Volume 1
Capítulo I: “Tenha fé”
“Já teve a sensação de sentir alguém te observando? Vigiando, olhando, bisbilhotando, guardando seu sono ou até mesmo espiando você no banho? Já fechou os olhos de noite enquanto sentia os dele se abrindo, e encarando você...? Você já o viu nas sombras?”
***
Uma ventania ressoou pelos grades vitrais da igreja ortodoxa, as irmãs correram para fechar as janelas que se abriram com o vento forte. O sol se escondia em meio às nuvens negras, carregadas de lágrimas e dor, aquele dia era diferente.
O padre observava a tempestade pela janela, as árvores agitadas pelo vento arranhavam as vidraças com seus galhos, como se as almas quisessem entrar.
Trovões enchiam os corações de temor, toda a irmandade de fiéis adoradores tremia diante da ira dos céus. Por mais que estivessem em um lugar santo, por mais que seus corações seguissem ao pastor, por mais fervorosos que fossem, ainda sim, humanos. Todos, humanos que temiam a morte, temiam o julgamento.
Os raios não apenas rasgavam o céu, mas também a concentração dos fiéis. O som ressoava como um grito indo até as entranhas do templo, e lá, naquele local sagrado e imaculado, o padre se preparava para iniciar a missa.
— Aham…!
Homem de fé e batina, roupas longas assim como deve ser. Rosário na mão, coração na palavra e a mente alinhada às areias do templo. Andou até o púlpito, encarou os fiéis e viu o medo crescendo em meio ao rebanho.
Pobres cordeirinhos, tão longe dos campos verdejantes, perdidos em meio ao bosque de concreto, mentiras e dor.
Encarou a imagem sagrada: uma estátua enorme de madeira, representando o único filho e cordeiro ao qual lavou nossos pecados imundos. Por um momento a encarou, sentia o peso da imagem, sabia o que ela representava, e sabia que não poderia ficar em silêncio.
— Por que temeis? Por que tens medo, igreja?! Não é vós o povo de fé?! Quantas almas aqui, quantas vidas Deus salvou! Então, por quê…? Medo da chuva? Medo do vento? Medo dos relâmpagos?! — Encarou a todos. — Se Deus é Deus para parar o mar e as tempestades, por que ainda temeis?!
Neste momento a igreja sentiu o peso de tais palavras. Até então as imagens nos vitrais ou as estatuetas de Cristo e da Virgem Maria, como de costume eram apenas arte decorativa, mas depois de tais palavras já não eram apenas isso, eram outra coisa.
Juízes severos que encaravam os pecadores. Pareciam encarar até o fundo de suas almas, julgando seus pecados imundos.
— Sim… é assustador! Até mesmo eu estou com medo. Mas não deixemos o medo dominar! Não deixemos o mal nos amedrontar, pois essa afronta não aceitaremos!! — disse apontando o dedo. — Então eu pergunto ser maligno… por que habitas uma pobre criança inocente?
Um relâmpago rasgou os céus com um enorme clarão, as lâmpadas se apagaram enchendo de medo os corações daqueles que buscavam a luz mais que tudo. E com o clarão de mais um relâmpago, pode-se ver por um instante o rosto da criança.
Amarrado estava em uma cadeira, se contorcia e esperneava. Um jovem cordeirinho, mas que neste momento um lobo malvado se fantasiava com seu corpo.
As freiras correram com velas para iluminar o lugar. O templo santo deve permanecer aceso com luz, luz para apaziguar os corações e dissipar as trevas do mal.
Assim podendo ver melhor a criança: olhos já vazios para um garoto na flor da juventude, respiração irregular, espumando pelo canto da boca, tremendo e aparentando sentir muita dor. Possuindo uma expressão triste e distorcida estampada em seu semblante, começou ele a cochichar algo.
— Responda criatura imunda. Por que se esconde no corpo de um dos filhos de Deus?! — Disse o padre o encarando.
— Hmmm… Nosdrands, Nosdratos… Namia e Irisma…
— Como?
— Padre… — disse com uma voz rouca e angustiante — Tu és mesmo um homem de fé?
— Daria minha vida por essa causa!
— Bom… Bom. Belas palavras, mas… se o criador te deu o fôlego de vida. Quem seria vós para entregar algo que ganhou dele? Sua vida não é sua para ofertá-la tão levianamente.
— Seu imundo! Não ache que serei misericordioso com um demônio. Eu sou um homem de fé, sempre acreditarei em meu Deus.
— Então… Se é assim, você pode me dizer com certeza disso? Tem mesmo… certeza? — disse o encarando nos olhos — Pode mesmo dizer aqui e agora, que não irá para as profundezas do inferno comigo?
Todos os fiéis estavam em silêncio, sabiam que aquilo não era uma encenação. Pois a voz não era de uma criança, estava longe de ser tão pura e inocente.
Por vez ele continuou:
— Vocês, padres… Homens de fé, são tudo a mesma coisa para mim. Pregam, mostram o caminho, mas… São incapazes de garantir sua própria salvação! He, hilário não? — disse com tom de sarcasmo. — Somente fé, não irá te salvar!
— Como um ser tão hediondo como você, saberia o que é ter fé?!
— Talvez, eu saiba. Mais do que você, ou qualquer um aqui! — Encarou os demais. — Já pensou que… nos demônios, temos ainda mais fé que vocês? Seguimos a um mestre até as profundezas da escuridão e do tormento eterno, sem temer uma única vez, sem vacilar, sem voltar atrás, sem pedir perdão! E vocês? O que fizeram? Não foram vocês que sacrificaram seu único mestre na primeira oportunidade? — Sorri.
— Como ousa?! Já me cansei dessa conversa, nunca entenderei um demônio. Não sei por que são assim… monstros… Monstros imundos!
— Hmm… Padre, como um padeiro que nasce para fazer pão. Como um carpinteiro que nasce para usar da madeira. Como um cordeiro que nasce para seguir, e… como um pastor que nasce para conduzir o rebanho. Eu sou como um humano, que já nasce fadado a pecar!
— Aqueles que tem fé nunca pecarão!!
— Por isso estou aqui! Para tornar os seus sonhos reais… — Sorriso sínico. — Padre Marfim, eu sou os seus sonhos. Todos os seus desejos pecaminosos e sombrios, eu sou todos seus desejos reprimidos. Ou vai me dizer que nunca sonhou, padre?
— Sonhos? Aqueles que seguem a palavra não precisam de sonhos imundos. Meu único propósito é seguir a Deus e nada além. Sei que o Senhor me protege, suas palavras mentirosas pereceram neste lugar santo. Eu, padre Marfim Alexander Bentorio! Irei julgá-lo neste local sagrado com ajuda de Deus!!
— Me julgar…? — Sussurrou consigo. — Se acha digno para isso, padre?
— Qual o nome do acusado?! Qual o seu nome demônio?!
— E isso importa? Já parou para pensar, que talvez eu seja apenas um peão como você? Meu nome é tão insignificante quanto os grãos de areia que caem neste templo.
— Hump. Terei que descobrir então?
— Hahaha, tente! — O encarou com seriedade. — Saiba que diferente de você, eu sou um livro lacrado. Você não me conhece, embora, eu saiba tudo sobre você… — Deu uma pausa olhando ao redor. — Pablo… esse nome lhe é familiar?
— Hm? Como você…
— Não, acho que você deve se lembrar por outro nome… — Sorri — Qual era mesmo? Hmm… Nossa, como era? Não consigo lembrar.
— Pare seu herege. Como ousa?!
— Como, ouso?! HAHAHAHA!! — Voz distorcendo — Como ouso?! Como você ousa! Vir pregar, não tem vergonha de si mesmo?! Hump, você é podre como eu! Não… você é pior.
— Irei em nome do altíssimo mandá-lo de volta para o lugar de onde veio!! Eu te condeno, sem mais julgamento.
— É mesmo… me lembrei. — Abriu um sorriso assustador. — Você chamava ele de “Garotinho”... Lembra dele agora, Marfim?
— Não sei do que está falando… — disse Hesitante.
— É sempre assim… Antes de você já foram mais de três mil, com você não seria diferente. Vocês sempre dizem que não lembram, em seguida ficam irritados com a verdade, então mentem e mentem de novo.
— Você não vai conseguir fazer o que quer de mim!! Eu não vou cair nesses joguinhos! Não vou aceitar isso. — disse serrando os punhos.
— Como eu disse… — Sorri — Você diz que não lembra, mas… Eu me lembro! Lembro-me de cada detalhe sórdido, padre. Cada lamento, cada lágrima dolorosa, cada sensação nojenta e cada toque asqueroso e imundo. Eu me lembro de tudo, Marfim, além do mais… Eu estava lá!
Em meio aos fiéis, começou um murmúrio, Marfim os encarou. Pode perceber, que alguns olhos o julgavam, pareciam ver sua face verdadeira aos poucos.
— Não deem voz ao demônio!! Eles estão aqui para nos enganar. Você não irá mentir na casa do senhor! Eu não permito isso.
— Não posso mentir, é? Então… Eu te amo padre! Eu amo você!! EU TE AMO PADRE MARFIM!!!
Marfim o encarou confuso, na verdade todos estavam, até então ninguém entendia do que eles conversavam. Embora esse “eu te amo” repentino, tenha sido inesperado e, nojento.
— Sério mesmo… Eu sou seu fã, eu amo você, na verdade mais que isso! — Contorcia seu corpo em prazer. — Eu adoro você, adoro, com todo meu coração. HAHAHAHAHAHA!! Demônios não tem coração! — Disse com uma voz distorcida.
O padre temia o pior, engolia a seco enquanto suas pernas tremiam com o ar que começava a lhe faltar. Ele não podia acreditar no que ouvia, tais coisas vindo de um demônio, um ser tão detestável e corrupto.
— Vamos padre, me solte. Ajude um amigo, não, melhor… Ajude um irmão!! Hahaha. Eu poderia lhe pedir um abraço? Ou poderia até mesmo pedir um beijo apaixonado?! Oh, padre, vamos! Vamos nos despir e sucumbir a nossos desejos pecaminosos e reprimidos. Venha! Entregue-se a mim, dê o seu melhor para me satisfazer. Venha se encher de malícia, luxúria é um prazer sem fimmmm!!
— Seu imundo!! — Gritou batendo com as mãos no púlpito. — Como ousa falar tais imundícies na casa do senhor?! Eu te darei a punição divina, que sofra no inferno que é o seu lugar!
Descendo ele do púlpito com a bíblia em mãos, caminhou com pressa até o garoto. Abrindo o livro sagrado, conduziu as folhas santas com o mais profundo respeito e sinceridade em seu coração, logo achando um dos versículos começou a recitar os versos sagrados no mais razoável latim.
— Domine, refugium factus es nobis a generatione in generationem. — disse estendendo a bíblia para o alto — Priusquam montes nascerentur aut tu formasti terram et mundum, ab aeterno in aeternum tu es Deus.
— Esse é o Salmos noventa? Sério?
Ele recitava com força de vontade as palavras sagradas, versículos de poder que há muito foram escritos para combater o mal. Palavras que ecoavam por toda a igreja, os fiéis suplicavam a Deus misericórdia, e as freiras rezavam com devoção e vontade.
O som do sino ostensório, o ar purificado com incenso e a mais fervorosa fé. O rebanho unido, velas queimavam a escuridão, todas as mentes alinhadas em uma só oração, bum-bum, os corações batendo em um só ritmo, pensamentos que imploravam intervenção divina.
Tudo isso era percebido pelo garoto e a criatura que em seu corpo se escondia. O garoto começa então a dar suas primeiras convulsões.
Tremeu seu corpo como se estivesse sendo queimado vivo, balançando a cadeira velha que rangia, mas as cordas estavam firmes, ele não conseguiria se soltar.
— Argh. Aaargh–
Não podia se conter mais, seu corpo começou a se contorcer e retorcer, seus olhos se reviraram e parecia que algo se movia por baixo de sua pele, serpentes que queriam escapar.
Padre Marfim se assustou por um momento, mas logo voltou a si, continuando seu propósito sagrado. Enquanto a voz e gritos do garoto, se distorciam, ficando roucas e graves, soltando palavras incompreensíveis, como se várias pessoas falassem ao mesmo tempo.
As portas do templo se fecham com um som que esmaga os corações e a atenção dos fiéis. O terror entorpece enfim as mentes daqueles que deveriam estar atentos à oração, mas que agora encaravam as portas.
A multidão de fiéis queriam sair dali agora, porém, o peso repentino no ambiente os prendeu em seus assentos. Pareciam grudados ao banco de cedro, como se algo ou alguém muito pesado estivesse sentado em seus colos, embora, podiam sentir algo agarrar suas pernas.
A atmosfera no templo se tornava densa, quase ao ponto de poder ser tocada. O padre por vez não deixou se abalar, sabia que caso fraquejasse, tudo estaria perdido, deveria ter fé e continuar seu propósito sem mais êxito:
— Tu, Domine, hominem in perditionem rediges; et dicitis: Revertimini, filii hominum.
— Pare. Pare com isso! Pare com isso!! AAAAHHHHHH!!!
O vento uivava do lado de fora, a chuva como projéteis acertaram os vitrais. O céu estava negro agora, e podia-se ver pelas janelas uma neblina sorrateira chegando.
— NÃOOOOO!! NÃOOOOO!! PARE, PARE!
As cordas começaram a ranger, a madeira da cadeira estalava. O clima de repente ficou frio, um cheiro de ovo podre adentrava as narinas de todos, causando náuseas. Algumas irmãs sucumbiam aos vômitos e choro, o pavor como um câncer dando enfim suas caras.
O garoto se debatia com uma força sobre-humana, se debatia ao ponto de quebrar ossos e girar os pulsos e pernas. Sua família vendo isso, chorava e gritava com sua dor, embora soubessem que não poderiam intervir naquele momento.
— In nomine patris et filii et spiritus sancti. — Evitava o encarar.
— AAAAHHHHH!! PAPAI, tá doendo… — disse mudando o tom de voz — Tá doendo papai. AAARGH!! Me ajuda!!
— Filho… — Chora.
O homem permaneceu forte, embora sua mulher não pudesse suportar as dores de seu filho como ele. Neste momento seus instintos de mãe falaram mais alto, ela então correu, mas foi segurada pelo homem e seus outros filhos mais novos.
Vendo o estado de seu filho, ela caiu aos berros:
— Ta matando ele! Ta matando ele!! Tomás!! Tomás!!!
Agarraram-na, a qual agora encarava sua criança aos gritos em dor. Sem poder fazer nada, onde cada grito e lamento se tornava um punhal que atravessava seu peito, rasgando-a de dentro para fora.
Ela o encarava, seus olhos a obrigavam ver, obrigaram ela a assistir tudo.
— Filho… perdoa a mamãe… — Disse enquanto as lágrimas fugiam de seus olhos.
Ele por um instante parou de gritar, foi quando sangue começou a escorrer de sua boca e olhos.
— Ah–
Aquilo chocou a todos, a cena em sua frente fez com que muitos fechassem os olhos implorando para acabar. O marido e pai, tampou os olhos de sua esposa, mas, se obrigou a ser o único a ver tudo sem evitar um momento sequer.
Seus gritos mais uma vez retornaram, estavam ainda mais repulsivos. O som do estalar de ossos parecia ecoar na mente de todos ali presente. Alguns se jogaram ao chão em choque e aos berros, outros ainda duvidavam do que viam e se perdiam em seu próprio mundo de dúvidas.
Era algo tão assustador e irreal, algo digno apenas de permanecer em histórias e filmes, a luta entre o bem e o mal estava prestes a assumir seu ápice naquele local sagrado, quando de repente:
— Exi e corpore hoc, egredere, exi. — Levanta um crucifixo na direção dele.
— NÃOOOO!! NÃOOOOOOO!!!
— Exi e corpore hoc, egredere, exi…
— NÃO!!! NÃO ME MANDA DE VOLTA. EU NÃO QUERO VOLTAR. Eu não… — Sorri — AHAHAHAHA… Brincadeirinha!
Tudo de uma hora para a outra se transformou, se tornou desespero. Os vitrais se partiram fazendo o padre e os demais se jogarem assustados ao chão, Marfim derruba a bíblia e o crucifixo enquanto se protege dos estilhaços.
— AHAHAHAHA!
As risadas ficaram mais altas, crescendo e crescendo. Enquanto a fé já não era tão grande, o medo se tornou maior, muito maior, mais real.
— Quê? Como isso–...? — Encarou a criatura, assustado.
— Patético… Mesmo sendo a palavra santa, de nada teve efeito! E como poderia, vindo da boca imunda de um herege como você.
— Em nome do Senhor, ordeno que saia deste corpo!!
— Está perdendo seu tempo, Marfim. HAHAHAHA! EU VIM PARA FICAR!! NÃO IREI ANTES DE TERMINAR A FESTA! — disse com uma voz distorcida e medonha.
As amarras se romperam como a bolsa de uma mãe, dando a luz a mais terrível das criaturas.
O padre se arrastou até o púlpito cortando suas mãos nos cacos espalhados pelo chão, e o que sobrara dos vitrais antes imponente e belos, agora se desfazem como a fé de todos ali presentes.
O medo enfim reinou, os fiéis corriam até a porta do templo, mas de nada adiantou, pois as portas não se abriram por mais que empurrassem.
Homens, mulheres, crianças e idosos, todos gritavam por suas vidas. Batiam na porta, a empurrando com força e pavor. Alguns correram para com as estátuas, se ajoelhando aos pés das imagens, clamando por perdão e socorro.
— Perdão. Perdão Senhor… Nos ajude! Eu imploro, tenha piedade de nós!!
Em resposta, obtiveram o silêncio. E quando a fé enfim desaparecia, um sentimento estranho e profundo tomou o íntimo de todos ali presentes.
Padre Marfim, olhando para trás, pode ver a imagem do seu salvador a qual brilhava com a luz majestosa do luar, mas o que antes era belo, se tornou tenebroso:
— Está chorando sangue… — disse uma senhora ainda sentada ao banco. — Está chorando sangue!!
As estátuas começaram a chorar sangue, as imagens pegaram fogo com gritos de dor e horror, enfim um sussurro na escuridão os fez perecer diante ao medo:
— Deixem… Deixem a escuridão cobrir o seu tormento. Deixem as trevas abraçar seus olhos, e… abafar seus… Gritos!
“Fuuuuuuuuuu”
"Como em um sopro do aniversariante, todas as velas se apagaram. O breu total, a completa escuridão, o terror chegava ao seu ápice com a chegada do medo do… Escuro."