Volume 1

Capítulo 7: Um Pedaço de Escuridão

Era uma noite escura em um dia desconhecido. Apenas um pequeno garoto corria ofegante enquanto sua roupa era encharcada pela chuva intensa. Seus olhos, como rios vermelhos, se destacavam em meio às estrelas.

Sim… Esse garoto era eu. Apesar de nenhum calendário registrar esse evento, minha alma se lembrava de como meu coração foi partido e meus sonhos despedaçados.

Há um dia atrás, minha mana havia me prometido a luz. Abandonaríamos nossa vida de desespero e gritos e finalmente fugiríamos para a superfície.

Então por quê? Por que estou correndo sozinho? Por que a pessoa mais importante na minha vida acabou de ser… assassinada

Mas minha mente nem sequer tinha tempo para processar isso. Nesse beco vazio, onde todos se escondiam em suas casas, a febre e a dor lancinante em minha cabeça não cessava. 

Meu corpo, cada vez mais pesado, estava cedendo ao seu desejo de morrer. O doutor natural dele, que nunca havia me falhado, era incapaz de curar minha doença.

Pelo menos por enquanto, iria ter que lidar com isso e continuar correndo se quisesse sobreviver. É provável que o tempo que me foi ganhado seja o suficiente para despistar aquele homem. 

E então fugi, desesperadamente, mesmo que minhas pernas diminuíssem sua velocidade cada vez mais, mesmo que meus olhos mal pudessem enxergar.

Correndo… correndo… correndo… e o ambiente ficava mais escuro, minha visão cada vez mais turva, até que minhas pernas pararam de se mover. Sem velocidade, apenas mancava.

A última coisa que fui capaz de ver foi uma pequena placa perto de uma casa humilde. Me agarrei a ela tentando me manter de pé, mas meus joelhos tremiam.

Só mais um pouco, Akazawa… Só mais um pouco… Por favor…

Ploft!

Meu corpo estava tombado em algum lugar e uma agonia imensa latejava por tudo. Estava em um estado onde não conseguia ver nada, mas mesmo assim minha consciência ainda permanecia.

Ouvia vozes de um homem tentando me tranquilizar. Por que tinha outra pessoa aqui se caí sozinho no chão? Será que me pegaram novamente?

— Calma, garoto… Toma isso. — Senti alguém tocando minha boca e tentando abrir.

Se fossem eles, não estariam me tratando tão calmamente. Mesmo assim, estava em alerta e comecei a sacudir todo meu corpo, desesperado. Queria muito ver o que estava acontecendo.

Só que não adiantava de nada me mexer, pois o homem simplesmente pressionou meu corpo na cama novamente e abriu minha boca, colocando alguma espécie de líquido nela.

Que nojo! Era muito amargo e quis cuspir no exato momento em que entrou em contato com minha língua, mas no final das contas fui forçado a engolir.

— Isso aqui vai fazer você ficar melhor. Descansa um pouco.

Um líquido que é capaz de curar uma doença que minha regeneração ainda não conseguiu? Duvido muito, mas talvez ele seja algum cientista maníaco.

Consegui parar de me contorcer todo, mas ainda assim a dor não cessava e meus gemidos continuavam saindo sem que eu quisesse. A voz masculina novamente tentou me acalmar:

— Eu nunca vi uma febre tão alta. Continue descansando que eu vou chamar um médico…

— Não… precisa… — Tentei falar com a minha voz fraca. — Vou ficar bem…

Era óbvio, não sabia se isso era verdade. Nunca tinha sido atacado por esse Dispositivo Biológico antes, então não tinha informação sobre como minha regeneração lidaria com os sintomas.

Mas não sabia o quão perigoso era que algum cientista aqui pusesse as mãos em mim. Será que eu seria aberto para ser estudado? Fiquei com um medo irracional.

— Um moleque da sua idade não precisa ser tão corajoso assim, sabia? Só deixe alguém que sabe o que faz cuidar dos seus ferimentos…

— Por… favor… sem… cientistas… — No momento em que disse isso senti alguma coisa escorrendo dos meus olhos.

Ouvi uma respiração muito profunda. Não era de alívio, mas de medo. Fiquei em alerta, pois alguma coisa tinha assustado muito aquela pessoa que cuidava de mim.

— Sangue… Eu vou chamar agora mesmo! Não seja teimoso! Eu nunca vi isso antes! — Após esse grito, ouvi a voz do homem desaparecer no meio da escuridão.

Depois de ser deixado sozinho por mais tempo que podia me lembrar, pouco a pouco pude sentir minha agonia se aliviando. A visão, que antes estava em um breu completo, foi ficando apenas distorcida, até que finalmente pude enxergar.

Estava deitado em uma cama, isso dava para perceber. Ao meu lado tinha uma espécie de mesa com alguns vidrinhos de conteúdo desconhecido. Não tinha certeza do que era, então decidi ler o rótulo.

“Dipirona”, que nome esquisito. Decidi beber um pouco para ver o que era e… Meu deus! Era o mesmo líquido que foi colocado na minha boca. Que ruim!

Será que foi essa tal Dipirona que curou meus sintomas? Ou então meu doutor pessoal finalmente decidiu fazer algum efeito? Enfim… preciso sair logo daqui e…

— Olá! — Ao ir em direção a porta dei de cara com uma criança.

Cabelos claros e olhos verdes, essa garotinha era bem mais jovem do que eu. Estava com um vestido branco que parecia mais limpo do que eu costumava ver por aí.

Am… Oi…

— Pra onde você vai? Hein? Papai disse pra você descansar. Ele disse pra eu olhar você como uma boa garota.

Droga… Ele colocou uma vigia para impedir que eu escapasse! Isso é muito suspeito… Tenho certeza que ela é muito mais forte que aparenta e vou ter que usar a minha força…

— Poooxa, por favorzinho. Você tava gritando muito e não quero que piore. Eu vou ficar triste se você não deitar de novo.

Ela está ameaçando me trazer mais dor do que a que estava sentindo antes! Não é uma simples garotinha! Com certeza é um demônio pior do que qualquer coisa que eu possa imaginar.

Como pensei… estou muito fraco para lutar, então terei que dar um jeito de passar por ela sem agressão. Pense, Akazawa, pense!

— Vaaaamos… — O olhar que veio junto com esse pedido era semelhante ao de um cachorro pidão antes de eu chutar ele.

Me deitei imediatamente. 

Hm. Já sei! Que tal conversarmos um pouco já que você parece estar chateado, hein?

Não sei como conversar com a minha futura inimiga poderia ajudar, mas, enfim, se ela quer me dar suas próprias informações desse jeito, pode vir!

— Qual seu nome, hein, garoto? — Com um sorriso sincero veio para cima de mim.

Como se eu fosse te responder isso! Receba o tratamento do silêncio por achar que poderia me enganar e descobrir coisas úteis para usar contra mim depois.

— Não ignora eeeeeeeeeeu! — Seu choro preencheu meus ouvidos muito rápido e fiquei muito irritado.

— Tá, tá! Cala a boca! Meu nome é Akazawa, beleza? Qual o seu?

Depois que finalmente respondi meu nome, a garotinha parou de chorar, olhou para mim e fez beicinho. Parecia claramente insatisfeita comigo.

— Não vou dizer! Porque você me ignorou e me mandou calar a boca! Não vou mais falar com você!

Arregalei meus olhos e comecei a tremer todo meu corpo. Minha vontade era de esganar essa garota e bater sua cabeça na parede, mas me segurei por não ter noção do quão forte ela era.

Ficamos por um tempo com eu deitado na cama me recuperando e a garota sentada na minha frente com a cara virada para o lado. Parecia que realmente tinha se magoado com o que eu disse.

Não que eu realmente me importasse com isso, porque nunca me importaria com o que uma pestinha dessas pensava, mas decidi que iria jogar o joguinho dela para poder interrogá-la!

— Ei, garota, me desculpa. Eu realmente fui muito grosseiro sendo que você tá cuidando de mim. Não quero que você fique triste, certo? Me desculpa aí.

A pequenina virou os olhos para mim e ficou analisando por um momento, com uma expressão de desconfiança. Talvez também esteja pensando que sou um perigo ou algo assim.

— …Tá! Mas você vai ter que fazer algo para mim!

Espera um pouco aí! Você nem sabe quem eu sou e já tá querendo me mandar para uma missão! Que tipo de pessoa você é para fazer isso? Droga… estou realmente com medo agora.

— O-o que é que você quer de mim?

— Papai pegou o Teddy e escondeu porque eu respondi pra professora. Acha ele pra mim. Eu sou ruim em procurar coisas.

— Teddy? 

— Meu ursinho… — respondeu com um olhar bem triste.

Um urso? Essa garota possui um urso de estimação? Sabia… sabia que ela era perigosa. Mesmo que o animal não esteja aqui agora, domar um bicho desses não é brincadeira.

Andei um pouco ao redor do quarto, raciocinando um pouco, e então logo percebi uma inconsistência bem estranha nessa história dela.

— Mas onde seu pai iria esconder um urso inteiro se toda essa cidade é bem aberta? Eu acho que ele já deve ter matado ele.

— D-do que você está falando? Ele podia esconder aqui dentro de casa.

Dentro dessa casa? Um urso enorme? Só se tivesse alguma espécie de passagem secreta por aqui. O que não é algo muito difícil de se imaginar, considerando o poder que essa garota possui.

— Vamos procurar por uma…

Antes que pudesse completar meus pensamentos, a porta se abriu e um velho entrou. Ele parecia bem conservado, só mantendo seus cabelos grisalhos e uma barba raspada.

— O que você está fazendo de pé, garoto? — A voz que veio do homem foi a mesma que ouvi quando estava cego.

— Eu estava melhor, então pensei em…

Ele soltou um suspiro alto, como se estivesse me julgando, e olhou para a garotinha do meu lado. Parecia estar fuzilando-a com os olhos.

— Saki, você não pode ficar perturbando ele agora. Ele está muito doente.

— Mas eu não tava! Ele que levantou sozinho e eu… eu… mandei ele deitar! Isso!

Até parece. Foi você que queria me forçar a procurar um urso nessa casa. Se eu perdesse para uma fera dessas, com certeza voltaria para essa cama pior do que antes.

Mas obviamente deixei isso de lado e não entreguei a garota. Pelo que parece esse é o pai dela, o mesmo homem que me salvou e cuidou de mim até que eu acordasse.

Se ele sabe a situação que eu estava antes, é bem estranho que a minha recuperação tenha sido tão rápida. Talvez eu devesse tentar dar alguma desculpa:

— Aquele líquido que você me deu me fez melhorar. Já estou bem tranquilo agora. — Me movi livremente pelo quarto para mostrar minha saúde.

Mas ele não parecia estar comprando meu papo. Mesmo assim, não se importou muito e deu de ombros, partindo direto para a próxima pergunta:

— Você é de onde, garoto?

Engoli à seco. Não tinha como falar para ele de onde eu realmente era. Além de não saber com quem estava lidando, as pessoas daqui no geral não eram pra saber nada sobre mim.

— Sou só… um garoto de rua. — Na minha voz havia uma clara hesitação.

Hmmm… E por que estava na porta do restaurante?

— Eu não sei. Só estava andando pela rua quando não aguentei mais e desmaiei. Não faço ideia de onde estou.

Ele colocou a mão em seu queixo, fazendo uma expressão pensativa. Parece que não era muito comum para ele ter uma pessoa dormindo na frente de sua casa.

— Por ora, apenas se deite novamente. — E então colocou sua mão em minha testa. — Mesmo que não esteja mais com febre, seus olhos estavam sangrando até pouco tempo atrás. Isso com certeza não é normal.

Então aquilo que escorreu dos meus olhos era sangue. Não posso dizer que estou surpreso, mas ainda assim é algo bem assustador e nojento de se imaginar.

Como não sabia direito onde estava, decidi ser um pouco cuidadoso e ficar na cama. Óbvio que não tinha relaxado e confiado neles, mas andar por esse lugar desconhecido totalmente sozinho e sem rumo não parecia uma boa ideia.

Ao me ver deitando na cama, o velho pareceu relaxar e finalmente saiu do quarto. Só havia sobrado eu e a sua filha no lugar. Se não me engano ele disse que o nome dela era Saki.

Ei! Espero que você não tenha esquecido da sua promessa, Bakazawa! — No momento em que o pai virou as costas, a filha decidiu me perturbar.

— Esse não é meu nome, sua idiota! É Akazawa! — Aumentei meu tom, irritado.

— Que seja! Você vai me ajudar a encontrar meu ursinho, não vai? 

Olhei para os lados, um pouco sem jeito. Apesar de ter concordado, não estava muito disposto a enfrentar um urso. Por isso, decidi fazer a pergunta mais importante:

— Esse seu urso é treinado, certo?

— Do que você está falando!? — Seus olhos saltados e seu rosto inclinado indicavam que ela estava confusa.

— Perguntei se seu urso ataca humanos.

Saki começou a rir bem alto, como se eu tivesse contado a piada mais engraçada de todas. Tá, eu sou a alma da festa quando quero, mas com certeza não era meu objetivo agora.

— Como assim? Como um urso de pelúcia vai atacar humanos, seu imbecil?

Nesse momento, parei completamente. Esse tempo todo eu tava com medo dessa garota, dessa casa, desse velho e o urso dela era só um brinquedo?

Nossa, eu sou realmente muito idiota. Provavelmente eles são só alguns civis normais. Agora estou realmente arrependido de não ter quebrado a cara dessa garota quando tive a oportunidade.

— Tá. Eu vou achar essa droga pra você! — Por mais que ela fosse irritante, uma promessa não é algo que você simplesmente quebra.

Uhum! E é bom você achar! Porque você pro-me-teu!

Não aguentava mais esperar. Minha ansiedade continuava aumentando a cada minuto mais que era obrigado a passar nesse hospital. Meu coração estava acelerado e eu estava em meu limite.

De alguma forma tinha perdido totalmente a percepção do que estava ocorrendo ao meu redor, pois de repente fui acordado do meu transe com um grito.

— Akazawa!

Essa voz era inconfundível. Minha companheira alienígena estava tentando chamar minha atenção balançando a sua mão na minha frente.

Olhei para ela com meus olhos marejados. Já fazia um tempo desde a última vez que eu havia chorado e não estava acostumado com isso.

— Aqui! — Ela me passou um pacote de salgadinhos. — A Ikki… Ikki… Ikki! Ela me pediu pra te entregar isso.

Ah… Obrigado, mas não tô com fome.

Na realidade, meu estômago estava roncando e pedindo por alguma coisa para comer. Mas não queria. Não queria fazer nada nesse momento além de ficar preso nos meus próprios pensamentos.

E por isso era tão difícil encarar a Lyra. Porque sentia que qualquer coisa nesse momento poderia me fazer explodir. E isso era algo que eu não queria de jeito nenhum.

Por isso, só fiquei observando enquanto a loira devorava o salgadinho com um pequeno sorriso nervoso. Continuei tremendo minhas mãos e movendo minhas pernas apenas esperando por uma resposta.

Mas a crueldade se alastrou. Se alastrou por mais duas horas, até que finalmente a atendente deu um fim no meu desespero.

— Você pode ver ele agora. 



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