Volume 1

Capítulo 9: O Rei de Mercúrio

A tarde de sábado havia chegado, e meu pai ainda não havia saído do hospital. Como o restaurante já tinha sido colocado à venda, tivemos que fechar tudo, o que significa que pude "relaxar" pelo resto da semana.

Não que isso me deixasse confortável. Na realidade, aproveitei que os ingredientes ainda estavam guardados por serem difíceis de transportar e pratiquei bastante em como ajustar o nível da pimenta.

Para ser sincero, acho que sou um pouco exagerado nisso. A Saki disse que comer o lámen que fiz era como “lamber uma fogueira”, mas acho que a pestinha só é fraca demais mesmo.

Mas hoje não tive coragem de chegar nem perto do fogão. E o motivo para isso, bom… acho que o fato de as minhas roupas estarem encharcadas de suor mostram. Tá calor para um caralho.

Tinha que fazer um trabalho na frente do computador hoje, mas a desgraçada da minha irmã pegou o ventilador para usar na sala. Depois de tanto tempo batendo a cabeça contra a parede, decidi que tinha que esfriar as coisas.

Tomei um banho fresco com a água mais gelada que consegui fazer sair e joguei as minhas roupas direto na máquina de lavar. Troquei por uma camiseta vermelha simples e uma bermuda jeans mais confortável.

Peguei minha carteira e passei pela sala de estar, percebendo que Saki estava deitada de qualquer jeito no sofá, com os olhos meio fechados e o ventilador fazendo com que seus cabelos claros voassem.

— Aí, Saki. Tô indo sair pra tomar um sorvete. Quer vir junto? — Fiz contato visual com ela e perguntei de boas.

A pestinha impulsionou seu corpo para frente e sentou, virada para o lado. Sem encontrar diretamente meu olhar, ironizou de maneira debochada:

Ah, é você que vai pagar para mim, né? 

Deixei escapar um sorriso com uma meia risada. Por algum motivo, hoje ela tinha me feito ficar alegre ao invés de irritado.

— E você lá tem dinheiro?

Saki achou engraçado e gargalhou. Fazia um tempo que não tínhamos esse tipo de interação. Óbvio, ela era uma pestinha que sempre enchia o saco, mas quando via sua cara desse jeito, me sentia em casa.

— Vai lá trocar de roupa que eu te espero aqui — falei, me sentando no sofá do outro lado.

Depois de ir ao seu quarto, minha irmã retornou vestindo uma camiseta com estampa de gato gordo e uma saia florida. Se não fosse a parte de cima esquisita, definitivamente diria que estava fofa. Uma pena que seja dela que estou falando.

— Vamos logo. Tá um forno aqui agora que desliguei o ventilador. — Bati os pés, impaciente.

— Não consegue parar de reclamar por um minu… — Enquanto ouvia ela, abri a porta de casa com um entusiasmo, só para revelar os portões do inferno.

Esqueça dentro de casa. Estava fresquinho perto dessa desgraça. Para você ter uma noção, assim que olhei para o lado de fora, vi a patinha de um pobre cachorro desavisado pegando fogo após pisar no asfalto.

— Onde diabos nós estamos e o que fizeram com o meu Japão? — Levantei a voz, enquanto minha cara derretia.

Saki simplesmente me puxou pela mão, já que eu não conseguia tomar a atitude de andar por conta própria. Apesar de ser bem pior que lá em casa, ela andava normalmente, sem ser completamente destruída pelas chamas do sol.

Talvez isso tenha a ver com o fato de eu ser beeeem mais calorento que o normal? É possível. Mas você não pode me convencer de que o Japão era pra ser quente assim! Aquecimento global, vá para o inferno!

Insatisfeita por ficar me carregando para lá e para cá, considerando que meu peso era incompatível com uma garota tão pequena, ela parou, fazendo uma expressão de desprezo.

— Deixa de ser tão fraquinho! A gente já tá quase chegando!

— Águaaa… Águaaa… — Meu rosto já estava desidratado e seco como uma uva passa. Ou era assim que me sentia.

Fui empurrado para dentro de uma zona. Era uma zona mágica, onde uma brisa suave e maravilhosa passava por todo meu corpo, soprando para longe todo aquele fogo infernal que me torturava. Sorri e até soltei algumas lágrimas. Expressei minha felicidade sem pensar duas vezes:

— Finalmente! Estou liiiiivre! A brisa dos deuses me salvou! 

E então desviei minha cara para o ambiente em que estava, olhares de pessoas me julgando como se eu fosse um perigo completo para toda a sociedade. Eram mesas de madeira, cadeiras… eu estava…

— Isso se chama ar-condicionado, imbecil! Para de me envergonhar, por favor. — Prestei atenção em Saki, que estava com sua mão na cara, fazendo um facepalm. — Chegamos. 

Ah, sim. Estávamos indo para a sorveteria, né? Tinha quase me esquecido disso. Bom, de qualquer forma, não é como se pudesse fazer algo sobre as pessoas me comendo com os olhos. Não é minha culpa se sou bonito, né…? Ai, Akazawa, para de ser idiota. Você vacilou legal.

Sentei em uma mesa na parte debaixo da sorveteria, mas percebi que Saki não estava comigo. Olhei para o balcão e vi que a garota já estava fazendo seu pedido. Conversando com a balconista e apontando para mim, acho que tava querendo indicar quem ia pagar a conta.

Depois de confirmar, voltou para a mesa e se sentou na cadeira, ficando bastante relaxada e inclinando suas costas no apoio da cadeira. Como posso dizer, parecia um moleque sentando. 

— Você pediu o quê? — perguntei, um pouco preocupado.

— A Taça de Morango Comemorativa da Primavera Ultra Deluxe. — Um monte de palavras-chave vieram e me perguntei se não estava se referindo a algum prêmio de campeonato.

Olhei no cardápio para ver o que era e na hora franzi as sobrancelhas. A desgraçada tinha simplesmente pedido a taça mais cara do lugar. Preciso lembrar que nem comecei a trabalhar ainda?

Hmpf… — Mostrei minha insatisfação com esse suspiro, mas deixei passar. — Tá bom, vai. Só que, se você não comer tudo, eu vou enfiar na sua goela à força.

Tempo passou, terminei de tomar minha casquinha com duas bolas de baunilha, e nada do pedido da Saki chegar. Fiquei um pouco insatisfeito e fui logo falar com quem atendia no lugar, perguntando o motivo.

Primeiramente se desculparam, mas logo responderam a pergunta. Parece que alguém na parte do cima do restaurante tava pedindo tanta coisa cara direto que eles não tinham tempo pra relaxar e fazer os outros pedidos.

— Mas isso não faz sentido. Não podem fazer eles esperarem um pouco, não? — discuti, bem irritado.

— É que bom… a pessoa que tá pedindo, er…

— Eu vou lá falar com esse folgado! — Explodi e subi as escadas, pisando forte como um cavalo.

Mas, quando cheguei lá, tive uma surpresa bem desagradável. As pessoas que haviam praticamente reservado a cobertura toda eram pessoas que conhecia bem. Aquele demônio havia trazido a Lyra para cá.

Enquanto Kuroda lambia calmamente uma bola de morango, a alienígena estava comendo com a velocidade de três mendigos quando recebem comida. 

Ao lado da mesa, no chão, dava para perceber um monte de taças e potes empilhados. Aquela torre de alguma forma não caía, mesmo indo do piso até a altura delas. Ela comeu tudo isso?

— Que porra é essa? Você não tava com a Lyra fazendo o documento dela? 

A minha contratante deu uma chupadinha de leve na ponta da bola e então olhou para mim de maneira confusa. Parecia não estar entendendo minha pergunta direito, então se clarificou:

— Fiz, ué. Aí eu trouxe ela para tomar um sorvete comigo. — Pegou o cartão plastificado do seu bolso e passou para mim. — Tá na mão!

Foi só uma meia-hora desde que elas saíram. Um cartório aberto no sábado devia estar bem cheio, é difícil acreditar que elas simplesmente não tiveram que enfrentar fila nenhuma para poderem ser atendidas.

De qualquer forma, isso não importa. Guardei o documento dela na minha carteira sem olhar e voltei a encarar aquela que parecia tão calma enquanto sua acompanhante estava jogando comida na cara como um porco.

— Por que a Lyra tá desse jeito? O que aconteceu? — questionei, muito preocupado.

— Bom, se eu tivesse que dar um palpite, acho que é porque essa é a primeira vez dela comendo açúcar. — Kuroda deu de ombros. — Deve estar meio doidinha por causa disso.

Arregalei os olhos e cerrei os dentes. Quer dizer que ela nunca tinha comido nada doce na vida? Mas, mesmo assim, não é normal. Será que o seu corpo reage de uma forma diferente a glicose? 

Fiquei desesperado e logo tomei o pote de sorvete que ela estava comendo, podendo ter, assim, uma boa visão do seu aspecto. Mas quando meus olhos se encontraram com sua cara, tomei o maior susto da minha vida.

Sua boca estava roxa e as partes do seu rosto mal se moviam. Parecia que estava paralisada, babando um pouco do sorvete que comeu. Isso… é como se ela estivesse congelada por ter comido tão rápido.

— Kuroda, sua maníaca! — Peguei a burguesa desgraçada pelo colarinho e sacudi. — O que diabos você fez!? O que diabos você fez!?

Isso fez com que a bola de sorvete em sua casquinha caísse em cima dela. Soltando um longo suspiro, olhou para mim com uma cara bem insatisfeita. Só que quando fui olhar para o lugar em que caiu, me distraí um pouco.

— Francamente, Akazawa. Olha o que você fez. Agora eu vou ficar toda melada. — Pegou um dos guardanapos na mesa e começou a limpar seu decote.

Virei o olhar por um momento, envergonhado, mas logo voltei para Lyra. Seu corpo já estava desabando, movendo a cadeira. Faltava muito pouco para desabar e cair com tudo, então segurei ela e a peguei no colo.

Droga! Devia ter ido para vigiar, mas não pensei que tinha deixado ela com uma pessoa que não faz ideia do que tá fazendo. Ou talvez fazia, mas simplesmente é uma pessoa terrível! É, essa opção parece mais correta.

— Tenho que levar ela de volta pra casa! Vamos! Você fez a merda, vai ter que me ajudar agora!

Ao ouvir isso, a culpada simplesmente jogou o guardanapo que estava usando para longe. Que porca! Mas não tinha tempo para reclamar, então simplesmente corri para a porta enquanto segurava minha princesa firmemente.

Ao descer as escadas de maneira cuidadosa, pude ver que Saki já estava comendo a taça que havia pedido. Ela era enorme. Com certeza uma pequena garota que comesse isso estava colocando açúcar no corpo suficiente para matar cinco cachorros.

— Ué… O que que tá pegando? — perguntou calmamente, parando de comer por um momento. — O que a Lyra tava fazendo aqui? Ela não foi…

E então, Kuroda desceu, deixando dinheiro no balcão e mandando a atendente de olho gordo ficar com o troco. Logo depois, foi até a mesa e olhou para nós dois conversando. Então bateu a mão na mesa, colocando uma nota nela.

— Você é a irmãzinha do Akazawa, né? — Apertou uma mão dela com as duas mãos e balançou, parecendo bem animada. — Desculpa, querida, mas a gente acabou tendo um problema e vamos ter que voltar para casa. Quando terminar de comer, pode pagar com isso!

Minha irmã olhou incrédula para o demônio e então para a nota. Seus olhos bem suspeitos e preocupados. Bom, não tinha como ser diferente, já que o que tinha sido colocado na mesa era.

— I-isso… é uma nota de 10 mil ienes. 

Uhum! — Kuroda foi me empurrando para a porta, fazendo com que eu quase desequilibrasse Lyra. — Fica com o troco para comprar algo legal para você!

E então, saímos do restaurante e fomos para um lugar um pouco mais afastado. O que veio a seguir foi aquele teleporte bizarro que é ativado com um simples comando em um relógio digital e boom, estávamos na frente da casa novamente.

Nesse meio tempo, Lyra já havia desmaiado e estava completamente inconsciente. Sem tempo a perder, a levei até o meu quarto e cuidadosamente posicionei a bela adormecida sob o colchão.

Respirei fortemente por um momento. Ainda não acreditava que algo assim tinha acontecido comigo. Voltei meu olhar novamente para a responsável por tudo isso e pensei no que falar, mas ela estava na frente:

— Você já viu o documento dela? — Uma pergunta seca veio.

É verdade, não tinha tempo de olhar como estava, mas se foi feito por um cartório acho que não tem nenhum problema com ele. De qualquer forma, conferir não custava nada, não é mesmo?

A primeira coisa que percebi quando observei a identidade, era o nome que estava escrito: Lyra Jundou. Meu sobrenome? Isso não fazia muito sentido, mas observei o resto das informações. Data de expedição, órgão, data de nascimento, tudo certo. Mas o nome do pai era…

— A-Akazawa Jundou? Você me registrou como pai dela? — Fiquei assustado ao ver isso. — Como assim? Essa garota tem um pai! Ela fica falando dele o tempo todo.

Heh. Eu achei que ia ser engraçado, aí fiz. Tecnicamente você anda sendo o responsável legal por ela, não? — O pouco caso que ela fez me irritava, mas seu argumento não estava de todo errado.

— Por que não colocou o pai e a mãe dela de verdade? — inquiri, impaciente.

Assim que fiz essa pergunta, fez com que alguma coisa se materializasse em sua mão a partir de um comando do seu teleporter. Aquele formato me era familiar. Era um broche de ouro. Espera, ela tem…

— Quando estava conversando com Lyra sobre seu histórico, ela me disse algo bem interessante. Imagino que você já saiba…

Franzi as sobrancelhas. Já tive algumas conversas onde conversamos sobre seu passado, mas, quando paro para pensar, não perguntei tanto quanto devia.

— O pai dela é o homem mais forte de Mercúrio. Foi o que ela me disse.

Sim… Naquela vez em que Lyra estava toda animada falando sobre as situações super perigosas na qual seu velho a metia, essa informação surgiu. Aparentemente, ninguém naquele planeta era capaz de superá-lo.

Mas quando paro para pensar nisso. Não, não seria possível. Óbvio que até aqui na Terra saberíamos sobre esse homem, mas para dizer que alguém como ela é sua filha… Seria difícil acreditar.

— O rei de Mercúrio… Lorde Ensalbur. Esse seria o pai dela? — Engoli à seco após fazer essa pergunta.

— É o que ela diz, né? — Kuroda parecia indiferente, como se estivesse desconfiada. — Mas a resposta está nesse broche.

— Ela disse que esse era o emblema… Esse seria o emblema da família real?

Satisfeita com as minhas perguntas, a garota fez com que o objeto desaparecesse. Um sorriso bem peculiar surgiu em seus lábios, parece que tinha um plano.

— É o que eu vou descobrir. Irei estudar esse broche e confirmar se é original. Provavelmente já terei os resultados da minha pesquisa quando você voltar lá em casa para seu primeiro dia de trabalho. — Colocou o seu dedo indicador no meu peito e então disse qual era minha missão: — Até lá, preciso que fique de olho nela e não deixe ela perceber a falta do broche.

Droga… Esqueci completamente que se a Kuroda está com esse objeto, significa que pegou da Lyra sem que ela percebesse. Quer dizer que acima de tudo tenho que cobrir o roubo? Isso é bem desconfortável.

Mas, ao mesmo tempo, não posso negar que estou curioso para saber mais sobre o quem exatamente é o seu pai. Se pudermos confirmar que é realmente o rei, isso seria uma bomba danada.

Por isso, acabei aceitando esse pedido sem questionar em nada. Se tem uma coisa que podemos ter certeza quando se trata dessa mulher, é que independente de ser um demônio, uma desgraçada ou qualquer outra coisa, ela também é um gênio.

Então, vou permitir. Vou permitir que a genialidade dessa garota que tanto desprezo me dê todas as respostas que preciso. Está na hora de conhecer mais sobre a verdadeira Lyra.



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