Volume 1
Capítulo 7: Amigos
Decidi tentar sair. Afinal, Roxy tinha me mostrado que eu podia fazer isso, então não pretendia desperdiçar esse avanço.
— Pai — falei com a minha enciclopédia botânica em uma das mãos — posso ir brincar lá fora?
Crianças da minha idade tendiam a vagar assim que tirava os olhos delas. Mesmo se ficasse na vizinhança, não queria preocupar meus pais fugindo sem dizer nada.
— Hmm? Brincar lá fora? Não apenas no quintal, é isso?
— Sim.
— Ó. Bem, claro. Claro que você pode. — Paul deu sua permissão sem pestanejar. — Pensando bem, não demos a você muito tempo livre. Aqui estamos nós, ocupando todo o seu tempo te ensinando esgrima e feitiçaria, mas é importante que as crianças também brinquem.
— Sou muito grato por ter professores tão bons.
Pensava em Paul como um pai severo que se preocupava muito com a educação do filho, mas sua linha de pensamento era, na verdade, muito flexível. Meio que esperava uma demanda para passar o dia todo trabalhando na minha esgrima. Foi quase uma decepção.
Paul era um homem com boa intuição. — Mas, hmm... você realmente quer sair? Costumava pensar que você era um menino tão frágil, mas acho que o tempo voa, não é?
— Você pensou que eu era frágil? — Isso era novidade para mim. Nunca tinha ficado doente nem nada do tipo.
— Por causa de como você nunca costumava chorar.
— Ó. Muito bem. Mas se estou bem agora, não há problema, certo? Cresci e me tornei um menino saudável e charmoso! Vêêêêêê? — puxei minhas bochechas e fiz uma cara engraçada.
Paul franziu o cenho. — É a maneira como você não é infantil que me preocupa mais.
— Não estou me revelando o filho primogênito que você queria que eu fosse?
— Bem, não é nada disso.
— Dada a expressão de decepção em seu rosto, seria melhor dizer que você espera que eu me torne um herdeiro mais adequado para a família Greyrat? — supus.
— Não tenho orgulho disso, mas quando tinha a sua idade, seu velho era um verdadeiro pirralho que estava sempre perseguindo as garotas.
— Você era um mulherengo? — Então, eles havia esse tipo de pessoa neste mundo também, hum?
E espere — ele acabou de se chamar de pirralho?
— Se você realmente quer ser digno da família Greyrat, vá lá e traga uma namorada para casa — disse ele.
Espere — esse era o tipo de família que éramos? Meu pai não era um cavaleiro encarregado de proteger uma cidade fronteiriça, além de ser um nobre de baixa patente? Não tínhamos uma posição social e tudo mais? Não, acho que estávamos em uma posição baixa demais.
— Entendido — respondi —, então irei para a aldeia para procurar uma garota ou duas para perseguir.
— Ei, espera aí. Você precisa ser legal com as meninas. E não saia por aí se gabando só porque pode usar magia poderosa. Homens de verdade não ficam fortes só para se gabarem.
Esse foi mesmo um bom conselho. Puxa, gostaria que meus irmãos da minha vida passada pudessem ouvir isso.
Mas Paul estava certo; poder usado para ganhar mais poder não tinha sentido. E até eu fui capaz de entender isso, dados os termos que ele usou em sua explicação. — Entendido, Pai; o poder deve ser reservado para quando você puder fazer as meninas verem o quão legal você é.
— Mas isso, uh, não é bem o que quis dizer...
Não é? Não era essa direção que essa discussão estava seguindo? Heheh. Ooops!
— Estou só brincando — disse — É para proteger os fracos, certo?
— Sim, isso mesmo.
Com a conversa concluída, coloquei minha enciclopédia botânica de volta sob meu braço, pendurei a varinha que recebi de Roxy no meu quadril e saí. Antes de ir longe, porém, parei e me virei, lembrando-me de uma última coisa.
— Ó, por falar nisso, Pai, acho que provavelmente irei sair assim de vez em quando, mas prometo que sempre contarei a alguém em casa primeiro, e não vou negligenciar meus estudos diários de magia e esgrima. E prometo estar em casa antes que o sol se ponha e fique escuro, e não irei a nenhum lugar perigoso. — Afinal, queria deixá-lo com alguma garantia.
— Ah, sim. Claro. — Por alguma razão, Paul parecia um pouco confuso. Olha, se você está me dando permissão, é só dizer.
— Tudo bem então — continuei — Estou indo.
— Volte em segurança.
E assim, deixei minha casa.
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Vários dias se passaram, e eu não tinha mais medo do mundo exterior. As coisas estavam indo muito bem ao ponto que consegui até trocar saudações com os transeuntes sem gaguejar.
As pessoas sabiam sobre mim — que eu era filho de Paul e Zenith, e discípulo de Roxy. Quando topava com as pessoas pela primeira vez, cumprimentava de forma apropriada e me apresentava. As pessoas que estava encontrando de novo recebiam um "bom dia". Todos me cumprimentavam de volta, com sorrisos brilhantes em seus rostos. Já fazia muito tempo que não me sentia tão aberto e despreocupado.
A fama relativa combinada de Paul e Roxy foi mais da metade do que me ajudou a me sentir tão confortável. O resto foi graças ao que Roxy fez por mim. O que significava, do meu ponto de vista, que minha mestra deveria ser agradecida pela maior parte.
Teria que cuidar muito bem daquela preciosa calcinha.
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Meu principal objetivo ao sair de casa era explorar com meus próprios pés e entender a configuração do terreno. Se conhecesse a área, não me perderia se algum dia fosse expulso de casa.
Ao mesmo tempo, também queria fazer algumas pesquisas botânicas. Afinal, eu tinha minha enciclopédia, então queria ter certeza de saber quais plantas eram comestíveis e quais não eram, quais poderiam ser usadas como remédio e quais eram venenosas. Assim, se algum dia fosse expulso de casa, não precisaria me preocupar em como conseguiria comida.
Roxy tinha me ensinado apenas o básico, mas pelo que entendi, nossa aldeia cultivava trigo, vegetais e as fragrâncias dos perfumes. A flor Vatirus, usada nesses perfumes, era muito parecida com a lavanda: roxa-clara e comestível.
Com um espécime impressionante como essa como meu estudo de caso, comecei a usar a enciclopédia botânica para fazer uma referência cruzada de qualquer planta que chamasse minha atenção.
Porém, como descobri, a aldeia não era muito grande e não tínhamos uma flora particularmente notável. Depois de alguns dias sem encontrar nada, aumentei meu raio de busca e me aproximei da floresta. Afinal, havia muito mais plantas lá.
— Se bem me lembro, a magia se acumula com mais facilidade nas florestas, o que as torna mais perigosas. — Mais perigoso porque concentrações mais altas de magia significavam uma probabilidade maior de monstros surgirem, as energias causavam mutações repentinas em criaturas benignas. O que não sabia era o motivo para a magia se acumular com mais facilidade ali.
Além de monstros serem bastante raros nessas partes, também realizávamos caças regulares, tornando as coisas ainda mais seguras. Uma caça de monstros era exatamente o que parecia: Uma vez por mês, um grupo de jovens, formado por cavaleiros, caçadores e a milícia local, dirigia-se para a floresta e eliminava alguns monstros.
Ao que tudo indicava, porém, monstros que eram bastante terríveis podiam surgir de repente nas profundezas da floresta. Talvez parte do motivo pelo qual aprendi magia fosse para lutar contra essas coisas, mas eu era um ex-recluso social que nem conseguia lidar com as brigas no pátio da escola. Não podia me dar ao luxo de ser arrogante.
Não tinha nenhuma experiência de combate real, e se errasse no calor do momento, seria um desastre total. Eu tinha visto muitas pessoas serem mortas fazendo esse tipo de coisa — bem, foi em mangás.
Mas não era do tipo de sangue quente. Para mim, o combate era algo a ser evitado da melhor maneira possível. Se topasse com um monstro, voltaria para casa e deixaria Paul saber.
É, esse era um bom plano.
Com isso em mente, subi uma pequena colina. No topo havia uma árvore solitária, a maior das redondezas. Um ponto de vista elevado como este seria perfeito para confirmar a estrutura da minha aldeia. Além disso, sendo esta a maior árvore da área, queria ver de que tipo era.
E foi então que as ouvi. Vozes.
— Não precisamos de demônios em nossa aldeia!
Ao som daquela voz, memórias dolorosas vieram à tona. Lembrei-me de meu tempo no colégio e o que me levou a me tornar um recluso. Lembrei-me dos pesadelos sobre ser chamado de "Pau de Lápis".
Essas vozes me lembravam muito das vozes que me chamavam por aquele apelido terrível. Essas eram as vozes de alguém que usava os números ao seu lado para atormentar alguém abaixo dele.
— Dê o fora daqui!
— Tome esta!
— Ha, boa! Ataque direto, puxa!
Vi um campo, enlameado pela chuva do outro dia. Três meninos com os corpos sujos de lama jogavam lama em outro menino que caminhava.
— Dez pontos se conseguir acertar na cabeça!
— Hngh!
— Eu acertei! Cê viu isso!? Bem na cabeça!
Caramba. Isso não era bom. Este era o bullying clássico acontecendo bem aqui. Essas crianças achavam que esse outro garoto não era bom o suficiente, então podiam fazer o que quisessem. Se eles tivessem colocado as mãos em uma arma de pressão, teriam apontado para o garoto e aberto fogo.
As instruções sempre diziam para não apontar essas coisas para as pessoas e atirar, mas meninos como esses não enxergavam seus alvos como pessoas. Eles eram abomináveis.
O alvo deles poderia ter mudado seu trajeto para desviar, mas por algum motivo, ele estava cambaleando. Olhei mais de perto e vi que o garoto tinha algo parecido com uma cesta agarrada ao peito, a qual ele se curvou para manter o conteúdo a salvo das bolas de lama que eram lançadas em sua direção. Isso o estava impedindo de escapar do ataque dos agressores.
— Ei, ele tem alguma coisa!
— Esse é o tesouro demoníaco dele!?
— Aposto que é algo que ele roubou!
— Se você puder acertar aquilo, vai ganhar cem pontos!
— Vamos pegar aquele tesouro!
Comecei a correr, indo em direção ao menino. Ao longo do caminho, usei minha magia para formar uma bola de lama e, no instante em que estava no alcance de tiro, lancei com todas as minhas forças.
Crash!
— Que diabos!? — acertei o garoto que parecia ser o líder, um sujeito visivelmente grande, bem no rosto. — Gah, atingiu meus olhos!
Todos os seus amigos voltaram suas atenções para mim ao mesmo tempo.
— Quem diabos é você?
— Isso não tem nada a ver com você! Fique fora disso!
— O que é você, um aliado dos demônios ou algo assim?
Imaginei que pessoas assim eram iguais em todos os mundos. — Não sou aliado dos demônios — respondi. — Sou um aliado dos fracos. — Mostrei um sorriso arrogante.
Os outros meninos se prepararam, endireitando-se como se estivessem com a razão. — Não tente bancar o durão! — um deles retrucou.
— Ei, ele é filho daquele cavaleiro!
— Hah! Ele é só um bebê!
Ô-ou. Eles descobriram quem eu era.
— Você tem certeza que o filho de um cavaleiro deveria estar fazendo esse tipo de coisa, hein?
— Viram, eu disse que aquele cavaleiro estava do lado dos demônios!
— Vamos lá, vamos chamar os outros!
— Ei, pessoal! Temos um esquisitão aqui!
Porcaria. Essas crianças estavam chamando seus amigos!
Mas ninguém apareceu.
Mesmo assim, minhas pernas estavam travadas no lugar. Claro, havia três deles, mas parecia tão patético, congelar por ter crianças gritando comigo. Minha vida estava destinada a ser a saga de um recluso social que sofria bullying? — Ca-calem a boca! — gritei em resposta — Se juntando em três contra um contra uma criança... vocês são os piores!
Seus rostos se contorceram em confusão. Merda. Porcaria. — Ei, você é quem está gritando agora, seu idiota! — um deles deixou escapar.
Estava puto da vida, então lancei outra bola de lama na direção deles. Eu errei.
— Seu pirralho!
— De onde diabos ele está pegando essa lama!?
— Isso não importa! Só jogue de volta!
O que eu tinha atirado estava sendo devolvido com o triplo de quantidade, mas graças ao gingado que Paul tinha me ensinado, bem como um pouco de magia, fui capaz de desviar das rajadas com bastante graça.
— Ei! Pare com isso!
— É, você não deveria se esquivar!
Heheheh. Se vocês não podem me acertar, é problema de vocês, meus caros!
Os três meninos continuaram a jogar bolas de lama na minha direção por mais algum tempo, mas quando ficou claro que não iriam me atingir, eles ergueram as mãos como se de repente tivessem encontrado algo melhor para fazer.
— Ah, isso é chato!
— É, vamos embora.
— E vamos fazer todos saberem que o filho do cavaleiro é um amante de demônios!
Eles tentaram fazer soar como se não tivessem perdido — que apenas decidiram parar. Com isso, os pequenos encrenqueiros partiram para o outro lado do campo.
Consegui! Pela primeira vez na vida, venci os valentões!
Er, não foi para me gabar nem nada do tipo.
Ufa. Discussões como essa realmente não eram meu forte. Fiquei feliz que as coisas não acabaram ficando mais físicas. Por ora, precisava verificar o garoto que estavam jogando lama. Virei-me para ele e perguntei: — Ei, você está bem? Suas coisas estão bem?
Uau…
O menino era tão bonito que era difícil pensar que tínhamos a mesma idade. Ele tinha cílios bastante longos para alguém tão jovem, com um narizinho delicado, lábios finos e um queixo um tanto pontudo. Sua pele era branca como porcelana e seus traços combinados lhe davam a aparência de um coelho assustado, além de uma sensação de beleza indizível.
Puxa, bem que Paul poderia ser do tipo bonitão. Talvez eu tivesse um rosto assim.
Não, Paul não era feio. E Zenith tinha ótima aparência, o que significava que meu rosto era legal. Sem dúvidas, ainda mais comparando com o meu rosto em minha vida passada, todo flácido e marcado com espinhas. Então, sim, eu era muito bonito. Ééé.
O menino voltou seu olhar tímido para mim. — Si-sim, estou... estou bem. — Ele me fez querer protegê-lo e cuidar dele, como se fosse um pequeno animal. Se você fosse uma senhora que gostasse de shota, ficaria indefesa diante dele — er, bem, se pudesse superar o modo como ele estava todo coberto de lama.
Suas roupas estavam imundas e a lama grudou em metade do rosto. O topo de sua cabeça era basicamente de um marrom uniforme. Era quase milagroso que tivesse conseguido manter sua cesta segura.
Havia apenas uma coisa a fazer. — Aqui, por que você não coloca isso ali e se ajoelha perto da vala de irrigação? — falei.
— Hã? O quê? — O menino piscou confuso, mesmo enquanto começava a fazer o que pedi. Acho que ele era o tipo de criança que fazia o que mandavam. Se fosse do tipo desafiador, teria lutado contra aqueles valentões de antes.
Ele rastejou até a vala de irrigação, curvando-se de quatro enquanto espiava a água. Um cara que gostava de shota também estaria extremamente feliz nessa situação.
— Aqui — continuei — Feche os olhos. — Usei um pouco de magia de fogo para aquecer a água a uma temperatura adequada: nem muito quente nem muito fria, mas agradável e morna a quarenta graus Celsius. Então peguei um pouco e molhei a cabeça do menino.
— Guah!
Agarrei seu colarinho enquanto se contorcia e tentava fugir, e comecei a lavar a lama. Ele lutou no começo, mas à medida que se acostumava com a temperatura da água, começou a se acalmar. Quanto às roupas, teriam que ser lavadas em casa.
— Tudo bem, isso deve bastar — eu disse. Com a lama fora do caminho, usei a magia do fogo para criar um vento quente, como um secador de ar, e peguei um lenço para limpar cuidadosamente o resto do rosto do menino.
Ao fazer isso, pude enfim ver suas orelhas pontudas de elfo, bem como o cabelo verde-esmeralda que ele possuía, foi quando lembrei na mesma hora de algo que Roxy me disse.
"Se você alguma vez ver alguém com cabelo verde-esmeralda, certifique-se de não chegar perto dele."
Hm? Espera aí. Isso não estava certo. Eu acho que foi…
"Se você alguma vez ver alguém com cabelo verde-esmeralda e o que parece ser uma joia vermelha na testa, certifique-se de não chegar perto dele.
É, foi isso! Eu tinha esquecido a parte sobre a joia vermelha. A testa do garoto, no entanto, não era nada além de um branco liso e bonito.
Ufa. Estava salvo. Ele não era um daqueles Superds desagradáveis.
— Obri-obrigada…
As palavras de gratidão do menino me trouxeram de volta ao momento. Porcaria. Ele estava meio que me causando arrepios.
Decidi dar alguns conselhos. — Escute, se você simplesmente ceder a pessoas assim, elas nunca vão deixar em paz, entendeu?
— Não consigo vencer aqueles caras...
— Você precisa querer lutar; esse é o segredo.
— Mas eles sempre têm crianças maiores com eles. E eu não quero me machucar...
Ah, então era isso. Se ele lutasse, aqueles garotos chamariam seus amigos e dariam uma surra completa. Não importava em que mundo você vivesse, isso era algo comum. Roxy havia se esforçado muito, então os adultos pareciam ter aceitado os demônios, mas não as crianças; elas podem ser tão cruéis.
Isso não estava muito longe de uma intolerância total. — Você deve ter uma vida difícil, ser intimidado só porque a cor do seu cabelo faz você parecer um Superd.
— Você... não está incomodado com isso?
— Minha professora era um demônio. A que raça você pertence? — perguntei. Roxy me disse que os Migurd e Superd eram parentes próximos. Talvez a raça do garoto também fosse.
Mas o menino apenas balançou a cabeça. — Eu não sei.
Ele não sabia? Nessa idade? Isso era esquisito. — Bem, qual é a raça do seu pai?
— Ele é um meio-elfo. Ele disse que sua outra metade é humana.
— E sua mãe?
— Ela é humana, mas também tem um pouco de sangue de homem-fera.
Essa criança era um meio-elfo e 1/4 homem-fera? Então isso explicava a cor de seu cabelo?
Lágrimas brotaram nos olhos do menino. — E por isso, eles, me-meu pai, ele... ele me disse que não sou um demônio, ma-mas... meu cabelo não é da mesma cor que o da minha mãe…
Ele começou a soluçar e estiquei minha mão para acariciar sua cabeça para tranquilizá-lo. No entanto, se a cor de seu cabelo não combinava com a de seus pais, isso era uma situação séria. A possibilidade de que sua mãe tivesse tido um caso me ocorreu. — A cor do cabelo é a única coisa diferente?
— Minhas... minhas orelhas são mais longas que as do meu pai também.
— Entendo. — Uma raça de demônios com orelhas compridas e cabelo verde parecia bastante plausível. Quer dizer, não queria me intrometer muito nos assuntos da vida familiar de um estranho, mas meio que fui uma criança intimidada, então queria fazer algo por ele. Além disso, eu me senti tão mal por ele, sendo agredido apenas por ter cabelo verde.
Algumas das intimidações que experimentei foram resultado de coisas estúpidas que fiz, mas não este garoto. Nenhum esforço de sua parte poderia mudar a maneira como nasceu. Ele estava destinado desde o nascimento a ter bolas de lama atiradas em seu rosto só porque seu cabelo era um pouco verde. Merda. Só de pensar nisso foi o suficiente para me irritar de novo.
— Seu pai te trata bem? — perguntei.
— Sim. Ele é assustador quando está bravo, mas não fica bravo se eu me comportar.
— E quanto a sua mãe?
— Ela é amorosa.
Hmm. Seu tom de voz indicava que ele estava falando a verdade. Então, mais uma vez, não poderia saber com certeza sem ver por mim mesmo.
— Tudo bem — respondi —, então, vamos nessa?
— Pa-para aonde?
— Para aonde quer que você esteja indo. — Ei, fique com uma criança, e os pais dela sem dúvidas aparecerão. Isso era meio que uma lei da natureza.
— Por-por que você está vindo comigo?
— Bem, aqueles caras de antes podem voltar. Então vou botar eles para correr. Você está indo para casa? Ou está levando essa cesta para algum lugar?
— Estou, ah, levando o almoço do meu-meu pai...
Seu pai era um meio-elfo, certo? Quando os elfos apareciam nas histórias, eles eram um povo longevo e isolacionista com disposições arrogantes que desprezavam as outras raças. Eles eram habilidosos com o arco e também com a magia. Magia da água e do vento eram seu forte. Ah, e eles tinham orelhas compridas, é claro.
Roxy disse: "Isso é bastante preciso, embora eles não sejam particularmente isolacionistas."
A maioria dos homens e mulheres élficos eram superlindos neste mundo também? Não, não. Pensar nos elfos como sendo superlindos era uma pressuposição japonesa. Os elfos nos jogos ocidentais tinham rostos muito angulosos e pontiagudos e não pareciam particularmente lindos. Acho que otaku japoneses e normies estrangeiros tinham sensibilidades diferentes.
No caso desse menino aqui, porém, era fato que seus pais eram lindões.
— Então, hum... por que... por que você está... me protegendo? — ele perguntou hesitante, seus maneirismos evocando mais daquele instinto protetor em meu interior.
— Meu pai me disse que eu deveria ser um aliado dos fracos.
— Mas... as outras crianças podem excluir você por causa disso...
Talvez sim. Era uma história comum: sofrer bullying por ajudar uma vítima de bullying.
— Se isso acontecer, vou brincar com você — falei — A partir de hoje, somos amigos.
— Quê!?
Nós estávamos na mesma situação agora. A cadeia de bullying crescia quando a pessoa que estava sendo ajudada se voltava contra seu salvador em vez de ser grata e retribuir a gentileza. Com certeza, a razão para esse garoto ser vitimado estava enraizada em algo mais profundo do que isso, então duvidava que ele ficaria do lado dos valentões.
— Ó, você geralmente está muito ocupado ajudando em casa? — perguntei.
— Nã-não, na verdade não... — ele mostrou uma expressão tímida e deu um aceno de cabeça.
— Ó, é verdade. Ainda não ouvi seu nome. Eu sou Rudeus.
— Eu... eu sou Sylph¹... — sua voz estava tão baixa que foi difícil distinguir a segunda parte. Sylph, hum?
— Que belo nome. Como um espírito do vento.
Com isso, o rosto de Sylph ficou vermelho e ele assentiu. — Sim.
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O pai de Sylph era um homem muito atraente. Ele tinha orelhas pontudas e cabelos loiros que quase brilhavam, e era esguio, sem falta de definição muscular. Sem dúvidas, fazia jus ao nome de meio-elfo, tendo herdado as melhores partes tanto de seu lado élfico quanto do humano.
Ele montou guarda em uma torre de vigia na orla da floresta com um arco em uma das mãos. — Pai — Sylph chamou — Trouxe seu almoço.
— Ah, obrigado, Phi, como sempre. Você foi intimidada de novo hoje?
— Estou bem. Alguém me ajudou.
Sylph se virou para olhar na minha direção e eu me curvei um pouco. — Prazer em conhecer — eu disse — Sou Rudeus Greyrat.
— Greyrat? Como Paul Greyrat?
— Sim, senhor. Ele é meu pai.
— Ah, sim, já ouvi falar de você! Oras, que menino educado você é. Ó, você terá que me perdoar. Eu sou Laws. Costumo caçar nessas florestas.
Com base no que ouvi, esta torre de vigia foi montada como um posto para impedir que monstros saíssem da floresta, e era ocupada por homens da vila o tempo todo. De modo natural, Paul também estava na lista, o que explicava por que Laws o conhecia. Tenho certeza que eles falaram um com o outro sobre seus respectivos filhos.
— Sei como esta criança parece, mas é apenas algo mais antigo em nossa ancestralidade. — disse Laws — Espero que vocês sejam amigos.
— É claro, senhor. E mesmo que Sylph fosse um Superd, isso não mudaria nem um pouco minha atitude. Aposto a honra de meu pai nisso.
Laws deixou escapar um som de espanto. — Essas são palavras incomuns para um garoto da sua idade — ele disse — Estou com inveja por Paul ter um filho tão brilhante.
— Ser bom nas coisas quando criança não significa que a pessoa vai continuar sendo boa como um adulto — respondi — Você não precisa ficar com ciúmes agora, quando ainda há tempo para Sylph crescer. — Achei que deveria falar algo bonito.
— Hã? Agora entendo o que Paul estava falando.
— O que meu pai disse?
— Que falar com você faz com que a pessoa se sinta um pai subqualificado.
Enquanto conversávamos, senti um puxão na bainha da minha camisa. Olhei e Sylph estava agarrando com a cabeça baixa. Achei que uma conversa de adulto como essa fosse entediante para crianças.
— Sr. Laws — perguntei — podemos ir brincar um pouco?
— Ó, sim, é claro. Só não se aproximem muito da floresta.
Bem, nem era preciso dizer isso. Senti que deveria haver mais regras básicas do que essa.
— No nosso caminho para cá, havia uma colina com uma grande árvore no topo. Pensei em irmos brincar por lá. Prometi que Sylph vai voltar para casa antes de escurecer. E assim que essa criança chegar em casa, você poderia olhar para a direção daquela colina? Se parecer que não fui para casa, há uma boa chance de algo ter dado errado. Você poderia por favor organizar uma busca se isso acontecer? — Afinal, não havia nenhum telefone celular neste mundo.
Estabelecer uma comunicação adequada era importante. Era impossível evitar todos os problemas potenciais, mas se preparar para eles também era importante. Este reino parecia bastante seguro, mas não havia como dizer onde os perigos poderiam estar à espreita.
Com um olhar para trás na direção de Laws, que estava um pouco aturdido, Sylph e eu seguimos para a árvore na colina. — Então, do que você quer brincar? — perguntei.
— Não tenho certeza. Eu... nunca brinquei com um... um amigo antes. — Sylph lutou para pronunciar a palavra "amigo". Imaginei que ele realmente nunca teve um antes, então me senti tão mal pelo menino... mas também não tinha amigos.
— É — falei — até pouco tempo atrás, eu mesmo nunca tinha saído de casa. Mas de qualquer forma, o que você quer fazer?
Sylph balançou as mãos e olhou para mim. Tínhamos aproximadamente a mesma altura, mas como ele se mantinha curvado, precisava olhar para cima. — Então, hum, por que você continua mudando a maneira como fala?
— Hmm? Ó! Dependendo de com quem você está falando, é rude não falar direito. Você precisa mostrar deferência com os mais velhos.
— De-fe-rên-cia?
— O jeito como estava falando com o seu pai antes.
— Hmm... — ele soou como se não entendesse muito bem, mas entenderia uma hora. Isso fazia parte de crescer.
— Mais importante — disse Sylph — você poderia me ensinar aquela coisa que fez antes?
— Que coisa?
Os olhos de Sylph brilharam com força. Ele fez uma postura e acenou com as mãos enquanto explicava: — Como quando você fez a água morna fazer splash de suas mãos e quando fez aquele vento quente e agradável com um uoosh.
— Ah, sim. Aquilo. — A magia que usei para limpar a lama.
— É difícil?
— É difícil, mas com treinamento, qualquer um pode fazer. Bem, eu acho. — Nos últimos tempos, minhas reservas mágicas tinham crescido tanto que nem tinha certeza do quanto estava gastando, sem comentar que ainda não sabia qual era a referência para as pessoas daqui.
Mas, isso era apenas usar fogo para aquecer água. As pessoas não poderiam apenas se levantar e conjurar água quente sem um encantamento, mas com Magia Combinada, qualquer um poderia reproduzir seus efeitos. Era por isso que devia estar tudo bem. Provavelmente.
— Muito bem! — anunciei — Hoje, vamos começar o seu treinamento!
E assim, Sylph e eu brincamos até o sol se pôr.
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Quando voltei para casa, Paul estava furioso.
Ele estava de pé imponente na entrada, as mãos nos quadris em uma expressão de raiva. Imediatamente tentei pensar no que tinha feito de errado. A primeira coisa que me veio à mente foi que ele tinha descoberto a calcinha preciosa que roubei em segredo.
— Pai, estou em casa — falei.
— Você sabe por que estou aborrecido?
— Não sei. — Primeiro, tinha que bancar o idiota. Não queria trazer problemas desnecessários para mim no caso de meu bem precioso não ter sido descoberto.
— A esposa do Sr. Eto veio mais cedo e me disse que você deu um soco no menino dela, Somal.
Quem diabos eram o Sr. Eto e Somal? Os nomes não significavam nada para mim, então tive que pensar. Não tive muita interação com os habitantes da cidade além das apresentações básicas. Eu tinha dado o meu nome e conseguido o deles em troca, mas não conseguia me lembrar se havia ou não um "Eto" entre eles.
Espere. Espere aí. — Isso foi hoje? — perguntei.
— Sim.
As únicas pessoas com que me encontrei hoje foram Sylph, Laws, e aqueles três valentões. Somal era um daqueles três meninos? — Eu não soquei. Tudo o que fiz foi jogar um pouco de lama nele.
— Você se lembra do que foi que disse mais cedo?
— Que os homens não ficam fortes só para se gabarem?
— Isso mesmo.
Aha. Agora entendi. Pensando bem, aquele garoto tinha dito algo sobre como ele ia fazer todo mundo saber que eu era um amante de demônios. Não sabia como isso se transformou em ele mentindo sobre ter levado um soco meu, mas, de qualquer forma, o garoto estava determinado a falar mal de mim.
— Não tenho certeza do que você ouviu, Pai, mas...
— Ó, não, nem pensar! — Paul surtou. — Quando você faz algo errado, a primeira coisa a fazer é se desculpar!
Independente da mentira que esse garoto tenha contado, meu pai claramente acreditou. Porcaria. A essa altura, mesmo que dissesse a verdade sobre eu salvar Sylph daqueles valentões, só soaria como uma mentira descarada.
Mesmo assim, tudo que pude fazer foi explicar o que aconteceu desde o início. — Tá, então, eu estava andando pela estrada quando...
— Nada de desculpas! — Paul ficou ainda mais irado. Ele não tinha intenção de me ouvir.
Eu poderia apenas dizer "desculpa", mas senti que isso também não ia ser justo com Paul. Não queria que ele tivesse o hábito de se comportar assim com qualquer irmão ou irmã mais novo que ele poderia muito bem fazer para mim.
Esse método de punição não era justo. Mantive minha boca fechada.
— Por que você não está dizendo nada? — Paul exigiu saber.
— Porque se eu falar, você só vai gritar comigo dizendo para não inventar desculpas.
Os olhos do meu pai semicerraram. — O quê?
— Antes de uma criança poder dizer qualquer coisa, você grita e faz com que ela se desculpe. Tudo é tão rápido e fácil com vocês, adultos. Deve ser ótimo.
— Rudy!
Crash! Um choque quente de dor percorreu minha bochecha.
Ele me bateu.
Quer dizer, já esperava por isso. Fale merda, receba um tapa.
Foi por isso que me mantive firme. Provavelmente não fui agredido há cerca de vinte anos. Não — levei uma surra quando fui expulso da minha casa, então fazia cinco anos, supus.
— Pai, sempre me esforcei ao máximo para ser um bom filho. Nunca respondi a você ou a Mãe, e sempre fiz o meu melhor para fazer tudo o que vocês dois me disseram.
— Isso... isso não tem nada a ver com o assunto! — Não parecia que Paul tinha intenção real de me bater. Havia uma expressão distinta de consternação em seus olhos.
Tanto faz. Isso era bom para mim. — Sim, tem sim. Sempre fiz o meu melhor para manter sua mente tranquila e fazer com que você confie em mim, Pai. Você não ouviu uma palavra do que eu disse, e não só aceitou a palavra de alguém que não conheço e gritou comigo, como até levantou a mão contra mim.
— Mas aquele garoto Somal se machucou...
Se machucou? Isso era novidade para mim. Eu tinha feito isso com ele? Se tivesse, talvez ele estivesse usando isso para vender sua história. Bem, que pena. Havia uma justificativa para o que fiz. Assumi que essa coisa sobre ser ferido não era apenas alguma mentira aleatória.
— Mesmo que acabe sendo minha culpa que ele se machucou, não vou me desculpar por isso — respondi — Não fui contra nada que você me ensinou, e estou orgulhoso do que fiz.
— Espere, calma aí. O que aconteceu?
Ó, agora ele ficou curioso? Ei, foi sua própria culpa por decidir que não iria me ouvir. — O que aconteceu sobre não querer ouvir desculpas?
Paul franzia a testa, parecia que eu estava chegando perto. — Por favor, não se preocupe, Pai. Da próxima vez que ver aqueles três garotos indo atrás de alguém que não vai se defender, só vou ignorar. Na verdade, entrarei no meio para que seja quatro contra um. Vou garantir que todos ao redor saibam que os Greyrats se orgulham de intimidar e atacar os mais fracos. Mas quando crescer e sair de casa, nunca mais usarei o nome Greyrat. Vou ter muita vergonha de deixar qualquer um saber que pertencia a uma família tão hedionda que ignora a violência real e aceita abusos verbais.
Paul ficou em silêncio total. Seu rosto ficou vermelho, depois pálido, e houve conflito em sua expressão. Ele ficaria bravo? Ou ainda não tinha sido empurrado para o limite?
Você deveria desistir enquanto ainda está por cima, Paul. Sabia que minha aparência não indicava, mas passei mais de vinte anos escapando de discussões que não podia ganhar. Se você tivesse pelo menos um ponto sólido a destacar, isso poderia terminar em empate, mas a justiça estava do meu lado desta vez. Você não tem nenhuma esperança de ganhar esta.
— Eu sinto muito — Paul disse, baixando a cabeça. — Eu estava errado. Me diga o que aconteceu.
Pois é, viu? Ser cabeça-dura só piora as coisas para nós dois.
Lembre-se, quando você faz algo errado, a primeira coisa a fazer é se desculpar.
Aliviado, expliquei os detalhes da situação da maneira mais objetiva que pude. Estava seguindo meu caminho subindo a colina quando escutei vozes. Havia três meninos em um campo vazio jogando lama em outro garoto que caminhava ao longo da estrada.
Acertei eles com lama uma ou duas vezes até que recuassem, e então eles foram embora falando mal de mim. Depois, usei magia para limpar a lama do outro menino e brincamos juntos.
— Então, sim — falei —, se vou me desculpar, esse garoto Somal precisa primeiro se desculpar com Sylph. Quando você está ferido fisicamente, vai se curar depressa, mas a ferida emocional não vai embora tão cedo.
Os ombros de Paul caíram em desânimo. — Você tem razão. Entendi tudo errado. Eu sinto muito.
Quando vi isso, lembrei do que Laws me disse antes: "Falar com você faz a pessoa se sentir um pai subqualificado." A tentativa de Paul de me repreender foi ele tentando mostrar mais do lado paterno?
Bem, se sim, ele perdeu essa rodada.
— Não precisa se desculpar. No futuro, se acha que o que eu fiz foi errado, por favor, repreenda-me como quiser. Tudo que peço é que você me ouça primeiro. Haverá momentos em que as palavras não serão suficientes ou em que soará como se eu estivesse dando desculpas, mas se tiver algo a dizer, por favor, tente ouvir o meu lado primeiro.
— Vou manter isso em mente. Quer dizer, eu não espero que você esteja errado em primeiro lugar, mas...
— Quando estiver, use isso como uma oportunidade de aprendizado para disciplinar qualquer irmão ou irmã mais novo que você me dê no futuro.
— Sim. Farei isso — Paul disse em tom autodepreciativo. O homem estava claramente de mau humor.
Fui longe demais? Quer dizer, perder uma discussão para o seu filho de cinco anos? Isso com certeza acabaria com minha confiança. Supus que ele era um pouco jovem para ser pai.
— A propósito, Pai, quantos anos você tem?
— Hmm? Eu tenho vinte e quatro.
— Entendo. — Então, ele tinha dezenove anos quando se casou e me teve? Não sabia a idade média para casamentos neste mundo, mas com coisas como monstros e guerra e isso sendo uma ocorrência diária, isso parecia muito apropriado.
Um homem dez anos mais jovem do que eu se casou, teve um filho e agora estava lutando para criar. Considerando a minha história de 34 anos de desemprego indolente, você não pensaria que eu seria capaz de superá-lo em qualquer coisa.
Ah, bom...
— Pai, posso trazer Sylph para brincar algum dia?
— Hmm? Ó, é claro.
Satisfeito com essa resposta, entrei em casa com meu pai. Fiquei feliz por ele não ter preconceito contra demônios.
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Paul
Meu filho estava zangado. O menino nunca tinha exibido muita emoção, mas aqui estava ele, silenciosamente fumegando. Como chegamos a isto?
Começou naquela tarde, quando a Sra. Eto veio para a nossa casa, furiosa. Ela trouxe seu filho Somal, considerado um dos pirralhos do bairro. Havia um hematoma roxo em volta de um de seus olhos. Como um espadachim que tinha visto muitas batalhas, soube na hora que ele tinha levado um soco.
A história da mãe dele era longa e incoerente, mas o resumo era que meu menino tinha socado o dela. Quando ouvi isso, fiquei aliviado.
Assumi que meu filho tinha saído para brincar, encontrou Somal e seus amigos brincando e tentou se juntar a eles, mas meu menino não era como outras crianças; ele já era um mago Santo da Água na sua idade. Ele provavelmente disse algo arrogante, enquanto as outras crianças tinham respondido, e então todos se meteram em uma briga. Meu menino era bem esperto e maduro para a sua idade, mas ainda era uma criança.
A Sra. Eto continuou a ficar vermelha e depois pálida enquanto tentava fazer isso parecer um grande absurdo, quando era apenas uma briga entre crianças. E só de olhar, era possível dizer que o ferimento do filho dela não ia deixar uma marca, um repreendimento poderia ser o suficiente e isso seria o fim.
As crianças estavam fadadas a entrar em conflitos que se transformavam em golpes em algum momento, mas Rudeus era muito mais poderoso do que as outras crianças. Ele não só tinha sido o discípulo da jovem Santo da Água, Roxy, como estive o treinando desde seus três anos. Qualquer luta que ele tenha tido foi com certeza unilateral.
As coisas tinham ido bem desta vez, mas se ele ficasse de cabeça quente, poderia acabar exagerando. Um garoto inteligente como Rudeus deveria ser capaz de lidar com alguém como Somal sem precisar dar um soco. Eu precisava ensiná-lo que dar um soco em alguém era uma coisa precipitada para se fazer, e ele precisava pensar melhor antes de recorrer a isso.
Eu precisava dar uma pequena bronca nele.
De qualquer forma, esse era o plano. Como isso deu tão errado?
Meu filho não tinha intenção de se desculpar comigo. Em vez disso, ele olhou para mim como se estivesse vendo um inseto.
Tinha certeza que, do ponto de vista do meu filho, eles estavam tendo uma luta em pé de igualdade, mas quando alguém tem poderes como os dele, era preciso estar ciente de quão forte você se tornou.
Além disso, ele machucou alguém, então precisava se desculpar. Ele era um garoto esperto e até podia não entender agora, mas tinha certeza de que chegaria à resposta certa no devido tempo.
Com isso em mente, usei um tom firme para perguntar o que tinha acontecido, apenas para ele responder com condescendência e sarcasmo, o que me irritou, e, no calor do momento, bati nele. E aqui estava eu, tentando ensinar uma lição sobre como as pessoas com poder não devem recorrer à violência contra pessoas mais fracas.
Eu bati nele. Sabia que estava errado, mas não podia dizer isso enquanto tentava dar uma bronca no meu filho. Não poderia dizer para m não fazer o que eu tinha feito momentos antes. Enquanto lutava com minha compostura abalada, meu filho insinuava que não tinha feito nada de errado, e até disse que se eu tivesse um problema com isso, ele sairia de casa.
Quase o disse ali para ir em frente, partir, mas consegui resistir à vontade. Tinha que fazer isso. Eu mesmo era de uma família rígida, com um pai dominador que martelaria em mim seus ensinamentos sem me dar ouvidos. Meu ressentimento tinha crescido até o ponto em que tivemos uma briga enorme que terminou comigo saindo de casa.
O sangue do meu pai corria em minhas veias... o sangue de uma mula teimosa e irredutível. E ele também corria nas veias de Rudeus. Bastava olhar o quão teimoso ele poderia ser, era sem dúvidas meu filho.
Quando me disseram para sair, paguei o meu velho na mesma moeda e fiz exatamente o que ele disse. Eu poderia expulsar Rudeus também. Ele disse que esperaria até crescer antes de sair de casa, mas se dissesse a ele para sair agora, apostava que o garoto iria embora mesmo. Tinha certeza que era da natureza dele.
Ouvi dizer que, pouco depois de minha partida, meu pai adoeceu e morreu. E ouvi dizer que ele se arrependeu da nossa grande briga até o fim, até fiquei feliz em ouvir isso.
Não — se precisasse ser honesto, também me arrependi. Diante disso, se dissesse a Rudeus para sair e ele realmente partisse, com certeza me arrependeria disso.
Tive que ser paciente. Afinal, não tinha aprendido com a experiência? Além disso, no dia em que meu filho nasceu, decidi que nunca seria um pai como o meu.
— Você tem razão. Entendi tudo errado. Eu sinto muito. — O pedido de desculpas saiu de forma natural.
A expressão do Rudeus se suavizou e ele passou a explicar o que aconteceu, disse que encontrou a criança do Laws sendo intimidada e entrou em cena para ajudar. Ao invés de socar alguém, ele apenas jogou bolas de lama. Isso dificilmente poderia ser chamado de uma luta adequada.
Se o que Rudeus disse era verdade, então o que tinha feito era uma coisa louvável, algo de que deveria se orgulhar. Mas, em vez de ser elogiado por suas ações, tudo o que ele conseguiu foi um pai que não escutou e bateu nele.
Quando era jovem, meu pai fez a mesma coisa comigo tantas vezes, nunca ouvindo o meu lado das coisas e sempre me culpando por não ser um filho perfeito. Cada vez que isso acontecia, eu me sentia tão miserável e indefeso.
Bem, seja qual for a lição que tenha tentado ensinar aqui, eu falhei. Merda.
Mas Rudeus não me culpou por isso. Ele até me consolou no final; era um bom garoto. Quase bom demais. Eu era mesmo seu pai? Não — Zenith não era do tipo que teria um caso e, além disso, não havia pai bom o suficiente para gerar um filho como ele. Puxa, nunca esperaria que minha semente carregasse frutos tão fortes.
Mais do que orgulho, porém, o que senti foi uma dor no estômago.
— Pai, posso trazer Sylph para brincar algum dia?
— Hmm? Ó, é claro.
Por enquanto, poderia pelo menos estar feliz por meu filho ter feito seu primeiro amigo.
nota:
1 – Silfos (Sylph em inglês), ou Sílfides, são seres mitológicos do ar na tradição germânica. Silfos, ao contrário de fadas, são masculinos. Têm uma capacidade intelectual sensível, chegando a favorecer o homem na sua imaginação. São reconhecidamente belos, assumindo vários tons de violeta e de rosa. As lendas contam que são os silfos que modelam as nuvens com as suas brincadeiras, para embelezar o dia-a-dia do homem na Terra. Além de tudo, podem ser nocivos, pois se um indivíduo humano souber demais sobre a natureza e usá-la para o mal, os seres poderão puni-lo. Raramente se enganam por acharem também o grande conhecimento.