Volume 1
Capítulo VI: “Zumbido”
“O mal anda pela terra, ele não se esconde. Nunca precisou tal coisa, as pessoas insistem em fechar os olhos para ele. As pessoas são ruins por causa do mundo, ou o mundo é ruim por causa das pessoas?
No fim, pouco importa. O mal e o bem não passam de marketing de perfume barato!”
***
Naquela manhã uma criança conheceu o mundo, pode enfim contemplar a vida. Em uma cabana pobre, uma moça gritava com as dores do parto, infelizmente, ela não conseguiu segurar sua criança em seus braços, nem sequer vê-la pela primeira e última vez.
“Eram tempos difíceis no vilarejo em que nasci. Há dias aquela pobre moça não comia nada, e como era de se esperar, não teve forças para me segurar nos braços. Me pergunto se caso ela ainda estivesse viva depois que nasci, como as coisas seriam…
Quando completei 4 anos, meu pai me vendeu por um pedaço de pão mofado e uma tigela de mingau de aveia, frio. Não o culpo, também teria feito o mesmo, teria feito o tanto de vezes que fosse preciso para me manter de pé mais um dia. Teria até aceito só o pedaço de pão e nada mais, se fosse preciso.
Novamente, o comerciante de escravos me vendou por 12 moedas de prata a um nobre gordo e imundo. Para minha sorte ou azar, aquele verme maldito amou meu corpo, e assim me fez trabalhar longe da vista de todos, esperando que quando eu completasse a maioridade, me tornace uma de suas concubinas.
Porco nojento, verme asqueroso, lixo, todos lixos! Malditos hipócritas, vendem sua família, compram pessoas por migalhas, e as usam como querem.
Meu corpo não era mais meu, minha vida não era minha, até mesmo meus pensamentos passaram a ser controlados… eu… eu…”
— Então estava aqui esse tempo todo?
Disse o garoto se aproximando de um muro de pedras e musgos. Ele encarou ela a qual parecia hipnotizada com a vista do horizonte.
— O que foi? O que você está olhando?
Perguntou novamente o garotinho, ele tinha cabelos marrons e pele morena. Uma briza suave pairou por seus fios dourados, seu cabelo era lindo, embora o olhar dela fosse distante.
— As vezes eu queria que você me respondesse! É chato ficar falando sozinho… mas você talvez nem fale, soube que tem pessoas que nascem com esses problemas. O pessoal diz que é por que a família fez algum pecado contra os deuses, então as crianças dessa família nascem com deformidades ou maldições.
Ela nem sequer o encarava de volta, apenas contemplava a beleza em sua frente, sendo tomada por aquela sensação momentânea de liberdade. Foi quando olhando para trás o percebeu, seu amigo o qual se encostava ao muro, e se perdia aos poucos em pensamentos.
Ele estava com uma expressão triste, por vez, ela estende a mão para que ele também conseguisse subir até onde ela.
— Cof-Cof… Não precisa! Estou bem aqui desse lado. — Tentou um sorriso forçado.
“Eu vi o olhar ao qual ele dava, e o ofereci meu olhar mais gentil. Embora ele tenha me respondido abaixando a cabeça e saindo com um olhar irritado. Foi aí que eu entendi, embora meus olhos demonstrassem compaixão, ninguém naquele lugar imundo saberia o significado de tal palavra, muito menos o conhecimento de sua existência.”
Estava ela, alimentando os animais do estábulo, parecia contente de certo modo. Seu amigo correu até sua presença, a surpreendendo com uma folha de papel. Ela a pegando em mãos, percebe a caligrafia borrada escrita com carvão às pressas.
“Os soldados da igreja vão nos ajudar.”
Ela encarou o garoto que por vez a abraçou muito feliz. Em seu momento de empolgação agarrou-na, a levantando e girando-a no ar. Por um momento se espantou, mas logo foi tomada pela mesma alegria com a qual o garoto a contagiava.
— Eles estão vindo nos resgatar! Vamos ser livres, livres!!
Ela por vez sorriu com ele, os dois pareciam felizes, pela primeira vez experimentavam a esperança. Um sentimento ao qual parecia os embriagar, dando forças que nem sabiam que possuíam.
Ela o encarou, ele por vez abriu ainda mais seu sorriso. Vida, felicidade, liberdade e esperança, foi o que ele viu em seus olhos brilhantes.
***
— Pirralha maldita! Achou que ia fugir de mimm?!
Disse chutando-a na pilha de corpos. Abrindo seus olhos e dando de cara com os corpos, a garota em choque recuou para trás esbarrando nas pernas de um dos homens. Que a agarrou pelo cabelo a levantando, ela tentava se soltar, lutava, mas seus esforços eram em vão.
***
O garoto corria com ela naquela noite. Pulando o mesmo muro que tantas vezes escalaram para ver o pôr do sol. E enfim, correram pelo campo, que tantas vezes sonhoram em estar, livres e sem medo.
Mas, ela tinha dificuldade em acompanhá-lo, não era rápida como ele. Ficando assim, cada vez mais para trás, sentindo como se as correntes da escravidão ainda agarracem suas pernas, deixando-as cada vez mais pesadas.
A cada passo que dava, mais sentia o peso, mais se distanciava dele, mais longe da liberdade ficava.
Ele, por outro lado. Correu como o vento, sua respiração estava irregular e suava muito, mas nada o pararia ali. Ele não deixaria, não suportaria que tirassem sua liberdade novamente, então, correu, correu com tudo de si, correu sem olhar para trás.
Parecia que o menino preso do outro lado do muro, agora do lado de fora, só podia encarar a liberdade mais a frente. Ela por vez, que antes sonhava em fugir e ir adiante do muro, agora do lado de fora, olhava para trás assustada, encarando sua prisão.
Os guardas começaram a sair pelo portão, vindo em sua direção, fortemente armados. Um homem gordo e de avental nobre, saiu para fora, gritando e esperneando:
— Você! Minha propriedade!! Minha!! Minha!! Minhaa!!!
Ela parou, estagnou, seu corpo não a respondia. Embora, sua mente ainda lúcida não queria aceitar, não queria voltar, queria sim, ser livre.
“Não… Não… Se mexe. Se mexe. Vamos! Se mexe!!”
Foi quando sentiu algo agarrar seu braço, ele agora a puxava. Os dois seguiam aquele caminho juntos, os dois agora olhavam adiante, e viam a mesma liberdade que sorria para ambos.
***
— Sua pirralha maldita!!
Disse jogando-a no chão com brutalidade. Encaravam ela com um ódio mortal, ao qual ela não entendia o motivo.
— Senhor… que tal a gente se divertir com ela de outra forma? — disse um dos soldados com um sorriso sínico.
— E o que sugere Escudeiro?
— Já vão fazer dias que não vejo uma mulher! E eu sei que não sou apenas eu… Somos homens, sabe? Temos necessidades.
— Diga de uma vez.
— Então… Que tal aproveitarmos o momento? Que tal… Nos divertimos de verdade?
Os três se encararam por um momento, logo se virando para ela, com aqueles olhares asquerosos. O mesmo olhar doente de abutres para com um cadáver pútrido.
Olharam ela dos pés à cabeça, enquanto lambiam os lábios abrindo sorrisos maliciosos. Ela então pode notar o olhar ao qual conhecia tão bem, o olhar ao qual ela tentou escapar durante toda sua vida.
O homem agarrou suas vestes, as rasgando com um simples movimento. A garota mais uma vez caiu ao chão, porém, desta vez se encolhendo enquanto lágrimas escapavam de seus olhos, tentando desesperadamente se cobrir com suas mãos pequenas. Tentava esconder sua nudez, tentava se guardar do mal
— Persistente ela… Né senhor?
— Hmp, não por muito tempo.
O homem como uma besta selvagem subiu para cima dela, a segurando pelos braços. Ela era obrigada a encará-lo cara a cara:
— Calma docinho… Vai ser rápido… E prometo que não vai doer!
Disse lambendo seu pescoço, e embora ela lutasse com tudo de si para escapar dele, não conseguia, pois o homem era forte demais. Foi então que um dos homens ao qual observava, percebeu algo, e gritou um pouco incrédulo quanto ao que via:
— U-U-Um m-menino?! Ela é um menino?!
O homem que a segurava, um pouco confuso, solta um de seus braços. A dando a oportunidade de agarrar uma pedra ao chão, a qual o acertou em cheio em sua cabeça. Com o golpe repentino, o homem a soltou recuando para trás, segurando e pressionando contra o ferimento em sua cabeça a qual começara a sangrar.
— Drids e Cobaltos!! Maldito!! Maldito!! Bastardo malditooo!!! Vou matar você seu verme imundo! Vou matar você!!
O garoto assustado correu se encostando na pilha de corpos, ele então pegou um punhal fincado na garganta de um dos cadáveres. Apontava a arma para eles com uma expressão assustada, mas seria em seu semblante, a qual fez os homens ficarem sérios também.
— Que pena… Não era uma garota, mas sim um garoto imundo! — disse o escudeiro cuspindo no chão.
— O que vamos fazer agora, senhor?
— Não é óbvio?! Matem esse bastardo! Matem esse rato!! Matem esse maldito!!!
Disse ele aparentando sentir dor e muita raiva. Os outros dois empunharam suas lanças entrando em posição de combate, dando seus primeiros passos rumo ao garoto que estava cercado.
“Esse é o fim…? Pelo menos, cheguei bem longe.”
***
Ele e seu amigo pegavam carona em uma carroça de feno. Mais uma vez o garoto o entrega um bilhete, ele ao pegá-lo fica irritado em seguida com o que estava escrito.
“Sabia que você parece uma menina?”
Em resposta deu um soco no ombro de seu amigo, o qual caiu em risadas. Mais uma vez pegando o papel, escreveu rápido com um pedacinho de carvão, e entregou para ele.
“O que vai fazer quando for livre?”
Ao ler isso, ele encarou os arredores, vendo a vastidão quase infinita em ambos os lados. Pegando o carvão de sua mão, foi a vez dele escrever, em seguida o entregando.
“Eu quero ver o mar, e quero ter uma família de verdade, um pai e uma mãe.”
Ao ler isso o garoto ficou um pouco pensativo, assim escrevendo: “Pensei que seu irmãozão aqui fosse a única família que precisasse". Ao ler isso, puxou o papel de sua mão começando a escrever uma resposta para ele.
Antes que pudesse começar a escrever, teve seu braço puxado por ele, o fazendo sair da carroça a qual parava nas imediações de um acampamento improvisado.
Ele então avistou um grupo de soldados, os quais caminhavam rumo às tendas. Seu amigo que o puxou para fora, começou a gritar para ser notado por eles.
— Ei!! Eu sou de Gorjia também! Nos leve com vocês, nos leve com vocês!!!
E assim, ao serem enfim notados, encontraram seus salvadores. Homens gentis que escutaram a história deles, e sentiram pena deles, mas os aplaudiram pela coragem.
— Coitadinhos… Passaram por tanta coisa. Venham com a gente, estão seguros agora! — disse o homem com metade do rosto queimada.
Após isso, os deram comida e roupas novas. Eles agora tinham amigos que poderiam contar, pessoas que não os viam como escravos, e sim como gente assim como eles.
“Passamos algumas noites em uma das tendas do acampamento. Os panos que nos deram para nos cobrirmos do frio, eram confortáveis e quentinhos, tinham cheiro de terra molhada por algum motivo.
Enfim, liberdade, enfim paz. Tudo estava indo tão bem, queria, como eu queria que nada mudasse…”
Uma correria e gritaria o fez abrir seus olhos naquele dia. Avistando seu amigo, o qual encarava o lado de fora da tenda apreensivo.
“Hm? O que está acontecendo?”
Seu amigo então foi chutado de repente para dentro. Vendo seu amigo ao chão, e os homens aos quais adentravam a tenda sem cerimônia: Cabelos raspados, olhares assustadores e cobertos de sangue. Notando então os gritos do lado de fora que se tornaram ainda mais presentes.
Seu amigo por vez sacou uma faca, se virando rapidamente em um golpe ao qual arrancou os dedos do homem que tentava o agarrá-lo.
— AAAAAHHHHH!! Verme insolente!
— Vamos, Ludris!!
Disse o garoto o agarrando novamente seu amigo pelo braço e o puxando. Eles mais uma vez corriam do perigo, fugiam dos homens maus.
Saindo da tenda para o lado de fora, perceberam a situação crítica em que se encontravam. Estavam diante de uma carnificina, Ludris então avistou o homem ao qual foi gentil com eles.
— Por Gorjiaa!!
Disse ele decapitando um de seus inimigos, para depois ser pego pelas costas por outro que atravessou sua armadura e peito com uma lança. Mesmo assim, ele ainda se virando agarrou o homem atravessando seu estômago com sua espada, e com suas ultimas forças, gritou:
— Que a escuridão consuma meu medo! Que a luz da lua afugente meus inimigos! E que minha deusa suspire pelos meus feitoosss!!!
— OHH!!! — Os demais soldados gritaram.
Uma chuva de flechas, então, caiu sobre eles. Os dois amigos se jogaram ao chão, Ludris fechava seus olhos esperando o fim, mas nem sequer uma flecha o atingiu.
Foi quando abriu seus olhos, e viu seu amigo o qual estava de braços abertos e o protegeu como um escudo. Suas costas estavam perfuradas pelas flechas, mas em seu semblante permanecia um sorriso imponente.
— Corre. Corre! Corre, Ludris!!!
Ludris com lágrimas nos olhos e a culpa tomando seu coração, seguiu as ordens de seu companheiro. Ele correu, correu até o verdadeiro campo de batalha, no caso o cemitério de cadáveres que havia restado do massacre da guerra santa.
Foi quando voltou a si, avistando ao longe um arqueiro ao qual preparava uma flecha explosiva, apontando em sua direção. Ele acendia a dinamite, então atirou a flecha em Ludris que por muito pouco não foi atingido.
A flecha acabou se ficando no chão, bem ao seu lado. E antes que Ludris pudesse perceber, a dinamite explodiu, o jogando ao chão com tudo.
Deitado estava, seus ouvidos zumbiam, seu corpo todo doía, ele não queria mais se mover. Queria ficar ali, parado, esperando tudo acabar, esperando seu fim chegar. Olhando para o céu enquanto sua visão turva retornava aos poucos ao normal, vendo assim, aquelas lindas nuvens brancas naquele majestoso céu azul.