Volume 1 – Arco 2
Capítulo 44: Prazer, Mariah
Após uma hora cavalgando pelas terras desoladas de Rubra, Ella finalmente avistou o portão da comunidade dos Puracionistas.
Era cercada por longos muros de ferro, não era muito alto como as muralhas da UCC, mas suficientemente alto para um humano escalar. Em cada extremidade havia uma torre de vigia, ocupadas por sentinelas armados até o dente.
O que antes fora um condomínio residencial, hoje servia como o lar dos Puracionistas.
Do alto, os guardas já apontavam seus rifles para Ella. Os lasers das miras apontavam para o peito da garota.
— Não atirem — gritou Ella, levantando as mãos em rendição. — Me chamo Ella Murphy. Recebi um convite pessoal do Kurt Weiss para vir até aqui. Confirmem com ele se precisarem!
— Deixem-na entrar! — bradou uma voz masculina atrás do portão.
O portão de ferro foi aberto às pressas pelos homens de Kurt. Lá estava ele, com um sorriso enorme em seu rosto.
Ella entrou montada em seu cavalo e o portão foi fechado atrás dela.
— Ella! — exclamou Kurt, abrindo os braços em uma recepção calorosa. — Eu sabia que você viria!
Descendo do cavalo, dois homens se aproximaram, puxando as rédeas do cavalo e levando-o até o estábulo. Uma mordomia que Ella não estava acostumada.
— Desculpa pela demora — disse ela, sorrindo. — Tive que resolver alguns problemas pessoais.
Olhando ao seu redor, Ella notou diversas crianças brincando livremente pelas ruas, as casas eram bonitas e limpas. As pessoas pareciam pacíficas — um contraste totalmente diferente do que esperava de uma comunidade de nazistas do século 31.
— Sem problemas. O importante é que você está aqui agora! Ali, olha! Aquela é a minha esposa. Ela estava ansiosa para te conhecer! — disse Kurt, apontando para uma mulher vindo atrás dele.
A mulher que se aproximava era branca, loira e dos olhos verdes — tão angelical quanto a própria Ella.
Tinha praticamente a mesma altura de Ella, mas o salto alto lhe conferia alguns centímetros extras. Os cabelos longos e sedosos caíam até a cintura, balançando suavemente a cada passo.
Ella não tomava um banho há dias, suas roupas estavam sujas de sangue e seu cheiro não era dos melhores. Contrastando com a esposa de Kurt, que parecia ter acabado de sair do salão de beleza.
O som seco dos saltos ecoando no chão despertava a curiosidade de Ella. Nunca havia visto aquele calçado pessoalmente.
— Você deve ser a Ella — disse a mulher, com uma voz aveludada e elegante. — Sou a Tatiana, esposa do Kurt e líder da comunidade.
— O Kurt me falou sobre você. É um prazer enorme te conhecer — respondeu Ella, estendendo a mão.
— O prazer é todo meu. Conhecer um de vocês, depois de todo esse tempo procurando... é uma honra imensurável. — Tatiana apertou sua mão com elegância. — Venha, vou te apresentar a comunidade.
As duas conversavam enquanto caminhavam lado a lado pelas ruas bem cuidadas.
— Depois de todos esses meses desde que o Kurt te encontrou, por que resolveu vir justo agora? — perguntou Tatiana, lançando um olhar curioso.
— Estou procurando por alguém. Mariah, ela está aqui?
— Sim, ela mora aqui há alguns anos. Mas ela... digamos que é uma cidadã comum. Por que alguém do seu nível se interessaria por ela?
— Bom, ela não é tão comum quanto você imagina. Ela possui respostas para algo muito importante para mim — respondeu Ella, olhando nos olhos de Tatiana.
— É o que está por trás dos olhos que conta, não acha? A forma como enxergamos as pessoas raramente revela quem elas são de verdade. Sempre vi Mariah como uma mulher velha comum, mas ao que parece, ela é muito mais que isso.
— Sim, você tem razão. As pessoas sempre nos surpreendem no final das contas.
— Eu sei como esse mundo funciona, Ella — interrompeu Tatiana, entrando na frente de Ella. — Você não está aqui para matá-la, está? Não tolero assassinatos em minha comunidade.
— O quê? Não! Estou aqui somente para conversar. Mariah era amiga do meu pai. Ela sabe de algo que pode me levar até ele.
— Entendo... então você quer algo dela. Quer usufruir de algo que somente ela pode oferecer...
— É... de certo modo sim — respondeu Ella, um pouco desconcertada.
— Pessoas não são só pessoas, você entende isso, não é? — disse ela, alisando estranhamente o cabelo de Ella e com um sorriso enigmático no rosto. — Elas são recursos. Podem ser para algo pequeno, como erguer um simples muro de ferro, ou para algo grande, como destruir exércitos num estalar de dedos. Você está vendo todas essas pessoas ao nosso redor? Todas elas pertencem a mim, inclusive Mariah.
Tatiana se inclinou levemente, seus olhos brilhavam com intensidade.
— Se você quer utilizar dos meus recursos.... o que você tem a oferecer?
Ella ficou em silêncio momentaneamente. Não era essa a recepção que esperava de Tatiana.
Tatiana inclinou levemente a cabeça, com uma expressão paciente, como quem aguarda uma resposta interessante.
— Qualquer coisa — disse Ella, firme, encarando-a. Pelos meus objetivos... eu faço qualquer coisa.
— Gosto dessa ambição — respondeu Tatiana, com um leve sorriso nos lábios. — Você me lembra a mim mesma quando era mais jovem. Impulsiva e faminta por propósito... os fins justificam os meios, foi nisso que sempre acreditei.
— Então, o que eu preciso fazer para poder falar com a Mariah?
— Nada por enquanto. Considere isso como um presente de boas-vindas. — Tatiana sorriu. — Ela mora ali naquela casa marrom.
— Obrigada, Tatiana. — Ella respondeu, retribuindo o sorriso.
A jovem seguiu na direção indicada. A casa marrom era simples, de arquitetura moderna, mas não era nada luxuosa. Um lar que se enquadrava nos padrões da classe média daquela época.
Ella bateu duas vezes na porta de metal. Momentos depois, uma mulher mais velha surgiu.
— Pois não? — disse, com uma voz calma e um sorriso acolhedor.
Mariah era branca, aparentava ter cerca de cinquenta anos, com os cabelos grisalhos preso em um coque. Seus olhos, de um azul profundo, lembravam as águas do Atlântico em dias calmos.
Era um pouco mais alta que Ella, tinha uma postura serena e um semblante gentil, surpreendendo Ella. Agora entendia porque Tatiana a via como apenas mais uma civil.
Vestia uma camiseta cinzenta de tecido macio, coberta por um cardigã surrado que a fazia parecer uma simples mulher de idade. A calça escura de linho terminava em botas modestas, já desgastadas pelo tempo de uso.
Seu pescoço era adornado por uma corrente de prata, provavelmente um colar, mas o pingente estava coberto pelas roupas.
— Você é a Mariah, certo?
— Sou sim. No que posso te ajudar, querida?
Essa simpatia... depois de tanto tempo em Rubra, Ella já não acreditava que alguém pudesse ser assim.
— Me chamo Ella Murphy, sou filha do Aslan. Vim atrás de você porque o Marc disse que é a única capaz de tirar o Yersin daquele estado de sono que ele está.
— Por que você não entra? — disse Mariah, abrindo a porta ainda mais.
Ella entrou na casa. Antes de Mariah fechar a porta, ela olhou para os lados, confirmando se não estavam sendo observadas.
— Sente-se — exclamou Mariah, com a voz séria.
Mariah mudou de personalidade de imediato. Assim como Ella suspeitava, aquela versão dócil era apenas para mascarar quem realmente era.
— Foi o Marc que te mandou? — perguntou, olhando-a com intensidade.
— Sim... ele foi um pouco relutante, mas no final cedeu. Ele não queria acordar o Yersin.
— É porque nunca foi o plano acordar ele novamente. Por mais que ele tenha sido meu mestre, eu compreendo o que fizeram com ele. Ele era uma bomba relógio. Existem pessoas que é melhor deixar para trás.
— Eu entendo. Já discuti isso com o Marc, mas ele concordou. Estou aqui por um pedido do meu pai. Nunca conheci o Yersin, só sei o que me contaram. Não é algo pessoal, estou apenas cumprindo o desejo do único homem capaz de salvar o mundo.
— Então você é do tipo de filhinha de papai que faz tudo que o papai pede?
— Pode-se dizer que sim — respondeu Ella, com um sorriso convencido de canto de boca.
— Já tem um tempo que não vejo seu pai — disse Mariah, acendendo um cigarro. — Mas sempre o considerei um homem honesto, determinado... e mortal. É difícil achar alguém com essas três características, sabia?
— É por isso que eu preciso da sua ajuda. Meu pai não quis revelar muita coisa, mas eu tenho um pressentimento de que ele está com perigos.
— Como falou com ele? Pelo Plano Espiritual?
— Sim. Como você sabe?
— Seu pai tá desaparecido tem uns anos. Você disse que conversou com ele, mas sente que ele está em perigo. Logo ele não está com você e o contato não é frequente. Já entrei no Plano Espiritual várias vezes, sei como funciona.
— Então, o que você me diz, vai me ajudar?
Mariah soltou a fumaça com um sorriso satisfeito.
— Você é bem mais capaz do que imaginei, pequena Murphy. Acessar o Plano Espiritual não é pra qualquer um. — Ela bateu a cinza do cigarro. — Muito bem, vamos?
— O quê? Agora? M-mas... como você tem certeza de que não estou mentindo? Como sabe se sou mesmo filha do Aslan?
— Porque só eu, o Marc e o próprio Aslan sabíamos disso. Agora, você também sabe. E quanto a você ser filha do Aslan, é meio óbvio para quem conheceu seus pais. Você é a cara da sua mãe, carrega a rapieira dela e usa o revólver do seu pai. São os pequenos detalhes que revelam a verdade.
— É, faz sentido.
Antes de sair, Mariah pegou um maço extra de cigarros, enfiando-o com naturalidade no sutiã.
— Você concorda com os ideais dessa comunidade? — indagou Ella, enquanto saíam em direção ao estábulo.
— Claro que não. Sou uma mestiça. Minha mãe era humana e meu pai, um primordial. Mas sinceramente? Não dou a mínima para o que eles acreditam. Aqui eu tenho um teto, comida quente, fumo meu... — Mariah foi interrompida por Ella, parando bruscamente.
— Espera! Aquele homem ali. E-eu conheço ele!
Ela apontou para um sujeito alto, branco, com um cabelo loiro penteado em um topete elegante para a esquerda. Vestia um uniforme militar preto, com as mangas dobradas, revelando um antebraço musculoso.
— Você o conhece?
— Sim! Eu vi uma foto dele num porta-retrato quando eu fui para um laboratório. Acho que era C1 da Ala Leste, algo assim. Mas eu não consigo lembrar o nome dele.
— John Kross — respondeu Mariah, com um olhar sombrio. — O americano, como o chamamos por aqui. Esse cara é barra pesada.
— E o que ele está fazendo aqui?
— Ele trabalha pro Kurt. Digamos que ele faz o serviço sujo que ninguém mais é capaz de fazer. E aquela mulher negra ao lado dele é o braço direito dele.
A mulher era imponente, media quase um metro e oitenta e cinco de altura. Com um físico excepcional e presença intimidadora, parecia realmente uma guerreira bárbara. Seus dreads ruivos pendiam até os ombros.
— Mas os Puracionistas não são... meio nazistas?
— Sim — disse Mariah, rindo. — Eles não gostam muito de negros não, mas a Natasha provou seu valor para o John. Isso foi o suficiente para os demais engolirem o orgulho deles.
Ella encarou John com desconfiança. Quando ele percebeu, ela desviou o olhar.
Mariah colocou a mão no ombro de Ella e aproximou seu rosto do dela.
— Não se meta com eles. Você não teria a menor chance contra nenhum dos dois. Nem mesmo eu teria.
— Eu sei do que ele é capaz, sei o que ele fez... ele não é uma boa pessoa.
— Ninguém aqui é uma boa pessoa, Ella. Ninguém.
Ella suspirou, encarando o fundo dos olhos de Mariah. Será que podia confiar nela?
— Vou buscar meu cavalo no estábulo. Você pode vir na garupa.
— Não. Precisaremos de dois cavalos, nós iremos a três.
— A três?
— Vou chamar um guarda da comunidade para nos escoltar.
— Mas isso é mesmo necessário? Acho que nós duas damos conta.
— Não questione o que eu faço. Apenas aceite e obedeça — cortou Mariah, séria.
Ela saiu e retornou em instantes, acompanhada por uma mulher alta e magra.
Cabelos negros, curtos até os ombros. Seu corpo era coberto por várias tatuagens. Carregava um fuzil Taurus T4, modificado para suportar munições de Rubrannium.
— Ella, essa é Susan — apresentou Mariah. — Susan, essa é Ella.
— Então você que é a Ella Murphy? É um prazer enorme — disse Susan, indo abraçar Ella.
Ella estranhou o gesto, mas correspondeu.
— Já conversei com a Tatiana. Ela autorizou nossa saída. Eu vou com meu cavalo, Susan você vem comigo. E Ella, nos siga.
— É... Mariah, posso conversar com você... a sós?
Mariah lançou um olhar para Susan. A soldada entendeu e se afastou sem uma palavra.
— Uma mulher magra? Essa é nossa escolta? Por que não um homem, tipo o próprio Kurt?
— Quanto machismo, Ella — provocou Mariah. — Não acha que uma mulher é capaz de proteger outras mulheres?
— Se for pra depender de armas e Vontade, nós duas somos experientes nisso. O que nos falta é força física, um homem compensaria isso. Temos Vontade, claro, nossa força é maior que a de um humano comum. Mas um homem com Vontade seria ainda mais poderoso.
Mariah colocou a mão no ombro de Ella e olhou no fundo dos seus olhos.
— Se me questionar de novo, eu irei abandonar essa missão. Tá me entendendo?
— Eu tenho experiência lá fora... só quero ter certeza da nossa segurança — murmurou Ella, abaixando a cabeça.
Mariah se inclinou até o ouvido dela e disse, num tom sério:
— Quando você ainda estava no saco do seu pai, eu já havia enfrentado horrores que você nem conseguiria imaginar. A minha decisão sempre será a melhor. Ponha isso na sua cabeça.
Ela se afastou, substituindo a severidade do seu olhar por um sorriso afável ao acenar para Susan voltar. A facilidade que alternava suas máscaras era inquietante.
Ella montou no seu cavalo, Atlas. Mariah e Susan montaram em outro. Os portões da comunidade foram abertos e as três partiram.
Mariah à frente, Susan na retaguarda, na garupa, e Ella entre elas sem saber para onde iriam.
Mas uma coisa era certa: teria que confiar em Mariah. Pelo menos por enquanto.
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