Volume 2
Capítulo 6: Overdose
Entrei em uma sala pequena de paredes brancas, cercadas por grandes armários metálicos com portas de vidro. No meio da sala, mais fileiras de armários dividindo-a em dois corredores estreitos.
Respirei com mais calma e senti o corpo relaxar, mesmo que o hálito da morte ainda parecesse soprar em meu rosto, como havia sido há momentos atrás. Ainda assim, essa pequena sala, era o lugar mais normal em que eu estivera, desde muito tempo.
O ar do ambiente era leve e deixava a impressão de uma área esterilizada — do mesmo modelo que existiu no mundo anterior a esse — tão calma que pude ouvir meus passos soarem alto enquanto caminhava esmagando o vidro quebrado sob meus tênis.
A frustração crescendo em mim ao ver alguns armários vazios, outros quebrados com suas portas retorcidas, porém, nenhum que resolvesse meu problema.
Permaneci me movendo, entretanto, foi somente quando cheguei no fundo da sala que notei o detalhe desapercebido, algo que o armário central me impedira de ver até então.
Uma garota — o dobro de idade da que aguardava meu retorno no abrigo — se encontrava sentada com as costas apoiadas em uma mesinha, sua cabeça inclinada sobre o peito lançava o olhar ao chão, me impedindo de reconhecê-lo.
Segui, me aproximando com cautela. A garota usava roupas mais casuais do que a nova realidade permitiria e, em sua volta, vi dezenas de pílulas e frascos quebrados, como se colocados ali da mesma maneira que se compõe o cenário de uma peça de teatro.
Me abaixei, ainda cauteloso, tocando sua pele gelada, buscando encontrar o causador de tudo. Sem qualquer ferimento aparente. Não havia mordidas ou arranhões.
Tentei mover o corpo e então, mesmo que relutante, minha mente explodiu em milhares de direções, formulando mais teorias do que eu poderia assimilar.
— Esse ferimento na nuca... — Afastei a cabeça pesada da jovem do móvel em que esteve escorada. Uma fina linha de sangue grudento se esticou fazendo o ligamento entre a mesa e a nuca da vítima. — Impossível. Sem qualquer sinal de um ataque “deles”, o corpo deve estar morto há uns três dias e ainda não levantou, então, não houve contato com o vírus...
Seu halito não possui qualquer tom do cheiro químico de remédio. — Conclui ao aproximar meu nariz de sua boca. — Além disso, reconheci de imediato aquelas pilulas, remédio leve para gripe, nada perigoso ou alucinógeno. Tudo parece montado, como o corpo acomodado de forma a esconder o hematoma.
Sim, o ferimento na parte de trás da cabeça também não é comum. Falta a selvageria natural "deles", aquela brutalidade tão natural aos homens de almas apodrecidas. Esse parece mais o tipo que se consegue com uma pancada forte e os remédios colocados não passam de encenação---
Me levantei abruptamente em passos para trás. Sem intenção, acertei as costas no armário central e em resposta ao grande barulho senti o gelo na espinha aumentar. Alguém havia feito aquilo, não haveria outra explicação, “eles” não costumam abrir portas, o corpo não demostrava sinais da infecção e não havia vestígios da suposta overdose por remédios...
"Mas, sendo este o caso, por que alguém teria se dado ao trabalho de montar essa encenação amadora e relaxada?" — Algo não está se encaixando — “Afinal, uma pessoa morta não era novidade nesse mundo.”
A sensação perdurou em meu corpo, tentei me acalmar, focar na missão para qual me propus, mas o incomodo crescia ainda mais e a luz fluorescente fazia meus olhos doerem.
Olhei em volta com a percepção de que algo me observava, como se algum mal espreitasse meus passos.
Senti suor correr pelas minhas costas e como um gatilho em resposta ao estresse, apoiei meus braços — com mais violência do que percebi — na mesa em que outrora o cadáver da pobre jovem descansava reclinado.
O forte encontro entre minhas mãos tremulas e a mesa pareceu ligar algo, e como em um passe de mágica, a pequena tela em minha frente despejou sua luz em meus olhos. O computador havia ligado.
Meu instinto de sobrevivência cortou considerável força do incômodo em mim e, meus reflexos trataram de me colocar no caminho certo. Quando dei conta de minhas ações, já estava procurando uma resposta para qualquer pergunta que um dia houvera feito sobre esse mundo.
— Tsc! Sem internet, inferno!
Nada. Sem qualquer conexão com a internet ou algum meio alternativo de comunicação, e em uma rápida olhada não encontrei um único relatório ou e-mail sobre a situação atual do mundo.
Apenas o programa de registro de acesso aos armários se encontrava funcionando, claro, os armários possuíam um sistema de segurança cujo acesso para os remédios dependia de um cartão magnético especial, mitigando a possibilidade de furtos ou distribuição indevida dos medicamentos. Não havia maneira de tirar uma única pílula daquela sala sem que o sistema soubesse.
Outra surpresa confusa veio sobre mim no momento em que passei meus olhos sobre os dados dos últimos acessos... O último deles, datado de três dias atrás — “Dr. Wes, sala sete do segundo andar” — logo após, uma lista de remédios variados. O doutor não parecia ter preferencias específicas, contudo, eu tinha, e algumas delas estavam em sua lista.
— Três dias... — Sussurrei me afastando da tela. — Ainda posso tentar o laboratório, mas, se nada sair como o esperado, não vejo outra solução a não ser marcar uma consulta com o doutor.
Olhei para o corpo da jovem mais uma vez, porém, tudo que eu via era o assassinato de uma criança, frágil e certamente indefesa. Uma encenação barata de alguém descolado da realidade e, sendo quem fosse, ainda poderia estar por aí. Me esquecer disso seria equivalente a jogar minha vida fora.
Minha mente dividida entre encontrar o que preciso no laboratório e voltar para casa, ou, dar de cara com quem quer que tenha feito tal atrocidade e fazê-lo pagar.
Com os punhos cerrados e cenho franzido, deixei a porta da sala para trás, e então, segui meu caminho.