Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 1

Prólogo

“O mundo continuará existindo até que uma força exterior acabe com ele” – Newton, Isaac.

Em meio a uma forte nevasca, um homem de cabelos pretos como a noite empurrava uma carroça; nela, estava uma mulher loira, esbelta como um anjo. Carregava um bebê em sua barriga.

O homem parou a carroça e pegou um cantil de água. Ele estava tremendo de frio.

— Estamos quase chegando. Eu estou congelando, já te falei quão sortuda é? — disse ele.

— Já, um milhão de vezes. — Riu ela. — Eu queria poder te aquecer.

— O bebê... ele está bem?

— Sim, ele está chutando um pouco minha barriga. Ele está ansioso para ver como o mundo é.

— Deveríamos ter tido um filho mais cedo. Ele vai nascer numa época pior que a peste negra... — vociferou o homem.

— Já conversamos sobre isso, Aslan. Nós faremos de tudo para dar uma boa vida para ele, ou para ela — respondeu a mulher, acariciando sua barriga. — Eu sei que esse é um mundo cruel, mas é fácil odiar o mundo quando se está vivo. Dê a ele uma chance de ter suas próprias percepções sobre o mundo.

— Eu sei, Giulia, eu só... deixa pra lá.

Cessando a pausa, Aslan continuou empurrando a carroça.

Era uma jornada árdua; estavam subindo um relevo inclinado em direção ao topo de uma montanha que superava os mil metros. Já haviam subido oitocentos metros.

O topo da montanha era o destino principal. Ele era plano, como se tivesse sido cortado ao meio, com sua superfície coberta por rochas brancas de calcário, por isso, recebeu o nome de “Pináculo das Montanhas Brancas”.

Tornou-se um ponto turístico quando ainda existia sociedade, com isso, foi criado uma trilha que facilitava o acesso ao local e, também, casas e lojas no topo.

Aslan e Giulia poderiam criar seu bebê, que em breve nasceria, com a tão sonhada paz e segurança que almejavam.

Após a Calamidade Astral, a sociedade humana desabou, todos os governos foram extintos e o mundo que conhecíamos foi tomado pelo caos.

Antes do mundo ruir, Aslan e Giulia eram dois Águias, o mais alto grau de caçadores do Vazio, responsáveis por caçar e exterminar as temidas criaturas do Vazio, monstros que assolam a humanidade a séculos.

Ninguém sabe como surgiram e nem o que são propriamente, mas de uma coisa a humanidade tinha certeza: se não se defendessem, seriam extintos.

Mas o Vazio não era a pior ameaça existente. Algo pior surgiu, e ele, foi responsável por dizimar quase toda a humanidade.

Uma voz misteriosa, que surgiu do além, interrompeu a viagem do casal.

— Irmão... parece que nossos caminhos se cruzaram novamente.

Aslan e Giulia congelaram. A figura estava ofuscada pela neve, mas, mesmo sem saber quem era, eles reconheceram claramente aquela voz. Eles jamais poderiam esquecer...

Por mais que tentassem fugir do passado, ele persistia em não os deixar.

— JASON!!! — gritou Giulia com ódio, pegando sua espada que estava junto a ela na carroça e levantando-se bruscamente.

Aslan a segurou com muita força. Giulia era extremamente forte.

— Me larga, Aslan!

— Para, Giulia! Você está grávida, se controla! — gritou Aslan.

Jason andou em direção a eles, revelando seu corpo e rosto.

Era um homem esguio, pálido, esbelto e de cabelos brancos. Abaixo dos seus olhos, uma linha grossa, de cor vermelha, descia até o seu maxilar, como se seus olhos escorressem sangue.

Aquele era a marca de alguém que evocou o Eclipse.

Ele estava vestindo um conjunto de roupa de inverno.

— Eu... eu finalmente encontrei vocês. — Sorriu ele, amigavelmente.

Giulia ficou totalmente confusa. Ajoelhou-se na neve e começou a chorar.

— Por que... por que você de novo? — gritou a mulher, aos prantos na neve.

— Eu sei que vocês me odeiam, mas... — Jason foi interrompido por Aslan, antes que pudesse terminar o que iria dizer.

— Eu não te odeio. Não há um dia em que eu não pense o quanto errei com você

Jason foi surpreendido com sua resposta, esperava totalmente o contrário. Ele sorriu para Aslan.

— Soube o que aconteceu com a Giulia, eu sinto muito... Eu trouxe isso. — Jason pegou uma seringa do bolso do seu casaco e entregou a Aslan. — Vai atrasar a corrupção.

— Você foi até a Terra Prometida só pra pegar isso? — Aslan estava com uma expressão de surpresa.

— Sim, há um tempo atrás, quando soube que a Giulia foi corrompida. — Jason direcionou seu olhar para Giulia. — Sei que você nunca vai me perdoar, e nem deve. Só quero que saiba que me arrependo de tudo que fiz. Eu... eu estou tentando ser uma pessoa melhor.

Giulia secou suas lágrimas, levantou-se e postou-se do lado de Aslan.

— Você tem razão, eu não consigo te perdoar — afirmou Giulia. — No entanto, eu acredito que as pessoas podem mudar. Se você realmente estiver disposto a ser uma pessoa melhor, comece tentando mudar a si mesmo, mas pelo visto, você já começou errado...

A neve caia sobre a cabeça deles. Estava muito frio.

— Você notou que a infecção astral me pegou, não é? Você sempre foi a mais inteligente do nosso grupo, não é de se surpreender.

— Espera, o que?! Se você está infectado, como ainda consegue falar? — indagou Aslan, surpreso. — Quando os humanos são infectados, eles se tornam cascas vazias.

— Eu não fui infectado. Quando um Emissário morre, sua alma fica presa no seu corpo até que ele seja destruído. Você me enterrou, não se lembra?

— Então... está dizendo que ele pode trazer pessoas de volta?

— Eu recebi uma segunda chance, Aslan... Não importa quem foi, o que importa é que farei tudo diferente. — Sorriu Jason. — A seringa atrasará a corrupção por pelo menos sete anos, a Giulia terá tempo para parir e aproveitar seu filho.

— Jason... obrigado — respondeu Aslan, devolvendo o sorriso.

— Aqui eu me despeço, boa sorte na jornada de vocês — disse Jason, virando-se. — Quem sabe não nos reencontraremos no futuro. Hmph, agora eu tenho um mundo a mudar.

Giulia o encarou com um olhar melancólico, enquanto ele sumia em meio a neve.

Os três haviam um passado sombrio que se interligava. Quando ainda existia sociedade, eles pertenciam ao mesmo esquadrão de caçadores do Vazio.

Aslan, Jason e Giulia eram como irmãos, mas um incidente findou essa amizade, transformando-os em inimigos.

Mas isso foi há muito tempo atrás...

Treze anos se passaram.

Batidas ecoavam em um portão alto de uma muralha.

— Abram os portões! — gritou um homem.

Um homem empurrando uma carreta entrou apressadamente, logo em seguida dois homens fecharam os portões.

Na carreta tinha dois cadáveres.

— O que causou a morte deles? Saqueadores, terroristas, o Vazio? — perguntou Aslan, retirando o pano que cobria os cadáveres.

Quando Aslan terminou de retirar o pano, viu algo horripilante; os dois homens estavam totalmente pálidos, dos seus olhos, narizes, bocas e orelhas escorria uma gosma dourada.

Na cabeça de ambos havia um buraco de bala.

— Como isso aconteceu?... — indagou Aslan, num tom sombrio.

— E-eu não sei, eu achava que aquela área era tomada pelo Vazio, mas fomos surpreendidos por uma horda de erráticos. O Dylan os distraiu e eu acabei o perdendo, mas o Joe foi arranhado e infectou o William. Tive que mata-los, se não o próximo seria eu.

— Que merda... o território de Rubra tá sendo cada vez mais infectado, mas que porra está acontecendo com o Vazio?! — Aslan estava visivelmente estressado. — E você, está bem?

— Só alguns cortes, mas não fui infectado, graças a Deus.

— Certo, vai até a enfermaria, a gente cuida dos corpos.

Aslan e outros homens pegaram os dois corpos cobertos por um pano e levaram-nos até o cemitério da comunidade; cavaram duas covas e os enterraram.

Toda a comunidade se reuniu em volta das duas lápides. Aslan as encarava com um olhar vingativo.

Ver mais dos seus homens morrendo o causou revolta. Esse sentimento trouxe o “Lobo de Korsakov” de volta.

O Lobo de Korsakov era o Águia mais temido entre os Emissários, e o mais aclamado entre os caçadores do Vazio.

Ele ficou marcado na história como o primeiro e único caçador a derrotar Chaos, o temido imperador do Vazio.

Com o surgimento da infecção astral sob a Terra, ele desapareceu completamente do mapa. Histórias contam que ele morreu na queda do governo de Rubra, mas isso são só histórias.

A verdade é que o Lobo de Korsakov estava mais vivo do que nunca.

O caçador lendário é ninguém menos do que Aslan Murphy.

Ele abandonou sua antiga profissão e se isolou no topo das montanhas, junto da sua mulher, onde fundou a comunidade do Pináculo das Montanhas Brancas, acolhendo todos os sobreviventes de boa índole.

Após o enterro dos seus homens, Aslan retornou a sua casa. Era uma noite fria e melancólica.

Dentro da casa, um lar um tanto quanto aconchegante, um garoto colocava lenhas em uma lareira. Aquele era seu filho, Ethan.

Ele não era o bebê que Giulia carregava, era o filho de um antigo amigo, que morreu pelo Vazio. Aslan o acolheu como seu filho desde então.

O bebê, na realidade, era uma garota. Seu nome era Ella, bela como uma noite estrelada, branca, de cabelos dourados e com olhos verdes, puxando os da sua mãe. Ela estava na cozinha, preparando o jantar.

Mesmo num mundo apocalíptico, Aslan conseguiu fornecer uma vida de paz e segurança aos seus filhos. As coisas dentro da comunidade funcionavam, mas essa pacificidade acabaria um dia.

Jantar posto na mesa, os três se sentaram e começaram a comer.

Aslan, com dor no peito, disse aos seus filhos que teria que ir para Rubra, não para uma busca de suprimentos, ou uma missão de reconhecimento, mas sim para enfrentar o mal que dizimou a humanidade, Rithan, o portador da infecção astral.

Eles contestaram e discutiram com seu pai, mas de nada adiantaria, ele já estava decidido.

No fundo, estava fazendo aquilo para garantir que seus filhos tivessem um futuro digno. Mesmo que fosse preciso abandoná-los por um tempo, tudo isso era em prol deles.

No dia seguinte, Aslan arrumou sua mochila com todos os suprimentos que ele precisava.

Pela primeira vez em muitos anos, ele vestiu novamente seu uniforme de Águia.

Com sua bainha em sua cintura, carregando sua lendária katana dourada, ele estava finalmente pronto para partir.

Aquele era um dia melancólico para todos, especialmente para os Murphy. Ella não parava de chorar.

Após a morte de sua mãe ela se apegou muito ao seu pai, ter que se despedir dele tão rapidamente era doloroso.

Felizmente, Ella não ficaria sozinha, ainda tinha seu irmão mais velho, Ethan, para apoiá-la no que precisasse.

Antes de se despedir de seus filhos, Aslan teve uma conversa com eles.

— Eu prometo que não vai demorar, tá? Quando vocês menos perceberem, já vou estar de volta e tudo isso vai ter acabado, tá bom, minha princesa? — disse Aslan, abraçando os dois e secando as lágrimas de Ella.

— Você promete mesmo que vai voltar, pai? — choramingou Ella.

— Eu prometo, é claro que prometo, meu bem. — Aslan fez carinho em sua cabeça. — Enquanto eu estiver fora, me prometam que irão proteger um ao outro, a partir de agora, o vínculo de irmãos será o mais importante para vocês.

— Eu vou proteger a Ella, pai, eu prometo.

— Mas pai, por que você que tem que ir, porque não outra pessoa? Isso não é justo, você já foi um caçador por muito tempo

— Ella... não existe mais ninguém que possa fazer isso. Sabe, nós, os Primordiais, nascemos com um dom especial. Nós nascemos fortes, Deus queria que nascêssemos assim. Os fortes devem proteger os fracos, entende? Você, o Ethan, vocês são fortes, mais fortes do que qualquer um que está aqui nessa comunidade, o dever de vocês, o nosso dever, é protegê-los.

— Eu sei, mas...

— Ella, quando você duvidar do que estou falando, então siga o que sua mãe te ensinou. Apenas faça a coisa certa.

Ella aceitou o discurso de seu pai, mas Ethan não. Ele era um bom garoto, mas nunca acreditou que os mais fortes devem proteger os mais fracos.

— Pai, se você não voltar até ano que vem, eu juro por tudo que é mais importante, eu irei atrás de você — exclamou Ethan, sério.

— Eu sei que vai. — Riu Aslan. — Você sempre foi teimoso.

Aslan finalizou abraçando os dois.

Ao se despedir de seus filhos, Aslan tentou manter sua postura de confiança até o final.

Ele não queria demonstrar às suas crianças o que estava sentindo. No entanto, ao virar e sair andando para fora da comunidade, não conseguiu conter suas emoções.

Começou a chorar e uma expressão de angústia tomou conta de seu rosto.

Ele estava com tanto medo. Medo de falhar, medo de nunca mais ver seus filhos novamente. No fundo, ainda era um humano.

20 de janeiro de 3022.

Um ano se passou após a partida de Aslan, desde então, não houve mais notícias dele.

A liderança da comunidade foi passada para Ethan, seu filho mais velho, no entanto, ele estava tendo dificuldades em lidar com o fardo de ser o novo líder.

Tantas vidas dependiam de suas escolhas, era um peso muito grande para sua mente fraca. Ethan estava decidido a adentrar nas Ruínas de Rubra para procurar seu pai.

Sentado em uma mesa, estava Ethan, segurando com suas mãos uma caneca de café. Sua expressão denotava um cansaço e desgosto extremo. Do outro lado da mesa, estava um homem alto e barbudo.

— Então é isso, irá renunciar a sua liderança? Tem certeza disso? — disse o homem barbudo. — Foi seu pai quem te escolheu para ser líder. Ele acreditava que você era o mais capaz.

— Sim. Eu tenho certeza.

— Posso ao menos saber o porquê?

— Eu preciso saber o que aconteceu com o meu pai… — respondeu Ethan, tomando um pouco do café.

— Entendo… mas e sua irmã, vai simplesmente abandoná-la?

— Não se preocupe com a Ella, ela também não ficará muito tempo aqui. Ela é forte demais para ficar presa nessas muralhas, presa como um pássaro em uma gaiola.

— Ela nasceu como uma águia — afirmou Ethan, olhando Ella pela janela. — Uma águia que sempre almejou voar livre pelos céus.

O homem encarou Ethan com um olhar sério, mas prosseguiu.

— Só preciso que assine aqui, Ethan — disse o homem, entregando-lhe um papel.

— Cuide deles assim como meu pai cuidou. — Ethan assinou o papel de transferência de liderança.

Por mais que fosse um mundo desregrado, Aslan fez questão de tornar sua comunidade o mais democrática possível.

— Pode deixar. Cuidarei da sua irmã como se fosse minha filha.

Ambos se levantaram e deram um aperto de mão. Eles se retiraram da sala em seguida.

Ella veio correndo na direção de Ethan com um sorriso entusiasmado em seu rosto.

— O que vocês estavam conversando lá dentro?

— Sylvaro é o novo líder da comunidade. Eu irei embora.

A expressão entusiasmada de Ella em segundos se transformou em decepção.

Novamente, mais uma pessoa importante para Ella a deixaria. A garota clamou para ir com seu irmão. No entanto, ele friamente recusou, usando duras palavras:

— Não tem porque você vir comigo. Você não é forte o suficiente, continue treinando até que não se restrinja a nenhum limite, e, mesmo assim, você ainda não estará pronta para ir até Rubra. Seu psicológico é fraco e você é uma garota muito bondosa. Você só me atrapalharia. Eu preciso ir, Ella, isso está me consumindo de dentro para fora, eu preciso... eu preciso descobrir o que aconteceu com nosso pai — disse Ethan, expressando tudo o que estava sentindo em suas palavras.

Ella o olhou tristemente, mas em segundos seu olhar se transformou em um sorriso.

— Me promete que não irá morrer até nos encontrarmos novamente em Rubra. Eu te amo muito, Ethan — disse Ella de forma doce, enquanto abraçava seu irmão.

Mesmo segurando, ele não conseguiu conter suas lágrimas.

Após a despedida de Ethan, a liderança do Pináculo das Montanhas Brancas foi passada para Sylvaro, um antigo amigo de Aslan. Mesmo ele sendo o atual líder, não conseguiu garantir com que a comunidade prosperasse novamente.

Ella percebeu o destino que todos ali estavam fadados. As duras palavras que seu irmão disse antes de partir a motivava diariamente.

Ela treinava todos os dias, debaixo das chuvas congelantes, ou do sol escaldante, estando doente ou saudável, nunca deixou de treinar um único dia. Precisava superar seus limites, para que, quando fizesse dezoito anos, estivesse mais forte do que nunca.

Após quatro longos anos de espera, finalmente chegou o dia pelo qual tanto ansiava: estava preparada para ir até as Ruínas de Rubra. Ou, ao menos, era isso que acreditava.

Quando o portão das muralhas foi aberto, Ella pôde sentir a brisa do vento tocar seu rosto e balançar seus longos cabelos loiros. Essa era a liberdade que sempre almejou.

No entanto, à medida que se aproximava das ruínas, Ella começou a sentir um frio percorrer sua espinha. Ela sabia que estava pisando em solo sagrado, onde lendas antigas e segredos proibidos estavam enterrados há décadas.

Será que ela realmente estava pronta para enfrentar o desconhecido e descobrir o que se escondia nas profundezas das ruínas?

Com um suspiro profundo, Ella sacudiu a cabeça para afastar as dúvidas. Ela tinha treinado e se preparado diligentemente para esse momento e nada a impediria de prosseguir.

Com a determinação renovada, ela avançou em direção às ruínas, pronta para enfrentar o que quer que aparecesse em seu caminho.



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