Murphy Brasileira

Autor(a): Otavio Ramos


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 13: Paz em Meio ao Ódio

Lá estavam os membros de Astael, intactos, como se jamais tivessem sido atingidos. O poder do Vazio era verdadeiramente extraordinário.

Ele colocou Kiyoko suavemente no chão e preparou-se para enfrentar Ella. Não se importava mais com seu corpo, movia-se unicamente pelo desejo de defender seu orgulho.

Uma atitude nada surpreendente vindo de uma criatura do Vazio.

Astael iniciou o ataque lançando estacas de raios do Vazio em direção à Ella, mas a garota desviava habilmente de cada um, mesmo estando com a perna ferida.

Solaris Lunge! — gritou Ella, intensamente.

Uma poderosa técnica que ela aprendeu com sua mãe.

Se consiste em um avanço solar, canalizando toda a força das chamas de sua vontade para ganhar impulso e desferir um ataque pesado, quase como uma estocada flamejante.

Astael defendeu-se com vigor, mas ao custo de ter sua espada quebrada; revelando sua fragilidade diante da força da vontade de sua oponente. No fim, não era forjada com o raro Rubrannium.

Ella percebeu a aflição em sua expressão e um sorriso de satisfação surgiu em seu rosto.

A criatura rapidamente formou uma mão de matéria do Vazio a partir do chão, tentando esmagá-la, mas Ella habilmente desviou para a direita.

Numa tentativa desesperada pela vitória, Astael mergulhou em uma poça do Vazio, desaparecendo da arena.

O que Ella não percebeu naquele momento, foi que ele havia criado outra poça para Kiyoko também.

Então, uma poça negra se formou no topo do Coliseu.

Astael era capaz de fazer isso o tempo todo? Não importava mais, Ella estava concentrada apenas nele.

Sem desviar o olhar do chão da arena, esperando com que Astael emergisse, ela não percebeu a poça se formando acima de sua cabeça.

Da poça acima dela, como se emergisse das sombras, Kiyoko surgiu com sua espada em mãos.

Antes que Ella pudesse reagir, Kiyoko já estava sobre suas costas, com sua lâmina frente a sua garganta, tentando rasga-la a todo custo.

Instintivamente, Ella agarrou a lâmina com toda sua força que tinha, suportando a dor aguda e dilacerante que se espalhava por suas mãos.

Kiyoko lutava com as últimas forças que lhe restava para empurrar a lâmina contra a garganta da Ella. Cada movimento era uma batalha desesperada pela vida.

A palma da mão de Ella estava sendo rasgada pela lâmina, jorrando sangue incessantemente.

Ella reuniu toda sua força para direcionar a lâmina para o lado, mas isso teve um custo enorme; seus dedos mindinho e anelar da mão esquerda foram decepados de uma vez.

Ella sentiu a pior dor de sua vida, sua mão ardia e latejava intensamente, uma dor excruciante tomou conta dela, enquanto jorrava sangue incontrolavelmente.

— Aaaaaaah, sua vadia miserável — gritou Ella, puxando Kiyoko de suas costas e arremessando-a violentamente no chão. — Porra, que dor!!!

Ella se enfureceu ainda mais com a luta.

Astael emergiu de uma poça do chão e saltou em direção a Ella com suas garras afiadíssimas. No entanto, foi repelido fortemente pela rapieira de Ella, sendo arremessado para longe com uma força tremenda.

A adrenalina e o ódio daquele momento pulsavam dentro dela, infundindo-a uma força extrema que transcendia todos os seus limites.

Ela correu determinada para finalizar Kiyoko. Enquanto Astael percebia sua investida, ele avançou ferozmente em sua direção. No entanto, era justamente isso que Ella havia planejado.

Ella conjurou a técnica Solaris Lunge novamente e, como um raio, investiu contra o abdômen de Astael.

Seu golpe o perfurou com precisão, atravessando-o e parando em seu estômago.

O interior do corpo de Astael era frio como uma nevasca e apertado como uma caverna estreita.

O ácido de seu estômago borbulhava abaixo dos pés de Ella, com sua rapieira em chamas, ela persistia em escalar as paredes de sua barriga.

Era uma visão brutal, testemunhar Ella agindo como um parasita, matando-o de dentro pra fora.

As chamas consumiam todo seu busto, espalhando-se para suas pernas e pescoço.

A plateia ficou aterrorizada ao presenciar uma rapieira em chamas emergindo do olho de Astael, rasgando tudo a sua volta. Ella emergiu de seu olho, toda coberta de sangue, uma imagem que causava repulsa até mesmo nos mais corajosos.

O nojo estava estampado em sua face, mas o seu ódio era maior.

Os rugidos de dor de Astael ecoavam pela arena, enquanto Kiyoko, com sua perna decepada, tudo que pôde fazer foi assistir horrorizada.

Astael, mesmo envolto em chamas, ainda permaneceu de pé.

Com um impulso, Ella saltou com sua rapieira ardendo em chamas, e com um golpe preciso, decepou sua cabeça brutalmente.

Esse era o ódio de um Murphy.

Sua enorme cabeça caiu no chão e rolou até parar diante de Kiyoko, desintegrando-se lentamente.

Astael, com suas últimas forças, disse suas últimas palavras com dificuldade.

— Esse não é... o fim, Ella... — sua voz ecoou em um sussurro enfraquecido. — Eu vou... voltar...

Por fim, diante dos olhos atônitos dos presentes, todo o restante do seu corpo desintegrou-se por completo, dissolvendo-se na atmosfera.

Os humanos na plateia irromperam em gritos animados diante da eminente vitória de Ella, enquanto as criaturas do Vazio permaneceram chocadas em silêncio.

Coberta da cabeça aos pés por sangue roxo, Ella caminhou em direção à Kiyoko.

Com sua rapieira reluzindo na mão e um olhar sanguinário, Kiyoko sabia o destino que a aguardava.

— Espera! — clamou Kiyoko. — Por favor…

— Depois de tudo o que você fez pra mim, não vai me pedir pra te poupar, né? — respondeu Ella, rispidamente.

Seus olhos flamejantes resplandeciam em meio ao seu rosto ensanguentado. O medo, como um veneno lento, corroía Kiyoko por dentro.

— Droga… eu não quero morrer — disse Kiyoko, começando a chorar.

— Que situação patética. Você realmente faz de tudo pra sobreviver, até mesmo se humilhar para quem você traiu. Para ser sincera, alguma coisa daquela história que você me contou era verdadeira?

— Tudo que eu contei pra você era verdade, e-eu juro! — Kiyoko ajoelhou-se perante Ella.

— Me diga, Kiyoko, você perdeu seus pais para o Vazio, treinou a vida inteira para ser uma caçadora. Por que, por que virar um deles? — indagou Ella, agachando-se

— Eu nunca quis nada disso, Ella, e-eu não tive opção — As lágrimas de Kiyoko deslizavam rapidamente pela sua face — Meu irmão e eu fomos encurralados pelo Chaos, lutamos até o final, mas era óbvio que perderíamos. Chaos decidiu usar meu corpo como um receptáculo para dar vida a Astael, quando ele nascesse, me mataria para que ele pudesse reencarnar em seu corpo original. Mas meu irmão… ele fez um trato com o Chaos, se tornaria um Emissário se eu ficasse viva. Ele fez de tudo para me proteger, até mesmo abrir mão de sua humanidade.

Ter descoberto toda a verdade sobre Kiyoko fez Ella repensar.

No fim, compreendeu que assim como ela, Kiyoko era a vítima da situação.

Seu ódio cessou e Ella passou a enxergar a garota não mais como uma inimiga, mas como sua amiga novamente, ainda que o destino dela fosse trágico.

Mesmo após perder dois dedos, Ella a perdoou por tudo que fez.

Com um suspiro, ela fechou os olhos, aceitando o peso das circunstâncias.

— Que merda. Eu sinto muito, Kiyoko… — Ella fitou-a com um olhar de pena, agora mais calma do que antes. — Você entende o que precisa acontecer, não é? Uma de nós tem que morrer.

Kiyoko permaneceu em silêncio, com um olhar melancólico.

— Todo esse sofrimento vai acabar, Kiyoko, eu prometo. Feche seus olhos e farei isso da maneira mais indolor possível — assegurou Ella, se levantando.

— Espera! Por favor, Ella, há um último desejo que quero que realize por mim.

— Claro, se estiver ao meu alcance. — Ella, se agachou novamente.

— Por favor, quando encontrar o meu irmão, sei que um dia o encontrará. Entregue essa carta para ele — Kiyoko puxou uma carta do bolso do seu casaco, ela estava um pouco ensanguentada, da recém luta que tiveram. — Eu não o vejo há anos, Chaos não me permite visita-lo, então escrevi isso. É tudo que te peço.

— Vou entregar, eu prometo — disse Ella, sorrindo reconfortantemente — Antes de partir, quero que saiba que eu te perdoo. Por mais que tenha me traído, você não é a verdadeira culpada. Deixei o meu ódio tomar conta de mim e fiz tudo que fiz. Mas eu não sou aquilo que você viu na arena. Eu sou… eu sou uma boa pessoa.

A expressão de Ella era de confusão; sua natureza estava em constante dualidade.

Embora fosse consumida por um intenso ódio, uma parte dela ansiava em seguir os ensinamentos de sua mãe, um caminho de paz e amor.

Contudo, ela sabia que ser gentil naquele mundo brutal era uma característica dos fracos.

— Ella… por que essa mudança tão repentina? — perguntou Kiyoko, com os olhos em lágrimas.

— Me parece ilógico continuar te odiando mesmo sabendo que seu corpo foi usado pelo Chaos. Mas eu gostaria de saber, o que você ganharia se me derrotasse?

— Chaos me prometeu que se eu te vencesse, eu poderia viver ao lado do meu irmão novamente. Isso é tudo que eu sempre quis na minha vida. Nunca quis te trair, mas o meu irmão é minha única família. Espero que entenda...

— Ele vai pagar por tudo isso, eu prometo.

A plateia inteira ficou em silêncio.

Aquela Ella emotiva contrariava a Ella sanguinária que haviam visto anteriormente.

A rapidez com que sua personalidade mudou intrigava a todos.

Enquanto ouvia a história de Kiyoko, Ella lembrou das palavras da sua falecida mãe, revivendo memórias vívidas que se desenrolavam como um filme em sua mente.

As duas estavam sentadas no topo da montanha, do lado de fora do Pináculo das Montanhas Brancas.

Aquele era um dos raros dias em que os portões das muralhas estavam abertos. Juntas, contemplavam a paisagem de Rubra.

— É lindo, não é? — disse Giulia, com seus longos cabelos loiros balançando ao vento.

— Mal posso esperar para explorar esse lugar, imagina quantos mistérios ele não deve esconder, mamãe! — exclamou Ella, cheia de entusiasmo.

— Lá é um lugar muito perigoso, filha. Mesmo quando você for mais velha, seu pai e eu não queremos que você vá pra lá. É mais seguro ficar aqui em casa.

— Mas por que é tão perigoso mamãe? O que há de tão ruim lá? — perguntou Ella, inocentemente, buscando entender.

Giulia suspirou profundamente, seu olhar tornando-se penetrante, como se uma torrente de lembranças terríveis a invadisse de uma vez.

— Rubra... Rubra é um lugar amaldiçoado, entende, Ella? Lá não há regras, compaixão, nem amor pelo próximo, é diferente daqui na comunidade onde todos nos ajudamos. Lá, cada um sobrevive da forma que pode e se for preciso, eles matarão qualquer um sem o mínimo ressentimento.

— Além disso, é lá onde Chaos e seu bando habitam. Não devemos nos envolver com eles, não novamente — complementou Giulia.

— Aqueles malditos cuzões! Alguém tem que matar todos eles urgentemente! — falou Ella, determinada.

Giulia riu com o palavreado de sua filha e lhe deu sermão.

— Ei, mocinha, que boca suja é essa?! E sabe, acho que você está grandinha para falarmos sobre algo que vem me incomodando. Me responde, você os odeia? Aqueles humanos e criaturas malignas que estão em Rubra?

Ella ficou pensativa com a pergunta de sua mãe, mas logo respondeu convicta de sua razão.

— Claro que sim! Pessoas más merecem morrer.

— Ella, senta aqui no colo da mamãe — pediu Giulia, colocando sua filha em seu colo.

— Lembra quando seu pai te contou toda a história dos Murphy, não é? E da maldição que vocês carregam.

Ella concordou com a cabeça, então sua mãe continuou.

— Eu tenho medo que você sucumba ao ódio. Sabe, existem pessoas horríveis nesse mundo, inimigos que não são convencidos com palavras, mas não devemos nutrir ódio por eles; precisamos compreendê-los. Todo ser que é mau neste mundo possui um motivo. Isso não significa que devemos poupá-los, mas sim que devemos entendê-los e, eventualmente, perdoá-los. Eles passaram por experiências tão dolorosas que perderam a fé na bondade e decidiram trilhar o caminho sombrio. Nosso Deus não gostaria de ver você matando pessoas enquanto estivesse consumida pela ira.

— Mas mamãe, e se as pessoas e criaturas más quiserem me fazer mal, o que eu faço? E-eu não quero desapontar o papai do céu, mas também não quero me machucar.

— O papai do céu entenderia se você matasse alguém pra se defender. Ele sabe da sua índole e sabe que você jamais faria mal a um inocente. Nosso Deus é um Deus justo — disse Giulia, fazendo cafuné em Ella.

— Mas mãe, o papai disse que nesse mundo, o ódio é inevitável e que, se for preciso, eu deveria usá-lo ao meu favor — retorquiu Ella, com a resposta na ponta da língua.

— O ódio é um veneno que nos corrói, é a linha que acaba com a humanidade e dá espaço à bestialidade, Ella. Como podemos fazer o bem se estamos cegados pela ira? Esse é o ponto, você tem que controlar o seu ódio antes que ele se torne incontrolável. Não estarei aqui para sempre para te proteger. Nem para proteger você dos outros.

A garota permaneceu em silêncio.

— Filha, depois de tudo que conversamos, só peço uma coisa: me prometa que você fará o bem sempre que puder, pode me prometer isso? — pediu Giulia, abraçando Ella.

Ella respondeu alegremente:

— Eu prometo mamãe, e também, vou sempre proteger os mais fracos, assim como o papai!

As duas se abraçaram calorosamente. Giulia sabia que tinha pouco tempo restante com sua filha e aproveitou para transmitir uma valiosa lição que ficaria em sua mente para sempre.

Ella tentava a todo custo seguir os conselhos de sua mãe, mas o ódio na maioria das situações prevalecia.

Nesses momentos, as palavras de seu pai ressoavam em sua mente. “Quando mais nada puder ser feito, use o ódio ao seu favor. Isso te tornará imparável. “.

Semelhante as palavras de um assassino, foi o que Aslan ensinou a Ella quando a garota tinha apenas seis anos.

Uma criação peculiar que a tornou em uma exímia caçadora.

As curtas memórias afetivas de Ella se encerraram e seus olhos se encontraram com os de Kiyoko, a olhando com um olhar mais calmo do que antes.

“Em toda minha vida, será que eu realmente fiz o bem a alguém? Eu ao menos… protegi os mais fracos? Agora eu compreendo o que minha mãe quis me dizer, estou entrando num abismo onde nunca mais poderei ver a luz novamente. Nem sequer sei o nome das pessoas que eu matei. É realmente isso que quero para minha vida?”, refletiu Ella, olhando melancolicamente para Kiyoko.

Ella sentiu uma reconciliação entre as duas, um entendimento silencioso que envolveu suas almas.

A garota sorriu de maneira reconfortante, sabendo que esta seria a melhor morte que Kiyoko poderia ter.

Uma morte indolor e pacífica, cessando seu sofrimento nesse mundo caótico.

— Descanse em paz, Kiyoko — falou Ella, serenamente.

— Obrigada, Ella… — respondeu Kiyoko, baixando o olhar.

Quando Ella ergueu sua rapieira para decapitar Kiyoko, uma estranha hemorragia começou a jorrar de todos os orifícios de Kiyoko, principalmente dos seus olhos.

— Ella... o que está acontec... — Antes que Kiyoko pudesse terminar sua frase, sua cabeça repentinamente explodiu.

Ella desviou para trás institivamente; o sangue de Kiyoko voou em seu rosto.

Um silêncio pesado pairou sobre todos, inclusive sobre Ella, que permanecia em choque. O corpo de Kiyoko tombou morto no chão.

— Kiyoko?... — disse Ella, com a voz trêmula.

O apresentador aproximou-se de Ella.

— Acabou... — sussurrou ele. — Chaos estava insatisfeito com ela há tempos, ele queria fazer isso com as próprias mãos.

— Mas...

— Não sei o quão grande era sua conexão com Kiyoko, mas apenas esqueça que ela existiu. Vá viver sua vida. Escute o que estou falando — disse ele, num tom sério.

O anunciador voltando ao seu estado de emoção padrão, ergueu a mão de Ella e gritou euforicamente.

— Senhoras e senhores, a campeã da sétima rodada e deste torneio é… Ella Murphy!!!

Ella forçou um sorriso. Todos os humanos na plateia se levantaram e a aplaudiram entusiasmadamente.

Aquela de fato era a filha de Aslan Murphy, seu reconhecimento estava vindo de pouco a pouco.

O Vendedor Viajante a olhou com um sorriso orgulhoso. Ella retribuiu seu sorriso.

Ao termino da batalha, ela cessou a concentração da vontade em seus olhos e uma exaustão súbita se espalhou por todo seu corpo. Estava tão cansada que mal conseguia articular palavras.

— Agora… o meu prêmio — falou Ella, dirigindo-se ao apresentador.

— Claro, claro. Me acompanhe.

Foi uma longa e árdua batalha, mas o triunfo foi de Ella.

Agora, a superfície parecia estar mais perto do que nunca. Mesmo estando exausta, sentiu-se animada em saber que em breve sairia daquela cidade subterrânea que tanto a sufocava.



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