Volume 1
Capítulo 5: Mal Residente
O Fulgor do sol banhava as manchadas paredes de concreto que pareciam clamar por uma nova mão de tinta.E como se não bastasse o horror revelado pela iluminação natural, o prédio ainda dispunha de energia elétrica, como se para deixar evidente aos olhos aquele cenário infernal.
Era como se via nos filmes de guerra, com a diferença de ser real, infinitamente mais real; havia sangue por toda parte e destroços de madeira, concreto e mármore.
Papéis que um dia foram tão importantes e ferramentas que um dia salvaram tantas vivas, agora, não passavam de lixo retorcido e dispersos pelo chão. Fileiras de macas se estendiam pelas laterais dos corredores, todas tingidas em um vermelho opaco de sangue seco e manchas escuras geradas pela putrefação dos corpos que já houveram repousado ali.
Outro ponto de drástica distinção entre a guerra romantizada e tornada em espetáculo pelas produções cinematográficas, e o quadro da realidade — pintado pelo mais atroz dos demônios — se dava ao fato de que desse lado da tela, os corpos não permaneciam no chão. Eles agora vagavam pelos corredores daquele hospital como espectros de tudo que um dia foram, eram fantasmas, ecos esquecidos do que um dia foram vozes, almas vagando no purgatório na espera de liberação para o pós-vida.
Uhmm — Um gemido. Seguido de uma batida suave e próxima a mim. — Thump. — Outra leve batida, e meus olhos passaram a procurar pelo causador. Um gemido mais alto se deu e, pude vê-lo, ou melhor, pude vê-la. Em uma porta, pouco mais adiante da que passei, havia algo se mexendo, os restos de uma mulher rastejavam para fora.
Vi seus dedos sem carne arranharem o chão com a mesma eficácia que um garfo de plástico, seu olho esquerdo havia desaparecido, e em seu lugar, uma profunda cavidade secretava uma espeça massa escura, como um tipo de lodo, o mesmo que parecia pingar das pontas dos poucos cabelos que lhe restara.
De maneira alguma aquela seria a primeira vez que me encontrava frente a frente com um “deles”, porém, como em todas as outras, desde o primeiro, a sensação que corria meu corpo ainda era a mesma... O frio na espinha sempre me paralisava e minhas mãos sempre formigavam e tremiam.
Não acontecia diferente nesse exato instante.
Ergui o pé de cabra acima da linha da cabeça, minhas mãos nuas em contato com a ferrugem da ferramenta, minha mente desejando que tudo se encerrasse em um único golpe, e então, a criatura rastejante se aproximou mais uma vez, trazendo seu torço para luz, revelando um jaleco rasgado e encardido.
Ela erguia um de seus braços em minha direção, enquanto parte da pele descolava do mesmo e permanecia grudada no chão, carne e ossos expostos, porém, sem qualquer reação, não parecia ter qualquer senso de dor.
Fechei meus olhos por um segundo e, de repente, soltei o peso que meu corpo segurava. — Crack! — O som de ossos quebrando e estava feito. Seu crânio se partira como uma parede de poliestireno, a massa encefálica escorrendo como o lodo, e seu corpo — morto a muito tempo — se contorcia em espasmos no chão.
Respirei manualmente algumas vezes, e consciente disso, esperei até que a adrenalina em meu sangue se dissipasse. Logo em seguida, já com a mente estável, planejei o próximo passo que daria.
A arquitetura do prédio me disponibilizava quatro corredores principais, norte, sul, leste e oeste, sendo que todos contornavam o lugar como um grande quadrado que possibilita acessos a cada uma das áreas do hospital. Nesse momento, me encontrava no ponto de encontro entre o corredor norte e o Leste, enquanto meu objetivo se encontrava do outro lado do edifício.
De maneira rápida e realista, aceitei que não chegaria até lá sem ter de enfrentar mais alguns “deles”, só o que restava agora seria decidir quantos.
Ao fim do corredor norte, a enfermaria me esperava e, o corredor leste me levaria a entrada que evitei há pouco. Durante o curto período que teria para tomar a decisão, meus olhos percorreram o chão, notando o detalhe desapercebido até então.
O rastro de sangue que vi do lado de fora parecia continuar pelo corredor norte, e, ao seguir seu caminho, me deparei com uma enorme porta escura e entreaberta. — "Merda..." — O choque me atingindo no momento em que reconheci o lugar, cuja pequena placa sobre a porta indicava — Necrotério.
Meu instinto me levou a dar três passos para trás. — "Então, Necrotério e enfermaria em um mesmo corredor? Isso torna a decisão muito mais fácil."
Olhei com certo receio para o breu absoluto que se manifestava pela porta entreaberta e dei continuidade a minha jornada, esperando que não precisasse retornar para perto daquela escuridão.
Caminhei pelo extenso corredor leste em largos passos, atento a qualquer movimento ou barulho, entretanto, algo começava a me incomodar muito mais. Já na metade do caminho aquilo deixou de ser um mero desconforto, passando a ser um misto de confusão, preocupação e ansiedade.
Parei por um instante em frente a porta que levava a ala de cirurgias, porém, antes que pudesse me aprofundar na questão que me afligia, minha mente clareou com um flash.
"A ala cirúrgica, claro! Tem um corredor nela que corta o hospital pelo meio, uma maneira muito melhor de chegar onde quero. Era o mesmo atalho que eu usava quando meu velho ficou internado... Cacete, como fui me esquecer disso?"
Sem pensar duas vezes, abri a porta dupla e adentrei o recinto. A iluminação terminava aqui, aparentemente apenas os corredores principais ainda contavam com esse milagre.
Lancei meu olhar pelo corredor mal iluminado, no qual toda a luz provinha dos resquícios que o corredor anterior lhe permitira usurpar; abri uma porta ou outra durante o caminho, apenas para alimentar a incógnita que me acompanhava — nas salas, não existia nada a minha espera, nada além de contaminação. Ao menos poderia escolher entre me contaminar com sangue nas macas ou, com os utensílios médicos pelo chão.
No entanto, eu me encontrava no coração do contágio e, apesar disso, não havia qualquer sinal de outra casca vazia vagando por aí, sem vultos ou gemidos.
Descartando qualquer teoria desnecessária, passei pela porta final logo antes de pagar o preço por minhas palavras. Encontrei um dos “ex-humanos” no corredor oeste, contudo, não o notei, até que o mesmo me levasse ao chão.
Com um grunhido rouco e grosseiro o agressor avançou sobre meu corpo, ambos caímos, porém, ele parecia não se importar e se ergueu contra mim mais uma vez. De alguma forma seu corpo mantivera a massa muscular e ele exercia sobre mim força equivalente à minha.
Ele avançou seu rosto em direção ao meu em uma mordida brutal. Meus reflexos agindo mais rápido, coloquei a ferramenta que empunhava entre nossas faces e, de repente, vi sua mordida interrompida pela barra de ferro com tamanha força que seus dentes quebraram e se desprenderam da gengiva podre.
Nesse instante, em um ímpeto de vigor, contra-ataquei sua hostilidade e o derrubei para o lado, me colocando na posição de vantagem que há um segundo fora a do meu oponente. Outra vez aquela sensação correu meu corpo como presságio do que viria a seguir. Ergui novamente a ferramenta de ferro forjado e, sem esboçar expressão alguma, desci a extremidade da espátula ao encontro do crânio do morto.
Me levantei logo após notar o trabalho concluído. A espátula havia cavado uma abertura no olho esquerdo do que um dia fora um homem forte e robusto — cuja segunda morte fora anunciada por um gemido de frustração.
A alguns passos atrás de mim se encontrava a tão desejada farmácia, contudo, decidi esperar que meu coração se acalmasse novamente, e então, estaria pronto para completar minha missão.