Volume 1

Capítulo 6: Razões para respeitar

Não saí de casa desde que vim parar neste mundo. Depois de um certo ponto, isso se tornou intencional da minha parte.

Bem, estava com medo.

Quando fui para o quintal e olhei para o mundo, as memórias voltaram à minha mente: memórias daquele dia; a dor no meu flanco; o frio da chuva; arrependimento; desespero; a dor de ser atropelado por aquele caminhão.

Foi tão vívido como se tivesse sido ontem. Minhas pernas tremeram.

Consegui olhar pela janela, consegui ir para o nosso quintal, mas não consegui ir mais longe. E eu sabia o porquê.

Esta serena paisagem pastoral que se estendia diante de mim poderia se transformar no inferno em um instante. Por mais pacífica que parecesse a paisagem, ela nunca me aceitaria.

Na minha vida passada, enquanto estava sentado em casa, frustrado e com tesão, fantasiava sobre o Japão de repente sendo pego em uma guerra. E então uma garota gostosa aparecia precisando de um lugar para ficar. Sabia que se isso acontecesse, estaria pronto para o desafio.

Essa fantasia foi minha fuga da realidade. Sonhei isso muitas vezes. Nesses sonhos, eu não era o maioral ou algo parecido; era apenas um cara normal. Apenas um cara normal, fazendo coisas normais, vivendo uma vida normal.

Mas então eu acordava desse sonho. Temia que, se desse um passo para longe de minha casa agora, também acordaria deste sonho. Acordaria e me encontraria de volta naquele momento de desespero esmagador, castigado pelas ondas de meus muitos arrependimentos.

Não. Isto não era um sonho. Parecia real demais. Talvez se você me dissesse que era um VRMMORPG, mas — não. Isso era realidade, disse a mim mesmo. Eu sabia que era realidade e não um sonho.

E, mesmo assim, ainda não conseguia dar um passo para longe de casa.

Não importava o quanto tentasse me tranquilizar, não importava o quanto prometesse a mim mesmo em voz alta, meu corpo não obedecia.

Queria chorar.

 

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A cerimônia de graduação seria realizada fora da aldeia, Roxy me informou.

Protestei de forma mansa: — Lá fora?

— Sim, fora da aldeia. Já preparei o cavalo.

— Não podemos fazer isso dentro de casa?

— Não, não podemos.

— Não podemos, hum? — Fiquei perdido. Intelectualmente, sabia que algum dia precisaria me aventurar no mundo exterior. Porém, meu corpo se recusou a obedecer, porque ainda lembrava muito bem do passado.

Lembrou minha antiga vida; levando uma surra de delinquentes; sendo alvo de risadas ruidosas; experimentando um grande desgosto; não tendo escolha a não ser me tornar um recluso social.

— Por quê? Qual é o problema? — perguntou Roxy.

— Hum, bem, é que... pode haver monstros ou algo lá fora.

— Ó, com certeza não encontraremos nenhum deles por aqui, desde que não nos aproximemos muito das florestas. Mesmo se fizermos isso, eles serão fracos o suficiente para que eu possa cuidar deles. Caramba, você provavelmente poderia lidar com eles sozinho. — Roxy franziu a testa com toda essa minha conversa fiada sobre não querer sair de casa. — Ah, é verdade, lembrei que ouvi que... você nunca saiu de casa, não é, Rudy?

Er… não.

— É porque você tem medo do cavalo?

— Nã-não, eu... não tenho tanto medo de cavalos. — Na verdade, gostava de cavalos. Até joguei Derby Stallion e tudo mais.

Hehe. Ah, então é isso... — disse Roxy. — Às vezes, acho que você age de acordo com a sua idade.

Ela teve uma ideia totalmente errada, mas não podia dizer que estava com medo de sair de casa, porque seria ainda mais humilhante do que dizer que tinha medo de cavalos. E ainda tinha meu senso de orgulho — meu senso de orgulho minúsculo e fora de sintonia com a realidade.

Sério, tudo que queria era não ter uma garota tão legal quanto ela tirando sarro de mim.

Eu ainda não me mexi. — Acho que não tenho outra escolha, então... — disse Roxy. — Rup! — Com isso, ela me pegou e me jogou por cima do ombro.

Buh!? — Hesitei.

— Assim que você subir no cavalo, seus medos irão embora, eu prometo.

Não me debati. Parte de mim estava em conflito sobre o que estava acontecendo, mas outra parte sentia que deveria aceitar ser levado embora.

Roxy me içou em cima do cavalo e subiu atrás de mim. Ela pegou as rédeas, puxou e o cavalo saiu galopando, deixando a casa para trás.

 

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Esta foi a primeira vez que fui além do meu próprio quintal. Roxy nos guiou lentamente pela aldeia. De vez em quando, os aldeões lançavam olhares penetrantes e ousados em minha direção.

"Ó, por favor, não.", pensei. Esses olhares eram assustadores como sempre — em especial aquele brilho de superioridade zombeteira que conhecia muito bem. Sem dúvidas eles não iriam me abordar com um tom malicioso e condescendente... certo? Eles nem me conheciam. Como eles poderiam? As únicas pessoas que me conheciam neste mundo inteiro eram as que estavam naquela casinha.

Então, por que eles estavam olhando para mim? "Parem de olhar para mim!", resmunguei em meu coração. Voltem ao trabalho.

Mas — não. Não era para mim que eles estavam olhando.

Era Roxy.

E alguns dos cidadãos, percebi, estavam se curvando para ela, foi então que me dei conta: Roxy tinha feito um nome para si mesma na aldeia, mesmo com o preconceito considerável contra os demônios neste reino. E estávamos no interior, então essas atitudes eram ainda mais gritantes. No intervalo de dois anos, ela se tornou alguém a quem as pessoas estavam dispostas a se curvar.

Com essa percepção, senti a presença confiável que Roxy havia se tornado. Ela conhecia o caminho e claramente conhecia as pessoas por quem passávamos. Se alguém tentasse me dizer algo, tinha certeza que ela entraria em ação.

Puxa, como a garota que espionava as excentricidades noturnas dos meus pais no quarto conseguiu se tornar alguém tão reconhecida? A tensão diminuiu do meu corpo com esse pensamento.

— Caravaggio está de bom humor — disse Roxy. — Parece que está feliz por você estar montando nele, Rudy.

Caravaggio era o nome do cavalo. Porém, não tinha ideia de como ler o humor de um cavalo. — Ó, tá — disse vagamente, descansando na Roxy com seu peito modesto pressionando a minha nuca. Foi bom.

Estava com tanto medo do quê? Por que alguém nesta vila tranquila iria querer zombar de mim?

A voz da Roxy me tirou do meu devaneio. — Você ainda está com medo?

Eu balancei minha cabeça. Os olhares dos aldeões não me assustavam mais. — Não, estou bem.

— Viu? O que eu te disse?

Agora que encontrei um pouco de compostura, podia absorver o ambiente. Os campos se espalhavam até onde podia ver, com casas pontilhadas aqui e ali. Sem dúvidas parecia uma vila agrícola.

Muito mais longe, havia mais algumas casas. Se estivessem mais próximas, pensaria que era uma cidade. Tudo o que precisava era um moinho de vento para se parecer com a Suíça ou um local semelhante.

Na verdade, eles não tinham moinhos de água também?

Agora que relaxei, percebi como as coisas estavam calmas. As coisas nunca eram tão tranquilas quando Roxy e eu estávamos juntos. Mas, parando para pensar, nunca estivemos sozinhos dessa forma. O silêncio não era ruim; era apenas um pouco estranho.

Então, decidi quebrá-lo. — Senhorita Roxy, o que eles colhem desses campos?

— Em grande parte é trigo asurano, que é usado para fazer pão. Provavelmente algumas flores de Vatirus e alguns vegetais também. Na capital, as flores de Vatirus são transformadas em perfume. O resto é o tipo de coisa que você está acostumado a ver na mesa durante as refeições.

— Ó, é, estou vendo algumas pimentas! Você não pode comer isso, pode, Senhorita Roxy?

— Não é que eu não possa comer, só não gosto muito.

Continuei fazendo perguntas desse jeito. Hoje, disse Roxy, seria meu exame final — o que significaria o fim do seu papel como minha tutora. E sabendo o quão impaciente Roxy poderia ser, ela poderia deixar minha casa já amanhã. Se fosse esse o caso, hoje seria nossa última chance de passar um tempo juntos. Achei que deveria falar com ela enquanto ainda podia.

De forma lamentável, não consegui encontrar o assunto certo para conversar, então acabei fazendo mais perguntas sobre minha aldeia.

De acordo com Roxy, morávamos na Vila Buena, que ficava na Região de Fittoa, no nordeste do Reino Asura. No momento, havia mais de trinta famílias aqui, trabalhando nas terras agrícolas. Meu pai, Paul, era um cavaleiro destacado para a aldeia. Seu trabalho era vigiar os habitantes da cidade para garantir que realizassem seu trabalho de forma apropriada, julgar quaisquer disputas e proteger a vila de ataques de monstros. Em suma, ele era um guarda-costas sancionado publicamente.

Mesmo assim, os jovens da aldeia também se revezavam para protegê-la, então Paul passava a maior parte das tardes em casa depois de fazer suas rondas matinais. Nossa aldeia era bastante pacífica, de modo que tinha pouco trabalho a fazer.

Enquanto Roxy me contava esses detalhes, os campos de trigo ficaram escassos. Parei de fazer perguntas a ela e o silêncio foi retomado por um tempo. O resto de nossa jornada levaria cerca de mais uma hora.

Logo, os campos de trigo desapareceram por completo, então viajamos por pastagens vazias.

 

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Continuamos nosso caminho através das planícies, rumo ao horizonte plano.

Não — vagamente, à distância, pude ver montanhas. Em todo o caso, isso era algo que não podia ser visto no Japão, até me lembrou de uma foto das estepes da Mongólia em um livro de geografia ou algo parecido.

— Aqui deve servir — disse Roxy, fazendo o cavalo parar ao lado de uma árvore solitária. Ela desmontou e amarrou as rédeas à árvore.

Em seguida, ela me pegou e me ajudou a descer, nos colocando frente a frente. — Vou lançar o feitiço de ataque de nível Santo da Água, Cumulonimbus¹ — disse ela. — Ele cria trovões e faz com que chuvas torrenciais caiam em uma grande área.

— Tudo bem.

— Por favor, preste atenção no que faço e tente lançar o feitiço sozinho depois.

Eu usaria magia da água de nível Santo. Agora entendi: Esse era meu exame final. Roxy iria usar o feitiço mais poderoso que tinha em seu repertório, e se eu fosse capaz de usar também, então significaria que ela me ensinou tudo o que podia.

— Para fins de demonstração, vou descartar o feitiço depois de um minuto. Se você conseguir manter a chuva caindo por... pelo menos uma hora, digamos, considerarei isso um sucesso.

— Viemos aqui onde não há ninguém porque isso envolve ensinamentos secretos? — Perguntei.

— Não, viemos aqui porque o feitiço pode ferir pessoas ou causar danos às plantações.

Uau. Chuva tão forte que poderia prejudicar as plantações? Isso parecia incrível.

— Muito bem. — Roxy ergueu as mãos para o céu. — Ó, espíritos das águas magníficas, eu imploro ao Príncipe do Trovão! Conceda-me meu desejo, abençoe-me com tua selvageria e revele a esta serva insignificante um vislumbre do teu poder! Que o medo golpeie o coração do homem assim como teu martelo divino golpeia tua bigorna e cobre a terra com água! Venha, ó chuva, e leve tudo embora em sua torrente de destruição, Cumulonimbus!

Ela entoou de forma constante, lenta e proposital. Levou pouco mais de um minuto para completar seu encantamento.

Um momento depois, nossos arredores escureceram. Por vários segundos, não houve nada — então, uma forte chuva começou a cair. Um vento terrível rugiu, acompanhado por nuvens negras que tremeluziam com relâmpagos. Em meio à chuva torrencial, o céu começou a tremer e uma luz roxa atravessou as nuvens. A cada novo clarão, o poder do relâmpago aumentava. Era quase como se a própria luz estivesse assumindo um peso palpável, crescendo com uma ondulação e pronta para acertar...

... o solo.

O raio atingiu a árvore próxima a nós. Meus tímpanos ressoaram e minha visão ficou branca.

Roxy soltou um grito de alarme com esse erro. Um mero momento depois, as nuvens se espalharam, a chuva e os trovões logo pararam. — Oh, não. — murmurou Roxy enquanto corria para a árvore, com o rosto pálido.

Quando minha visão voltou, vi que o cavalo havia desmaiado, fumaça subindo do corpo. Roxy colocou as mãos no corpo do cavalo e loco começou a recitar: — Ó, deusa da afeição maternal, feche as feridas deste e restaure o vigor de seu corpo, Megacura!

O canto de Roxy tinha sido agitado, mas logo o cavalo voltou a si. Ele não poderia estar tão perto da morte, então: Um feitiço de Cura de nível Intermediário como aquele não poderia trazer os mortos à vida.

O cavalo parecia alarmado e suor gotejava na testa de Roxy. — Ufa! Essa foi por pouco!

Sim, eu diria que foi por pouco, muito pouco. Esse era o único cavalo da minha família! Paul zelosamente cuidava dele todos os dias e às vezes o levava para longos passeios com um sorriso brilhante no rosto. O animal não tinha um pedigree forte nem nada do tipo, mas meu pai e aquele cavalo haviam passado por muita coisa ao longo dos anos. Não era exagero dizer que, depois de Zenith, Paul amava aquele cavalo mais do que tudo. Isso mostrava o quão importante o animal era.

Claro, depois de passar os últimos dois anos morando conosco, Roxy também sabia disso. Eu a tinha visto mais de uma vez com o rosto em transe enquanto espiava Paul e o cavalo, apenas para depois recuar assustada.

— Podemos, ah, por favor, manter isso em segredo? — Roxy disse, com lágrimas nos olhos.

Ela era uma desastrada. Quase acidentes e arranhões como este eram uma ocorrência comum com ela. Ainda assim, a garota dava tudo de si. Sabia que ficava acordada até tarde todas as noites para planejar aulas para mim, e sabia que minha tutora tentava ao máximo mostrar um ar de dignidade para que as pessoas não a menosprezassem por sua idade.

Gostava disso nela. Se não fosse por nossa diferença de idade, gostaria de me casar com ela.

— Você não precisa se preocupar — respondi. — Não vou contar ao meu pai.

Seus lábio estremeceram. — Por favor, não.

Apesar de estar à beira das lágrimas, Roxy logo balançou a cabeça, deu um tapa nas próprias bochechas e recuperou a compostura. — Muito bem, Rudy. Vá em frente e tente. Vou me certificar de manter Caravaggio seguro.

O cavalo ainda parecia assustado, pronto para fugir a qualquer momento, mas Roxy deu um passo à frente dele, bloqueando seu caminho com seu corpo minúsculo. Ela certamente não poderia dominar um cavalo com seu porte físico, mas aos poucos, a criatura nervosa ficou mais dócil. Roxy manteve sua posição e murmurou um encantamento em voz baixa.

Ambos foram engolfados por uma parede de terra, que começou a crescer em uma cúpula de terra não muito diferente de um iglu. Este era o feitiço de terra de nível Avançado, Fortaleza da Terra, que devia ser o suficiente para mantê-los protegidos da tempestade.

Muito bem. Era minha vez de fazer isso. Ia ser tão incrível que iria explodir a cabeça da Roxy.

Como era mesmo o encantamento? Ah, sim. — Ó, espíritos das águas magníficas, eu imploro ao Príncipe do Trovão! Conceda-me meu desejo, abençoe-me com tua selvageria e revele a este servo insignificante um vislumbre de teu poder! Que o medo golpeie o coração do homem assim como teu martelo divino golpeia tua bigorna e cobre a terra com água! Venha, ó chuva, e leve tudo embora em sua torrente de destruição, Cumulonimbus!

Pronunciei as palavras em uma única respiração, e as nuvens começaram a aumentar cada vez mais.

Agora entendi a natureza do feitiço Cumulonimbus: Além de conjurar nuvens no alto, você simultaneamente tinha que lidar com uma série complexa de movimentos para transformá-las em nuvens de tempestade — ou algo nesse sentido. Necessitava-se canalizar de forma contínua a magia para o feitiço ou as nuvens pararem de se mover e se dissiparem. Deixando a magia de lado, seria uma merda ter que ficar aqui com as duas mãos levantadas por mais de uma hora.

Espere, não. Espere aí. Os magos eram criativos. Eles não precisariam manter uma pose como esta por uma hora para realizar essa tarefa. Tive que me lembrar: Isso era um teste. Não deveria ficar de pé e imóvel por uma hora; depois de criar as nuvens, precisava usar alguma forma de Magia Combinada para manter o feitiço ativo.

Este era o momento da verdade. Precisava recorrer a tudo que aprendi. — Tá, acho que me lembro de ter visto isso na TV antes. Então, quando as nuvens ainda estão em processo de formação...

Algumas das nuvens que Roxy havia criado antes ainda estavam por perto. Se estivesse correto, poderia conjurar um redemoinho de ar horizontal e aquecer o ar abaixo delas para criar uma corrente ascendente. E então, se resfriasse o ar acima da corrente ascendente, ele ganharia velocidade e...

Ao fazer tudo isso, acabei queimando metade das minhas reservas mágicas. No entanto, fiz o que pude. Agora só precisava ver se duraria uma hora. Satisfeito, voltei para a cúpula que Roxy havia criado, a chuva caindo sobre mim enquanto o trovão ribombava no céu.

Roxy se sentou contra um lado da cúpula, as rédeas do cavalo agarradas em suas mãos. Ao me ver, ela deu um pequeno aceno com a cabeça. — Esta cúpula irá desaparecer em cerca de uma hora — disse ela —, então ficaremos bem, presumindo que não elas não sumam antes disso.

— Tudo bem.

— Não se preocupe. Caravaggio ficará bem.

— Tudo bem.

— Bem, se está "tudo bem", então volte para lá. Lembre-se, você precisa controlar essas nuvens de tempestade por uma hora.

Hã?

— Controlar elas?

— Hmm? Bem, sim. O que há de tão estranho nisso? — Perguntou Roxy.

— Só... preciso controlar?

— É claro. Este é um feitiço mágico de nível Santo da Água, e se você não mantiver seu feitiço alimentado com magia, suas nuvens vão se dissipar.

— Mas eu já tomei medidas para garantir que isso não aconteça — respondi.

— Hã? Ó! — Roxy começou a correr para fora da cúpula como se de repente tivesse percebido algo. Com isso, a cúpula começou a desmoronar.

Ei, lembre-se de controlar sua magia ou você enterrará o cavalo vivo.

— Opa! — Roxy logo recuperou o controle do feitiço e saiu. Ela olhou para o céu, surpresa. — Entendi! Você criou um redemoinho diagonal para empurrar as nuvens para cima! — As nuvens cumulonimbus que criei ainda estavam crescendo, aparentemente sem limites.

Se você quer saber minha opinião, nada mal.

Há muito tempo, assisti um especial de TV que tratava da ciência por trás da formação de supercélulas². Não me lembrava dos detalhes exatos, mas mantive uma vaga impressão visual do processo. A partir disso, consegui criar algo semelhante o suficiente.

— Rudy, — Roxy falou — você passou.

— Hã? Mas ainda não se passou uma hora.

— Não há necessidade para isso. Se você pode fazer isso, é mais do que competente o suficiente — respondeu ela. — Muito bem, você pode fazer isso se dissipar?

Er, claro. Mas vai demorar um pouco. — Resfriei o solo em uma área ampla, então esquentei o ar acima para criar uma corrente descendente, usando um pouco da magia do vento para espalhar as nuvens.

Assim que terminei, Roxy e eu ficamos lá, nós dois ensopados até os ossos. — Parabéns! — ela disse — Você agora é um Santo da Água. — Ela estava deslumbrante, sua mão afastando a franja molhada, com um sorriso raro no rosto.

Não tinha alcançado nada em minha vida anterior, mas agora tive uma conquista. Assim que percebi isso, uma sensação curiosa brotou dentro de mim. E eu sabia o que era.

Um senso de realização.

Pela primeira vez desde que vim a este mundo, senti que realmente dei meu primeiro passo.

 

※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※※

 

No dia seguinte, Roxy estava na entrada de nossa casa com seu equipamento de viagem, a mesma imagem da pessoa que chegara dois anos antes. Minha mãe e meu pai também não pareciam muito diferentes. A única coisa que mudou foi que eu estava mais alto.

— Roxy, — disse Zenith— você é mais do que bem-vinda para ficar. Ainda tenho muitas receitas para te ensinar.

Paul deu sequência à conversa: — Certo. Seu papel como tutora pode ter chegado ao fim, mas estamos em dívida com você por sua ajuda com a seca do ano passado. Tenho certeza de que os aldeões ficarão felizes se você ficar por aqui.

Aqui estavam meus pais, tentando impedir Roxy de ir embora. Sem que percebessem, eles pareciam ter se tornado bons amigos. O que fazia sentido; suas tardes tinham adquirido uma grande quantidade de tempo livre, e acho que a garota passou a ampliar seu círculo social. Ela não era apenas um interesse amoroso em um videogame, cujas circunstâncias só mudavam quando o personagem principal fazia alguma coisa.

— Agradeço a oferta, mas não posso aceitar... — respondeu Roxy. — Ensinar seu filho me fez perceber o quão impotente eu sou, então vou sair e viajar pelo mundo por um tempo para aprimorar minha magia.

Ela devia estar um pouco chocada por eu ter alcançado o mesmo nível que ela. E a garota havia dito antes que ter um aluno que excedia suas habilidades a deixava desconfortável.

— Entendi... — disse Paul. — Suponho que seja isso. Lamento que nosso filho tenha feito você perder a confiança em si mesma.

Ei! Você não precisava colocar as coisas assim, Pai!

— Ó, não — respondeu Roxy. — Estou grata por ver como eu era convencida.

— Eu dificilmente chamaria você de convencida quando é capaz de usar magia da água do nível Santo — Paul rebateu.

— Mesmo se não pudesse, a engenhosidade do seu filho me mostrou que posso ser capaz de usar magia ainda mais forte. — Com uma pequena careta, Roxy colocou a mão na minha cabeça. — Rudy, queria fazer o meu melhor por você, mas não tinha o que era preciso para ensiná-lo.

— Isso não é verdade. Você me ensinou todo tipo de coisa, Senhorita Roxy.

— Estou feliz em ouvir isso — disse Roxy. — Ó, e isso me lembra! — Ela enfiou a mão nas dobras de seu manto, tateou ao redor e puxou um pingente amarrado com uma corda de couro. Era feito de um metal que brilhava com um tom de verde, moldado na forma de três lanças entrelaçadas. — Isto é para comemorar sua formatura. Não tive muito tempo para preparar, mas espero que seja o suficiente.

— O que é isso?

— É um amuleto Migurd. Se por acaso você se deparar com algum demônio que tente te atrapalhar, mostre isso e mencione meu nome, assim a pessoa deve ficar um pouco aliviada com você... provavelmente.

— Vou cuidar bem dele.

— Lembre-se, não é uma garantia. Não seja confiante demais.

Então, bem no final, Roxy deu um sorrisinho e partiu.

Antes que percebesse, eu estava chorando.

Ela realmente me ensinou tanto: sabedoria, experiência, técnica... se nunca a tivesse conhecido, ainda estaria fazendo o mesmo de antes, tateando meu caminho com "Um Manual de Magia" em uma das mãos.

Mais do que tudo, porém, ela me levou para fora.

Ela me levou para fora, o que já era tudo. Uma coisa tão simples, mas foi ela quem fez isso por mim. Roxy; que veio para esta aldeia nem mesmo dois anos atrás; que parecia alguém que nunca se daria bem com estranhos; um demônio que os aldeões deveriam manter sob sua atenção.

Não foi Paul. Não foi Zenith. Foi Roxy quem me levou para o mundo exterior, e isso significava algo.

Disse que ela me levou para o mundo exterior, quando na verdade, tudo que a garota fez foi me levar para o outro lado da cidade. Ainda assim, a perspectiva de sair de casa com certeza tinha sido traumática para mim, e ela me curou disso — apenas me levando através da aldeia, o que foi o suficiente para levantar meu ânimo. Ela não estava tentando me reabilitar, mas ainda fiz um avanço por causa dela.

Ontem, depois que voltamos para casa, ensopados, me virei para olhar o portão da frente e dei apenas um passo além dele. E bem ali estava o chão. Apenas o chão, nada mais. Minha ansiedade havia me deixado.

Agora, eu era capaz de sair sozinho.

Ela conseguiu fazer algo por mim que ninguém mais fez, nem mesmo meus pais ou irmãos da minha vida passada. Foi ela quem fez isso por mim. Não recebi palavras irresponsáveis, mas um senso de coragem responsável.

E olha que esse nem foi o seu objetivo: Eu sabia disso. Ela tinha feito isso por si mesma, e também sabia disso, mesmo assim, eu a respeitei. Por mais jovem que fosse, respeitava aquela garota.

Prometi a mim mesmo que não desviaria o olhar até que Roxy desaparecesse de vista. Em minhas mãos, agarrei a varinha e o pingente que me deu. Ainda tinha todas as coisas que ela me ensinou.

Então me lembrei: No meu quarto ainda tinha uma calcinha que tinha roubado alguns meses atrás.

Me desculpe por isso, Roxy.


Notas:

1 – Um cúmulo-nimbo ou, em latim cumulonimbus, é um tipo de nuvem caracterizada por um grande desenvolvimento vertical. Tipicamente, surge a partir do desenvolvimento de cúmulos que, por ação de ventos convectivos ascendentes, ganham massa e volume e passam a ser cumulus congestus e, no auge de sua evolução, torna-se um cúmulo-nimbo, quando atingem mais de quinze quilômetros de altura. Uma de suas principais características é o formato de bigorna que forma-se em seu topo, resultado dos ventos da alta troposfera. Tipicamente produzem muita chuva, principalmente durante os meses mais quentes do ano. Nuvens isoladas possuem ciclo de vida médio de uma hora. Classificam-se em dois tipos principais, cuja diferença é o seu formato superior, enquanto que características peculiares ganham denominações especiais. Este tipo de nuvem frequentemente associa-se a eventos meteorológicos extremos, como a ocorrência de tempestades com muitos raios e chuva volumosa, além de granizo e neve. Podem ocorrer isoladas, em conjunto (formando multicélulas) ou associadas à frentes.

2 – Uma supercélula é um tipo de tempestade caracterizada pela presença de um mesociclone (uma corrente de ar ascendente girando no interior da nuvem). Por esta razão, essas tempestades às vezes são chamadas de tempestades girantes. Das quatro classificações de tempestade (Supercélula, multicélula, unicélula e linha de instabilidade) as supercélulas são geralmente as menos comuns, entretanto são também as mais severas. Esses sistemas estão frequentemente isolados de outras tempestades, e podem dominar o clima local por cerca de 32 km de distância. Causam chuvas muito volumosas, produzem muitos raios e ventania. Mas o mais perigoso é quando ocorre a formação de tornados, pois estes causam muitos danos por onde passam. Supercélulas têm geralmente três classificações: clássica, baixa precipitação e alta precipitação. Supercélulas de baixa precipitação são encontradas em climas mais secos e áridos, enquanto que as supercélulas de alta precipitação podem surgir em qualquer lugar do mundo sob as pré-condições necessárias à sua formação, mas são vistas principalmente nas Grandes Planícies dos Estados Unidos. No Brasil ocorrem principalmente nas regiões Sul e Sudeste do país, e eventualmente produzem tornados.



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