Volume 1
Capítulo II: “Mantenha a fé”
“Tempestade, o que esconde com seu véu negro? Quais criaturas voam livremente em meio às suas nuvens cinzas carregadas de muita chuva? Quais sons do lado de fora você desesperadamente luta para esconder? Que terrores desconhecidos e inimagináveis surgem com a sua escuridão? Do que nos protege? Do que nos esconde?”
***
Silêncio, a escuridão trouxe consigo o absoluto silêncio. Padre Marfim era capaz de escutar sua própria respiração acelerada, o breu cobria o ambiente por completo, cobria seus olhos amedrontados.
A lua havia se escondido novamente em meio às nuvens. De repente uma luz se acendeu, ele agora segura uma vela, iluminando um pouco a escuridão, mas não o suficiente.
— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Eu ordeno que saia deste lugar sagrado!!
Não houve resposta, estava tudo calmo demais. Seus batimentos aceleraram enquanto engolia a seco, sua mente estava perdida entorpecida em nervosismo, “para onde foram todos?” pensou consigo.
Com a luz fraca da vela, deu seus primeiros passos na escuridão. Todo cuidado é pouco, quando não se vê nem onde pisa.
Viu ele os bancos antigos de cedro à sua frente, juntamente dos pertences daqueles que estavam neles e, agora não mais estavam.
— Alguém?! Não temam, devemos manter nossa fé. Conseguiremos passar por essa provação juntos!! Basta ter–
Virou-se rapidamente ao sentir um ar quente em seu pescoço, mas não tinha nada lá. Uma sensação ruim se tornava mais presente naquele lugar, era como se algo ou alguém se divertisse observando, vendo seu medo.
— Eu não temo, pois o Senhor está comigo. Sua vara e seu cajado me consolam, mesmo que…
Um som um pouco distante dele lhe é percebido, passos arrastados ecoavam pelo lugar. Se aproximando, chegando mais perto…
— Q-Quem está aí?! Apareça!!
Marfim procurava com a luz da vela na direção a qual o som vinha, mas em vão. A luz ainda era muito fraca para dissipar as trevas.
Foi quando de em meio a escuridão, uma voz infantil falou:
— Padre…
— Hm? Quem está aí?!
— O que o senhor fez comigo?
— Quem está aí?! Apareça covarde!
— Padre… Por quê… Por quê?
— E-Essa voz… Não pode ser. — Percebeu algo. — P-Pablo?! É você?! Pablo?!
Os passos se distanciaram dali onde ele estava, indo em todos os sentidos, isso confundia padre Marfim o qual ficou perdido e imovel.
— O senhor me disse que Deus ajudaria minha irmãzinha… Disse que eu precisava ser um bom garoto e manter nosso segredo. Mas por que ela morreu? Eu não contei nada a ninguém...
— Não. Não… não pode ser.
— Você disse que se eu entrasse no confessionário, você iria me ajudar… Disse que iria me mostrar uma maneira de salvar ela… Mas por que ela morreu? Eu não fui um bom menino?
— Não… Quem está aí de verdade?! É você demônio?!
— Como o senhor, ousou? Eu confiava em você!! — Aumenta o tom de voz — Confiei em vocêêê!!
O grito rasgou o silêncio forçando Marfim largar a vela e tapar os ouvidos. Ele caiu de joelhos ao chão, se encolhendo em posição fetal, enquanto o som rasgava seus tímpanos.
Mas logo cessou, sua respiração estava acelerada, tentava recuperar o fôlego, limpava o rosto ao qual estava suando frio. Novamente pegando a vela que por sua vez não apagou com a queda, se levantou um pouco abatido, enquanto seus ouvidos sangravam, sentia um zumbido agudo como se milhares de abelhas chegassem ao local.
— Eu… E-Eu, não fiz nada. Nada!
— Hmmm… Olha só… — Voz grave. — Mentindo na casa do Senhor? Não sei se posso permitir isso.
— Eu sabia que era você! Eu não vou cair em suas mentiras… Desista. Você não vai entrar em minha cabeça!!
— Hehehehe… Sua cabeça não me interessa. Eu quero outra coisa!
— O-O q-quê? Como assim?!
— Justiça, padre. Eu quero justiça! Justiça pelo pobre, Pablito… Justiça por ter sido tão imundo por todo esse tempo vivo.
— E-Eu… E-Eu… Eu–
— O que foi? Vai me dizer que… O maldito gato comeu sua língua? — Várias vozes falaram ao mesmo tempo. — Fale o que queremos ouvir!
Marfim sentiu todos os pelos de seu corpo arrepiarem. Por mais que suas pernas quisessem correr dali, se mantinha imovel encarando o escuro, mal sabia ele que a escuridão o encarava de volta, e ria com seu medo.
Sua mente aos poucos se lembrava das atrocidades que cometera, se lembrando das mentiras e de seus pecados mais hediondos.
— Se divertiu, padre? Foi divertido usar de um inocente? Foi bom se aproveitar do desespero dos outros? — Aumentava o tom aos poucos. — Foi bom mentir a um desesperado, padre?! Foi divertido seu hipócrita?! Vamos, diga! Diga que se divertiu abusando da confiança de um inocente. Digaa!!
— Não… eu, eu não sei do que está falando. — disse abaixando a cabeça.
Marfim evitava encarar a escuridão. Temia que vissem mais de seu medo, temia que vissem seus olhos trêmulos, temia que lessem seus pensamentos, temia que vissem sua culpa, ele temia que vissem a verdade.
— Imundo… Um ser tão imundo como você, não merece salvação.
— Olha quem fala. Um demônio… Se acha melhor do que eu?! É isso?! Ham?! Vai! Fala seu merda. Fala que se acha melhor do que eu!!
— Finalmente dando suas caras… Mostrando quem é de verdade. — disse batendo palmas — Você me enoja… Talvez eu seja mesmo melhor que você! Pelo menos eu ainda tenho princípios… Diferente de você eu sou mal, mas não escondo esse fato. Eu falo, penso, faço, desejo, inspiro, tomo, recebo e entrego… Eu vivo para o mal, é o que eu represento é o que eu sou. Fui criado para isso, fui feito para isso, e apenas isso. Não tenho outra escolha! Mas e você? Deus te deu livre arbítrio, rato covarde.
— Até parece que você é o injustiçado. Do jeito que fala, faz parecer que é inocente… Parecer que não tem escolha!
— E quem disse que eu tenho? Olha… Com a condenação você perde muitas coisas! Eu não sou livre, seu Deus me prende, assim como meus irmãos. Nós queríamos ter escolhas também! Só para no fim, esmagá-las e continuar fazendo o que queremos. — disse com uma voz tenebrosa. — Fazer o quê? Somos assim, somos isso. Somos seres simples, nos ofereça uma brecha, e simplesmente entraremos em sua vida.
— Não entendo… Eu não entendo!! O que quer de mim?! O que quer de mim demônio?!
— Demônio? Eu…? — Parecia sorrir. — Acho que ainda não me apresentei devidamente...
Marfim escutou passos logo atrás dele, mas ao se virar não viu nada. “Droga, não consigo ver nada!” pensou ele enquanto encarava o escuro.
Um som distante então passou por seus ouvidos. Ele se concentrando para escutar, pode notar que algo mastigava e rasgava alguma coisa em meio às sombras. Foi quando uma voz grave e intensa disse com a boca cheia e ainda mastigando:
— Hum, eu… já fui um anjo… Hm… há muito tempo!
— Anjo?
— Sim. — Engole. — Eu era um de alta patente… Minhas asas eram tão lindas! Brilhavam, resplandeciam a mais pura e inocente luz, mas tinha um problema. Elas brilhavam demais, cativaram demais, chamavam atenção e com isso os olhares! Embora, elas refletissem apenas o sol. O meu brilho não era meu, mas sim do sol!
Padre Marfim encara o escuro, seu olhar é de dúvidas, parecia confuso.
— O sol tem inveja. Todos têm!
Marfim sentia um remorso em tais palavras. Sentia como se ele estivesse sofrendo, sentindo uma dor que mais ninguém poderia ver.
— Enfim… O que eu quero dizer é: a humanidade lembra as minhas asas! Vocês refletem a luz, mas a luz não é de vocês. Não entende? Você é o reflexo de algo maior… Embora se contentem com isso, eu não consigo. Como eu poderia me contentar com tão pouco? Como?! Minha vida toda eu fui privado, me deram um propósito que não tive o direito de escolher!! — A voz ficava mais instável — Até o brilho de minhas asas não era meu!! Eu nunca tive nada, minha vida já estava definida antes mesmo de vir ao mundo. Sem escolhas, sem um segundo propósito, sem livre arbítrio! Mas… eu consegui, mudei. Não sou mais o que eu era antes, não sou mais aquela criança escondida atrás da porta!
—...
— Naquele tempo eu via as coisas que ele criava! — Deu uma breve pausa. — Os animais, as plantas, os mares. E de repente, humanos… Tão confusos, tão perdidos, tão fáceis de manipular. — disse com tom de sarcasmo. — Meu irmão ficou com ciúmes. Não gostou nada de como nosso pai dava mais atenção e valor a simples seres terrenos, mais do que a nós anjos.
— Você fala do…
— Sim, ele mesmo. No tempo em questão ele tinha outro nome, um nome mais belo e majestoso… Qual era mesmo?
— Samael…?
— Vejo que anda lendo as escrituras, Marfim. Bem, meu irmão decidiu que iria assumir o controle de tudo. Achou que com seu poder — Tom de voz aumentando — ele era onipotente. Achou que por ser o segundo na hierarquia, ele poderia simplesmente sentar no trono! Mas… Ele era o segundo, não o primeiro. Já sabe o resto da história, né?
— Condenação eterna.
— Issoo!! Todos foram banidos. Condenados ao tormento eterno e desespero! Foram milênios difíceis, sabe… O tempo no inferno é diferente. Embora, isso foi bom, pois tivemos tempo o suficiente para pensar… — disse dando seus primeiros passos — Após isso, meus irmãos perceberam algo. Entenderam que podíamos tomar os preciosos filhos de nosso pai! E bem, estamos aqui para isso, mas… Eu sou diferente, Marfim!
— D-Diferente?
— Eu menti quando disse que era um mero peão! A verdade é que... Eu não sigo ordens. Não tem aquele que pode mandar em mim. Nem mesmo a morte, nem mesmo o meu irmão ou qualquer outro! Eu sou diferente… Não sou um mero peão em um jogo que já foi dito as regras. Eu crio minhas regras, compreende, Marfim? Eu tenho meus próprios propósitos. — disse com uma voz assustadora.
— Do que está falando? Eu não entendo!! — Gritou ele.
— Eu vim hoje com um propósito, muito maior do que pensa. Infelizmente Marfim, não é você que estou buscando! Ele ainda não chegou aqui.
— De quem está falando?!
— Hehehe… Acho que saímos um pouco do assunto. — Sua voz ficava mais suave. — Marfim, foi você… Você que me trouxe para esse lugar.
— Eu? Até parece que–
— Sim, Marfim. Foi você! Eu estou aqui hoje graças a você. Eu represento várias coisas, sabe? — disse voltando a mastigar algo. — Uma dessas coisas é a “Perversão”. Naquele dia, você me chamou quando manchou esse lugar, hehehe… Como eu fiquei surpreso, como eu amei ver algo tão imundo em um lugar santo. Os meus irmãos riram comigo, por você, Marfim!
Padre Marfim já não sabia mais o que fazer, aquelas palavras o faziam tremer ao ponto de ser difícil segurar a vela. Ele podia sentir a cera derretida se encontrando com seus dedos, se entrelaçando com eles, queimando sua pele e grudando em sua mão, aos poucos se tornando parte de seu corpo.
Mas mesmo com a dor, sabia que não poderia derrubar sua única fonte de luz, caso o fizesse, seria seu fim.
— Em nome do Senhor eu ordeno que saia. Eu não vou mais tolerar sua presença neste lugar!
— Desista, Marfim. Chega de joguinhos, chega! O único que não deveria estar aqui é você. Sabe qual o pecado que não tem perdão?
— Senhor rogo a ti que ajude seu servo. Que o mal saia deste lugar, saia! Saia em nome do altíssimo.
— Ele não te escuta mais, padre. Você agora é meu, só meu… Você pode não gostar de mim, mas, saiba que eu te amo. Nós te amamos! — Várias vozes falaram em uníssono. — Viemos buscá-lo, Marfim. Venha com a gente, Marfim… Vamos te amar. Vamos te adorar, vamos te encher de luxúria e prazer… HAHAHAHA. Venha com o seu verdadeiro pai!
Marfim tremia em desespero. Foi quando um garoto com um sorriso inocente veio em suas lembranças, aquele sorriso se tornou lágrimas de alguém que pedia ajuda.
“Minha irmã… Ajuda minha irmã” essas palavras ecoaram naquele lugar. Ecoaram na mente de padre Marfim o qual recuava da verdade.
— Senhor, o que está fazendo…? Me solta! Não, não toque aí!! Senhor…! Está machucando!! Machuca! Para, para… — Chora.
— Padre… Qual o pecado sem perdão?
— Pare com isso... — Sussurrou Marfim.
— Qual o pecado que não tem perdão, padre?
— Pare com isso…
— Isso dói! Não… — Chora. — Não… para... para… Tá me machucando. Tá machucando!!
— Qual o pecado que não tem perdão, padre? Qual o pecado que não tem perdão, padre?!
— Eu não sei!! Pare com isso! Pare com isso!!!
Padre Marfim cai de joelhos, ele abaixa a cabeça enquanto suas lembranças ficam ainda mais confusas. As primeiras gotas de lágrima fugiram de seus olhos, toda a culpa e o ressentimento tomavam seu coração.
— Não… para. Por favor, para! Eu… eu… — Sussurra.
— Qual o pecado que não tem perdão, padre?
— Não toque aí… Não toque aí… Tá doendo, doi…
— Qual o pecado sem perdão?!
— Não… Não… tá doendo… tá doendo… — Chora.
— Qual o pecado sem perdão, Marfim?!!
— Blasfêmia!! — Gritou Marfim com tudo de si. — Blasfêmia… É a blasfêmia o pecado sem perdão. É a blasfêmia o meu pecado!
As lágrimas começaram a sair de seus olhos. Marfim agora chorava se lembrando do pecado que cometeu, enfim a verdade que tanto fugiu o alcançou.
— Eu entendo… essa é minha punição. Eu aceito… A culpa é minha! — Chora.
Ele apertou a vela em sua mão, seus dentes apertavam sua língua querendo arrancá-la. Ele queria de algum modo se calar ali mesmo, de algum modo acabar com suas mentiras.
— Não tenha medo, Marfim. Deixe o escuro esconder seus pecados…
— Ugh. — Goteja sangue.
— Havia perguntado quem sou…
— Se isso for pelo bem da minha irmã… Eu aceito. Ela vai melhorar agora, né? — Sussurrou a voz nas sombras.
— Me chamam de…
— Desculpa maninha… O padre mentiu para mim. Desculpa papai, desculpa mamãe… desculpa… eu…
— POOWW! — Som de disparo.
— Pode me chamar de FORMAMUS!
Ao escutar a pronúncia daquela palavra, seus ouvidos sangraram, sua respiração foi tomada, suas entranhas se contorceram enquanto todos os cabelos em seu corpo se arrepiaram. Por um momento sua mente fugiu dali, e quando voltou a si percebeu que sua bexiga havia esvaziado diante do pavor de apenas um nome.
— Humm… O verme molhou as calças? Que asqueroso. Rato nojento!
Ele sentiu como se milhares de olhos se abrissem no escuro, encarando até o íntimo de seu ser, vendo sua vergonha e medo. Sentiu-se nu, tentou cobrir seu corpo com suas mãos enquanto se encolhia no chão, sua mente desaparecia novamente com sua falta de oxigênio.
— Jan-ads-só-jin-ço-jin-ads! — Várias vozes como em um coral.
— Jan-ads-só-jin-ço-jin-ads!
— Jan-ads-só-jin-ço-jin-ads!
— Jan-ads-só-jin-ço-jin-ads!
Com um sopro repentino a vela caída à sua frente se apagando, o que o fez voltar a si. Percebendo que estava na completa escuridão, o breu o fez recuar se arrastando apavorado para trás, assim se esbarrando nos bancos.
— Jan-ads-só-jin-ço-jin-ads!
Seus olhos se moviam rapidamente buscando algo, foi quando avistou luz. Um dos vitrais quebrados deu passagem para o brilho da lua que surgia de em meio às nuvens iluminando novamente a estátua. Seria essa sua esperança? Seria essa sua salvação?
Ele se levantou com tropeções, correndo em direção a luz, quando algo agarrou seu pé o fazendo cair por cima de seu braço.
— Argh–
O gemido rouco saia do fundo de sua garganta ao sentir a dor de um braço quebrado, o segurou enquanto tentava de algum modo se tranquilizar. Mas a dor era muito forte, ele não conseguia pensar em mais nada, rolava no chão em gritos e agonia
— Vai desistir? — disse a voz no escuro — A sua salvação está logo ali... Corra, corra coelho assustado! Corra para a luz, rato.
Ele novamente voltou a si, com dificuldade se levantou. Deu seus primeiros passos pegando ritmo, já aumentava sua velocidade para correr, quando algo rasgou sua perna esquerda.
— Ahhhhhh!
Caiu ao chão novamente enquanto gritava em meio à dor, ele podia sentir o sangue saindo do seu ferimento exposto, sentia também a carne dependurada caída ao chão. Ele queria parar ali, sucumbir à dor e aos gritos, mas seus olhos se direcionaram à luz novamente, sua última esperança.
Tomou coragem e, com seu único braço e perna bons, começou a se arrastar indo o mais rápido que podia, tolerando a dor e seguindo adiante.
— O coelhinho ferido ainda pode correr. HAHAHAHA!! EU AMO VER MINHA PRESA SE ARRASTAR! — Parecia animado.
Marfim sentia o terror que aquelas palavras o causavam, mas era exatamente pelo terror que ele não poderia se deixar ser pego.
“Eu vou viver... Eu vou viver!!”
Começou a aumentar o ritmo, a dor já não era maior que seu desespero. Mesmo sentindo o sangramento e o que restou de sua perna, mesmo sentindo a cada movimento sua perna aos poucos se desprendendo, querendo ficar para trás, mesmo assim continuou.
A luz mais adiante o dava forças a seguir em frente, era como se ele de algum modo soubesse que a luz era sua única salvação, era como se a estátua tivesse piedade dele e o chamasse.
— Isso, isso!! Continue! — Disse a voz excitada. — Continue, siga em frente. Alcance sua salvação, vá ao encontro da luz! Se salve Marfim, se salve do inferno! Se salve do ódio! Se salve de seus pecados!! Marfim, se salve de mim!!!
As risadas ficavam mais altas, ele agora era capaz de sentir o prazer que o ser sentia, as risadas se tornavam aos poucos deboche. Não faltava muito agora, a sua salvação estava logo ali, “só mais um pouco” pensou ele.
— Onde pensa que vai, coelhinho…?
Várias mãos o agarraram, cravando suas garras em sua pele e o puxando aos poucos para mais fundo na escuridão. Na tentativa de se segurar, quebrou suas unhas em torno que fincava elas no chão, uma tentativa frustrada.
O sangue começava a sair por sua boca, ele mais uma vez desistia, as garras agora eram como agulhas, perfurando e rasgando-o, obrigando ele a se entregar ao seu fim iminente.
— Implore…
— Argh–
— Implore.
— Cof-Cof! — Começou a tossir sangue.
— Implore, verme. Vamos, implore!
— Ah–
— Implore a mim por sua vida.
— Nunca... — Sussurra.
— Como? Eu não escutei direito.
— Nunca...
— O que disse?
— NUNCAAAA!! — Gritou lançando sangue pela boca.
Naquele momento sentiu forças, a adrenalina tomava enfim seu corpo. Foi quando viu a luz da lua novamente, brilhando ainda mais forte, enquanto uma paz tão grande tomou o seu corpo.
A dor já não existia mais, as mãos já não o seguravam mais, ele estava leve e livre como nunca esteve. Olhando para a luz, se tornava agora uma mariposa no escuro, um brilho dourado adentrou o lugar, tão brilhante que quase o cegou.
Uma silhueta descia os céus, estava agora lá, imponente e estendendo a mão para ele, Marfim sentiu um calor acolhedor.
As lágrimas caiam enquanto ele recuperava a fé, um milagre bem a sua frente. Bastava continuar rumo à esperança, se arrastou com força ainda mais depressa, buscando seu salvador.
— Estou indo, Senhor! Estou indo Senhor!!
A escuridão recuava da luz, Marfim já não estava no escuro, seus olhos brilharam enquanto ele esticou sua mão para aquele que o aguardava.
— Seu servo chegou. Eu sempre tive fé que iria me ajudar meu Deus... Eu mantive minha fé! — Chora.
Sua mão já se aproximava da dele, quando uma dor repentina o fez lançar ainda mais sangue pela garganta.
— Sabe, Marfim. Eu amo mariposas! Sabe por quê?
Ao direcionar seus olhos para trás, ficou petrificado, suas pupilas dilataram enquanto encarou o rastro de sangue que seguia até a escuridão.
Não apenas sangue, mas pode ver alguns de seus órgãos que ficaram pelo caminho. De sua cintura para baixo não restará mais nada além de sobras mutiladas e desmembradas.
— Por que elas são cegas pela luz, mal sabem que a luz irá matá-las!
— Arg–... Não… o que você fez...? O que você fez?!
— Hm? Que olhar é esse? Achou mesmo que Deus mandaria um anjo para te salvar? Ou que ele mesmo viria? Pera, você achou mesmo que seria salvo?! HAHAHAHAHA!!! Você achou mesmo?! HAHAHAHAHA!! Que hilário! Que hilário!! Você acredita em tão pouco… odeio pessoas simplórias como você! — Disse ficando sério.
Marfim colocava sangue pela boca e nariz, enquanto seu corpo já desfalecia. Suas lágrimas se misturavam com seu sangue, ele começa a chorar como uma criança que acabara de receber a correção dos pais.
— Oh, não chore. Se quer tanto que alguém segure sua mão… Pode deixar que eu o faço!
O terror tomou seu corpo e sua mente, enquanto sua mão foi agarrada por aquele que antes acreditou que seria seu salvador.
— Tem uma coisa que gosto mais que o desespero… Quando a esperança enfim some de seus olhos, pequeno coelhinho!
Ao olhar para frente, notou a mão cheia de feridas e moscas. Enfim avistando a criatura medonha que sorriu, com aqueles dentes de agulha retorcidos e enferrujados, enquanto sangue e algumas lacraias escapavam de sua boca.
Não havia luz dourada, nem anjo, apenas trevas e o pouco de luz da lua a qual iluminava aquela silhueta magra e enorme. Aquele sorriso se abriu ainda mais, indo de um canto a outro, enquanto Marfim se perdia em meio ao terror, em meio a agonia.
***
No velho rádio de um carro em movimento a música “Run Rabbit Run” tocava, parecendo querer silenciar a tempestade do lado de fora.
O Chevrolet Parckwood 1959 rugia como um leão na estrada, o lindo veículo azul marinho continuava imponente em meio a difícil estrada de terra.
— Charles, o que viemos fazer nesse lugar? — disse uma Voz feminina.
— Caçar... Estamos aqui para caçar! — Sorriu.
Todas as peças no tabuleiro começaram a se mover. Um jogo infame, que logo teria seu início, mas que para isso a última peça deveria se dirigir o quanto antes ao palco… O fim está próximo!