
Respirou fundo.
— E então... o que vai ser, moleque? — perguntou Eiden, já conhecendo a resposta.
Eiden sorriu. Sabia que não havia outras opções para ele.
— E eu tenho escolha?
— Não.
— Então eu aceito.
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