Volume 2

Capítulo 7: Circulos e correntes.

A luz matinal filtrava-se pelas janelas do apartamento de Harkin. O dormitório 1-A estava tranquilo. Sentado em seu escritório, o jovem maneta encarava os restos da prótese danificada como quem observa um animal ferido — inútil, disforme, silenciosamente humilhante.

“Ainda não chegou...”, pensou pela terceira vez naquela manhã. A prótese estava inativa desde o dia do conselho. 

A pressão daquele encontro não era o que ele tinha em mente quando projetou o braço.

Os materiais para o conserto podiam, em sua maioria, ser reproduzidos no Império, mas o essencial para finalizar a peça só viria de Nerio. 

Aetherium — o mineral mais raro do planeta — era encontrado em abundância apenas em sua terra natal.

“Maldita distância... O povo de Nierr’Dhalar adiantou a remessa, mas ainda não chegou. Quantas pessoas vou precisar subornar?

Fisicamente, a prótese não lhe fazia falta. Ele havia governado o clã Touriga perfeitamente sem um braço. Mas o tempo fez dela um companheiro. A ausência pesava, como se faltasse uma parte de si — e o arrastava para lembranças que ele preferia esquecer.

“Toc-toc-toc.”

O som firme na porta o tirou do devaneio.

“Será Pietro de novo? Ou Serafina? Já faz alguns dias que não falo com eles... as semanas de espera tão me matando.”

A batida se intensificou.

— UM MINUTO, POR FAVOR! — gritou o jovem príncipe, enquanto escondia o braço e ajeitava a camisa, certificando-se de que a manga longa o cobria bem.

Ao abrir a porta, uma surpresa.

— Eu também ficaria surpreso no seu lugar — disse Solomon. 

— Espero que esteja pronto. Precisamos conversar. E não vai ser aqui.

— Você é bem mandão. Tu é meu irmão, não meu dono.

— E você, garoto, arrebentou com meus dois moleques. Você sabe que me deve essa.

Harkin o mediu de cima a baixo.

— Homens de negócios são os piores — respondeu, trancando a porta atrás de si.

— Seus filhos vão se juntar a nós?

— Já estão aguardando lá embaixo.

— Ótimo. Mais drama familiar.

— Podia ser pior.

— De fato poderia.

Harkin encerrou a conversa e seguiu Solomon pelos corredores. 

As ruas da academia fervilhavam. Apesar de estarem ainda na capital, toda a cidade fora reestruturada para dar foco aos estudantes. Comércio, moradia e empregos giravam em torno da vida acadêmica.

O burburinho nas ruas mascarava os olhares e fofocas, mas ainda assim, ele podia ouvir ao fundo:

— Olha! É ele que derrotou os netos do imperador...

— Caramba, o cara venceu o Drake sem um braço?

— Stein apanhou dele?

É claro que ninguém falava diretamente — não para ele, nem para os três que o acompanhavam até a mesa onde tomariam chá.

As veias saltadas de Drake denunciavam o estresse com os sussurros. Stein nem levantava o rosto. A vergonha escorria de seus poros. A tensão era palpável, mas Solomon e Harkin cruzavam as pernas e saboreavam o chá como se nada mais existisse.

Drake, como sempre, foi o primeiro a perder a paciência:

— Olha, pai... pra que estamos aqui? Já não foi humilhação demais, não?

— Qual o problema?

— O senhor ainda pergunta? Esse bastardo de merda acabou com a gente! E o vovô recompensou ele! E agora você ainda nos obriga a tomar chá com o filho da puta?

Solomon lançou um olhar para Harkin, que apenas assentiu com a cabeça — um gesto que dizia: “Eu te entendo.”

— Primeiramente, acho que vocês já entenderam a situação do tio de vocês. E que, apesar de única e excêntrica, não o faz dele um bastardo — respondeu Solomon, sem alterar o tom.

— Ele... — Drake travou, e Stein enfim ergueu a cabeça:

— O que meu irmão tá tentando dizer é que, por mais que ele não seja um bastardo... ele agiu como um. E por que nos obriga a estar aqui, pai?

Antes que Solomon respondesse, Harkin viu a brecha:

— Porque agora eu sou obrigado a ser ativo no Império. Isso vai criar instabilidade política. Até a poeira baixar, seu pai quer aliados. Afinal, a família de vocês vive de negócios.

— De fato, como Gordon disse, você é astuto.

— Então é isso? Você quer firmar diplomacia? — perguntou Drake.

— Sim e não. A verdade é que seu avô quer que vocês treinem e passem por medidas disciplinares. E por mais que doa admitir... ele está certo. E como seu tio será novo professor, quero que se deem bem com ele.

— Esse merda me humilhou — respondeu Stein, a voz carregada de acidez, mas sem faltar com respeito ao pai.

— Cara, eu não te humilhei. Você tenta conquistar uma garota como se estivesse tentando dominar um beco de gangsters.

Solomon riu alto. Harkin continuou:

— E você, Drake, me julgou pela capa. Se eu não tivesse me preocupado em esconder minhas cartas desde o início... você teria sido esmagado.

Drake o encarou com superioridade:

— No fim, você expôs suas cartas do mesmo jeito.

— Não tá errado... mas o ponto é que vocês dois agem sem pensar. Avaliam tudo de forma superficial.

— E daí? Você se acha melhor? — rebateu Drake, socando a mesa.

Harkin olhou para seu reflexo no chá. Cabelos bagunçados, a franja cobrindo um dos olhos. Sorriu de canto.

“Vou dar uma lição grátis… um ato de boa fé.”

A pressão dele recaiu sobre os sobrinhos com violência. Os dois travaram. A mana de Harkin era superior — algo que nenhum dos dois esperava.

Os olhares curiosos da rua foram atraídos, mas bastou um instante. Harkin cessou a pressão, e os espectadores se dispersaram. Os irmãos, ainda ofegantes, o encararam em choque.

— Eu posso não ser páreo pro seu pai, ou pra muitos dentro do Império... mas eu dou uma surra fácil em vocês dois. Sem nem me esforçar.

Drake pensava: “Isso não é o que ele mostrou na luta. O desgraçado nem se mexeu e nos pressionou a tal ponto.”

— E então, agora você vai nos treinar? Que piada. Você pode ser mais forte... mas isso não quer dizer que daria certo. 

Respondeu Stein, o que arrancou um olhar contemplativo de seu tio:

— Essa foi a primeira coisa sensata que saiu da sua boca desde que nos conhecemos.

Solomon franziu o cenho:

— É essa a melhor abordagem, Harkin? Achei que pensávamos igual sobre estabelecer relações saudáveis.

— E pensamos. Mas Stein tá certo. Eu não sou adequado pra treinar eles. Minhas propriedades mágicas são diferentes das de vocês. E isso nem é o começo.

— Como assim? — perguntaram os irmãos em uníssono.

— Suas magias não são fracas. Limites de mana potentes, controle mediano, propriedades excelentes. Mas alavancar essa força agora seria perigoso. O que falta em vocês é disciplina e experiência. E pra isso, Markus já se ofereceu.

O silêncio reinou.

— Faz sentido — disse Solomon.

— Você tá falando sério, pai? — perguntou Drake.

— Mais sério impossível. Vocês dois são mimados. Markus vai discipliná-los. E sua mãe não vai interferir dessa vez.

Drake e Stein, incrédulos, abaixaram a cabeça.

— Podem ir. Virman vai levar vocês até Markus. Entendido?

— Sim, senhor.

Drake se levantou, quase derrubando a mesa. Stein o seguiu.

Quando se foram, Solomon se voltou ao irmão:

— Agora que isso está resolvido... como podemos melhorar nossa relação?

Harkin sorriu de canto:

— Não sou de rodeios, irmão, o que o maior comerciante do império precisa?

— Ótimo. Você sabe que sou o maior comerciante do Império. Então já deve imaginar o que quero: podemos trabalhar juntos?

— Estou desenvolvendo novas tecnologias. Posso trazer algumas de Nerio. Se for o primeiro a importar, você ganha vantagem. O que acha?

— Sentinelas estão inclusos?

— Fora de questão.

— O que mais pode oferecer?

— Utilidades do dia a dia, como os magiphones. Se isso der certo, avançamos para áreas mais complexas.

— Cauteloso... gosto disso. Podemos começar assim. Mas quero uma garantia.

— Diga seu preço.

— Quero uma arma do artesão que abalou o reino de Nerio. Você faria isso pra mim?

— Sob medida ou pré-fabricada?

— Sob medida.

— Vai levar tempo. Preciso montar minha oficina. E fazer um novo braço. Mas se puder esperar... farei como quiser.

Solomon riu.

— Mais fácil do que pensei.

— Como eu disse: não sou de rodeios, seja sincero comigo. Se estivermos alinhados, não há por que não nos ajudarmos.

— Muito justo. Bom... como gesto de boa fé.

Solomon tirou um papel da jaqueta e o empurrou pela mesa.

— O que você precisa está aí. E o horário que sua irmã chega no porto também. Faça bom proveito.

Harkin pegou o papel, boquiaberto. A lista de materiais era exata — e o incomum Aetherium encabeçava a relação. No verso, coordenadas de um armazém e a senha de acesso. No final, lia-se:

14 horas — Baía 4, deck 5 — desembarque de passageiros.

Ele sussurrou:

— Gab…

“Gesto de boa fé, né? Acho que não tenho muitas opções agora… Melhor fazer um aliado do que um inimigo. Solomon pode não ser o mais forte dos meus irmãos, mas com certeza é o mais influente.”

Harkin guardou o papel no bolso e agradeceu a Solomon, levantando-se da cadeira.

— Acho que essa é a minha deixa. Você acabou de me fazer um favor. Sua arma vai vir no capricho.

— Assim espero. Vamos ser parceiros daqui em diante, então não se preocupe com meras formalidades. — Solomon ergueu a xícara de chá e tomou um gole antes de gesticular com a mão:

— Agora vai logo, moleque, ou vai se atrasar pra reunião com Gordon. Você já adiou demais as coisas.

— Bom saber que você é bem informado. Com esse presente, as coisas vão se adiantar. Eu só precisava do meu braço.

— Certo, vai logo.

Harkin ajeitou a cadeira de volta à mesa e saiu em direção à academia.

 


 

Enquanto isso, na sala de reuniões do corpo docente, Gordon enfrentava a pressão dos professores.

— Gordon, da primeira vez você pediu para confiarmos em você — e tudo bem, recuamos. Afinal, além de diretor da academia, você é um senador. — disse Julian, professor do programa de combatentes, tentando manter o tom respeitoso.

— Mas porra... entende o nosso lado. O moleque era um mistério, um aluno! Agora você vem me dizer que esse merdinha vai ser um professor?

— E pesquisador também. — completou Gordon, sem alterar o semblante.

Julian olhou incrédulo. O silêncio de Gordon parecia provocação. Irritado, bateu na mesa e se levantou.

— Já que é assim, vou direto na fonte questionar o garoto pessoalmente. Ele pode ter derrotado seus sobrinhos, mas isso não o torna intocável!

— Calma, Ballistari. — disse um outro professor.

— Vai puxar o saco do chefe agora, Elenhaar? Você concorda com essa palhaçada? Ele seria um aluno do seu departamento!

Julian mantinha a formalidade entre nobres, mesmo em meio às farpas — as rivalidades entre Ballistari e Elenhaar eram famosas, tão comuns quanto gado nos campos do sudeste.

— Não me entenda errado, Ballistari. Eu apenas tenho minhas próprias fontes.

A sala ficou em silêncio. Todos sabiam: ninguém tinha conseguido arrancar informações sobre o tal novato.

“Fiör não estava quieto à toa... o miserável não perde tempo.” — pensava Gordon, curioso.

— Bem, Fiör, se importa em compartilhar o que sabe? — perguntou ele.

— Ué... pensei que essas coisas eram segredo, Gordon.

— Você falou pra ele e não pra nós? — questionou Julian, irritado.

— Não entra na pilha, Julian. Eu deixei bem claro antes: o imperador me proibiu de falar qualquer coisa pra vocês. — respondeu Gordon.

Julian rangeu os dentes, mas entendeu a indireta.

— Mas... não disse nada se nós descobríssemos sozinhos. — murmurou, já fervendo.

— E então, Fiör, vai compartilhar ou vai continuar com seus joguinhos?

— Huhuhu... você estraga a graça desse velho, Gordon.

— Eu não tô tão à frente de vocês, fiquem tranquilos. O que descobri ainda precisa ser validado por alguém.

— Ainda assim, é alguma coisa. Vamos, Elenhaar. — incentivou Julian.

— Nós, imperiais, somos avançados como civilização: sociedade, combate, quantidade de magos, estudos da magia. — começou Fiör, ajeitando-se na cadeira.

Ao menor convite, o velho professor já entrava no modo aula. Os outros se acomodaram, cientes de que o monólogo viria.

— Diferente de Nierr'Dhalar, que tem avanços absurdos no mar — magia, tecnologia, comunicação. O Império carece justamente do que mais nos falta: tecnologia avançada.

— Não precisamos disso com os nossos magos. Seria besteira.

— Talvez. Mas a qualidade dos nossos magos vem caindo. Nossa academia, com seus 300 anos de tradição, é uma das únicas razões dessa queda não ser ainda pior.

— Por isso, precisamos investir em alternativas. Nerio entendeu isso há séculos. Eles não têm magos em abundância como nós, então focaram em tecnologia — e acertaram.

— E o que isso tem a ver com o garoto? — perguntou Julian, impaciente.

— Ah, agora vem a parte boa. Há cerca de oito anos, um sujeito acabou com a Família Touriga de Nerio — um dos clãs do sindicato do crime. Depois disso, fundou a Touriga Tech.

— E adivinha o nome do cara? Harkin. Igual ao aluno, agora pesquisador, que surgiu misteriosamente aqui.

— Isso tudo por um gangster fundador de uma empresa? do outro lado do mundo ainda por cima — zombou Julian.

— Típico dos Ballistari... se fosse só um gangster, a Touriga Tech não teria desbalanceado todo o poder militar de Nerio.

— Vocês Elenhaar tendem à valorizar qualquer coisinha como se fosse o Nexus de Empera...

— Cinco anos atrás. — interrompeu Fiör, firme.

Julian se calou. Sabia que vinha coisa séria.

— Nessa época, Nerio enfrentava piratas de Nierr’Dhalar e bárbaros ao sudeste. Sem magos de elite, o reino dependia da rainha... até os Sentinelas surgirem.

— E junto com eles... o príncipe de Nerio. Que também se chamava Harkin.

Fiör fez uma pausa dramática e finalizou:

— Nessa mesma época, o imperador visitou Nerio pra ver essas criações de perto. E agora esse garoto aparece aqui, com o mesmo nome.

Julian se inclinou sobre a mesa:

— Uma puta coincidência, hein? Pena que eu não acredito em coincidências. Você ao menos sabe alguma característica desse Harkin dos rumores?

— O que mais falavam era... que ele era a encarnação do demônio em combate. Apesar de não ter um braço.

Julian levou a mão à testa:

— Bem... isso não bate. O moleque com quem trombei tinha os dois braços funcionando.

Gordon esboçou um sorriso.

“Tão perto da verdade que nem percebem...”

Antes que o clima esquentasse de vez, ouviram três batidas na porta.

TOC. TOC. TOC.

Gordon se levantou e disse com naturalidade:

— Já era hora. Entra logo, moleque.

A porta se abriu. Harkin surgiu.

A expressão de Julian era impagável.

E o grito dele, ainda mais:

CADE SEU BRAÇO, PORRA?!

— Bela recepção. Tem uma cadeira? Vai ser uma puta dor de cabeça, pelo visto. — respondeu o príncipe, entrando.

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