Volume 1

Capítulo 7: Razão de Lutar

Este local… Não imaginava que teria que voltar para cá tão cedo. Da última vez, a atmosfera já não era muito boa, mas agora… Está opressiva.

Sim, de fato, não tem como comparar os sentimentos. Visitar uma desconhecida, alguém que só havia encontrado por acaso, é tão diferente de ver meu próprio pai.

O velho, que estava sempre tão cheio de energia, sempre pronto para me punir por erros bobos, mas que, ainda assim, tinha a alegria de me dar conselhos na cozinha e na vida…

Esta pessoa agora parecia tão fraca. Tão vulnerável.  Mesmo que estivesse acordado, não sentia sua presença tão vívida quanto antes. E então, o silêncio era a única coisa que podia oferecer a ele.

— E então? Vai ficar aí só olhando? É pra isso que interrompeu meu descanso?

Aquilo me acordou. Apesar de tudo que havia acontecido, a pessoa na minha frente ainda era meu pai. Por isso, finalmente consegui pôr para fora tudo que queria dizer.

— Seu corpo… — Disse com pesar e respirei fundo. — O que eles fizeram com seu corpo?

A resposta surgiu em uma risada descontraída. A expressão de alguém que parecia não se importar com a vida ou morte. Mas sabia que aquilo era apenas para me tranquilizar, então não pude devolver na mesma moeda.

Por isso, ao perceber que não havia melhorado o clima em nada, o velho ficou com um sorriso sem graça e respondeu à minha pergunta:

— Eu levei uma bela surra. Meus músculos estão dormentes e eu mal consigo me levantar. 

— Tem conserto? — Com a minha voz ríspida, perguntei friamente.

— Tem…

Junto com essa resposta, consegui perceber ele olhando para o lado, como se estivesse tentando evitar meu olhar. Franzi as sobrancelhas e pressionei:

— Tem mesmo? 

— O médico disse que meu corpo vai se recuperar em breve… Só preciso de mais um tempo de repouso com os cuidados adequados.

Dessa vez ele parecia mais convicto do que dizia, mas ainda estava achando um pouco estranho a atitude dele. Porém, não era bom ficar questionando alguém que passou pelo que ele passou, então parei.

— Você acha que a internação vai sair muito caro? Ainda temos que pagar aquela dívida… — Levantei uma outra questão importante.

Ah, nem te preocupa tanto com isso. Aquela sua amiga passou aqui antes de você e me disse que vai arcar com os custos de tudo para te pagar um favor.

Cerrei meus punhos por um momento. Ele só podia estar falando da Kuroda. Fico feliz que ela decidiu ajudar com isso, mas não conseguia esquecer que ela ignorou meu pedido de ajuda e nos deixou nessa situação.

Se ao menos ela tivesse pagado aquele agiota desgraçado antes… Meu pai não estaria aqui agora. Aquele demônio só fez isso para tentar entrar na minha pele e se pagar de boa samaritana.

— Então, você vai trabalhar para ela, né? Pelo que ela me disse, você passou na entrevista…

— Eu!? Claro que não… — Demonstrei claramente minha indignação. — Agora estou ainda mais decidido em não ir. Você vai precisar de ainda mais ajuda pra tocar o restaurante!

Suas sobrancelhas ficaram baixas e ele demonstrou um olhar mais deprimente do que um velório. Como se essa não fosse a resposta que queria.

Mas isso quer dizer que desejava que eu fosse? Por que iria me querer longe do restaurante? Longe de casa? Alguma coisa tinha nisso.

— Você… Você quer que eu vá?

— É que… eu… e-eu estou… — Tropeçou nas palavras.

— Droga… Desembucha logo! — O apressei, já muito alterado. 

Mas logo em seguida me arrependi, pois aquela resposta era algo que nem nos meus piores pesadelos eu esperava ter que ouvir.

— Mesmo depois de eu me recuperar, as minhas mãos nunca voltarão a se mexer como antes. Eu nunca poderei voltar a cozinhar. — De maneira desleixada, com aquele mesmo tom áspero e cruel, ele soltou a bomba.

Aquelas palavras me atingiram mais forte do que mais 10 tiros de pistola por todo o meu corpo. Minha mente era incapaz de processar essa resposta.

Essas mãos… Essas mãos, que me ensinaram tudo que eu sabia desde pequeno, nunca mais iriam cozinhar? Tudo por causa de uma dívida que ele já tinha pago? 

Fiquei em silêncio completo. Minha cabeça doeu. Não queria acreditar naquilo, não podia aceitar. Se ao menos eu tivesse chegado um pouquinho mais cedo…

— Você não é culpado, Akazawa… — Ele tentou me tranquilizar, mas não adiantava. Sua afeição entrava por um ouvido e saía pelo outro.

— O que vai acontecer com o restaurante…? — perguntei, apesar de já imaginar para onde isso iria. Meu corpo tremia só de pensar na resposta.

Consegui ouvir perfeitamente o som do meu velho engolindo em seco. O que viria seguir, nem mesmo ele queria ter que admitir. Mas, mesmo assim, a explicação veio como um tufão.

— Eu não sei como… Como te dizer isso, mas vamos ter que vender o restaurante. Não tem como manter.

— Nem se… se eu continuar trabalhando nele pela noite? — Tentei negociar. 

A resposta foi um aceno negativo com a cabeça. Meu pai não seria convencido tão fácil. Afinal de contas, era um fato que a maior parte dos clientes vinham no horário do almoço, já que nossa localização não era agradável à noite.

Ou seja, abrir a casa apenas nesse na parte noturna seria ainda pior para nossas finanças, pois sairíamos no prejuízo. Não daria nem pra pagar o caldo que prepararíamos com antecedência.

Mas queria porque queria salvar o restaurante, então tinha que pensar em algo para mudar sua mente. Algo que poderia resolver todos os nossos problemas. E essa resposta era:

— Eu vou ser o chef! Em tempo integral! — exclamei com animação. — Vou largar a escola e assim poderemos…

— VOCÊ ESTÁ LOUCO! — Mesmo debilitado, aquele velho sabia gritar. — Akazawa, pelo amor de deus, pensa um pouco! — Seus olhos já estavam marejados.

— Por quê…? Qual o problema? Assim podemos… salvar o nosso lar. — Também queria chorar.

O patriarca respirou fundo para se acalmar, mesmo que já estivesse fungando um pouco. Estava deixando sair, pouco a pouco, todas as emoções que guardou lá dentro.

— Porque eu tenho orgulho de você, moleque! — Sem mais restrições, admitiu. — Você aprendeu tudo tão rápido na cozinha… e ainda entrou para o clube de culinária do Colégio Ishikawa. Você está no caminho pra se tornar muito maior que eu, muito maior que esse restaurante!

De novo esse papo. Foi o mesmo que a Presidente me disse. Que estava me restringindo ao decidir ficar no restaurante. Mas aquele era meu lar, foi onde aprendi a cozinhar. Se não fosse por ele, nunca teria nem entrado no Colégio Ishikawa.

Por isso, não conseguia imaginar abandoná-lo. Só o pensamento fazia meu coração acelerar, e não de um jeito bom. Só que ouvir meu pai dizendo aquilo deixava meus sentimentos conflitantes. Estava decepcionando ele? Por continuar teimando em manter nosso lar vivo?

— Akazawa… Já está na hora de você correr atrás dos seus sonhos. — De um jeito frio, disfarçando a emoção, ele prosseguiu. — Eu sei o quanto você trabalhou duro por nós. O quanto você ama esse lugar. Mas não vou permitir que você jogue seu futuro fora por isso. E é a minha última palavra.

Rangi os dentes por um momento. Estava me sentindo derrotado, culpado e irritado por quererem jogar fora o lugar onde morei por tantos anos. Acabei me esquecendo o motivo que estava ali, que era dar apoio para meu pai.

Saí do lugar correndo, não querendo mais continuar aquela discussão ou pensar no que iria acontecer de agora em diante. Voltei para o hall de entrada do hospital, onde encontrei aquelas duas pessoas.

Lyra estava brincando de jogar salgadinhos para cima e tentar pegá-los com sua boca para comer, enquanto que Kuroda olhava seu celular e bebia refrigerante direto da lata. 

Ao me ver, Kuroda acenou com um sorriso, mas não estava afim de lidar com ela agora. Minha mente estava uma bagunça completa e não conseguia perdoá-la por ter ignorado meu pedido urgente de ajuda.

Só que era óbvio que ela não me deixaria em paz. Ao perceber que tentava ignorá-la, se aproximou de mim com a lata de refrigerante na mão. Sua feição, como sempre, era de um sorriso irritante. Mas ignorando meus protestos internos, soltou sua voz ao estender a bebida para mim.

— Tá viajando? — Soltou uma risadinha. — Você não comeu nada até agora, pelo menos beba um pouco. É KuroCorn. O melhor de todos! 

— Refri de milho é um nojo… Você só toma isso porque é da sua empresa, né?

— Mau gosto! Minha empresa tem vários sabores de refri. Eu criei todas as receitas e posso confirmar que a de milho é a mais saborosa. Depois que você toma essa, nunca mais vai querer outra coisa.

Estalei a língua. Esse tipo de discussão não era um uso proveitoso do meu tempo, então fiz a minha cara mais fechada e olhei na sua direção, em silêncio, para mostrar que não estava pra brincadeiras.

— Aliás, seu pai te falou sobre a proposta que eu fiz para ele? — Deixando o sorriso de lado por um momento, ela perguntou.

Levantei as sobrancelhas, bastante curioso. Talvez meu pai quisesse falar sobre algo, mas saí antes que pudesse ouvir. Uma proposta da Kuroda? Isso com certeza não era coisa boa…

— Não — respondi secamente.

Aaah… Vou ter que me repetir. — Revirou os olhos, em tédio. — Certo, escuta. Basicamente, o seu pai já decidiu que vai vender o restaurante pela condição dele. Então vocês vão precisar achar outro lugar para morar, certo? — Olhou para mim, ansiando pela resposta.

— Certo… — falei de forma rabugenta, irritado com a certeza que nossa casa seria vendida.

— Então, se você vai trabalhar comigo, posso conseguir um apartamento no meu condomínio por um descontinho bacana. Aí você vai ser capaz de sustentar a família com o seu salário. Parece bom para você?

Bom? Bom para mim? Essa garota está se metendo nos meus assuntos logo depois de não ajudar quando eu precisava salvar meu lar? Agora que está tudo destruído, ela quer aproveitar pra conseguir uma boquinha?

Fiquei irritado com isso. Com a forma como ela agia. Parecia que não se importava nem um pouco com o fato de que alguém tinha acabado de perder sua capacidade de trabalhar. Suas ambições, sua paixão.

Então, a única coisa que restava era falar umas poucas e boas pra essa arrogante. Soltei um suspiro bem fundo, mostrando minha insatisfação, e comecei:

— Você tem alguma noção do que acabou de acontecer? Por culpa sua meu pai está nesse hospital agora e você ainda tem coragem de chegar aqui antes de mim e fazer uma oferta para se favorecer?

Ela se afastou um pouco de mim, mas não parecia ser por medo. Não… A próxima coisa que ouvi foi uma risadinha. O riso de alguém que achava que tudo era uma piada.

Óbvio que não caiu na gargalhada, mas cerrei meu punho pela falta de respeito e senti uma grande vontade de quebrar seus dentes.

— Você tá dizendo que é minha culpa, Akazawa? — Mostrou seus dentes bem cuidados tentando se segurar pra não rir mais alto. — Mas não fui eu que fiz uma dívida grande que levou anos pra pagar… Não fui eu que escondi isso da minha família… E, mais do que tudo, não fui eu que menti que fui assaltada pra não dizer a verdade pra minha filha.

— Você tá dizendo que a culpa disso é do meu pai!? Que a culpa é dele de ter sido espancado? Você quer mesmo morrer tanto assim? — Ameacei, já não aguentando mais essas provocações.

— Então a culpa é de quem, Akazawa? Hmmm? 

Sem se intimidar nem um pouco, reafirmou o que disse. Não havia nem um pingo de medo, mesmo que meus gritos já ecoassem por todo o hospital.

— Não fui eu, nem a Lyra, nem ninguém, Akazawa. Seria babaquice sua tentar jogar a culpa em alguém só porque não conhece ela direito. Só pra se sentir melhor e não questionar seu pai. — Suspirou fundo e me olhou de baixo com uma expressão séria, como se estivesse me desprezando. — Já pensou se ele não paga? O que ia acontecer com sua irmã? Ele foi um irresponsável!

Respirei mais rápido. Aquela conversa não me agradava nem um pouco. Por mais que estivesse querendo bater nela até agora, não conseguia negar as palavras que saíam da sua boca. Aquilo era a mais pura verdade.

— Mas, sinceramente, eu não me importo muito. Não me divirto assim desde o último mordomo… — Passou a mão nos meus cabelos. — Eu sei que você vai vir, Akazawa. Mesmo que tente negar o que sente, sei que você quer algo diferente nessa sua vida medíocre. Por isso decidiu cuidar dessa alienígena.

Fiquei sem palavras ao ouvir isso, mas a magnata não se importou. Ao invés disso, fechou seus olhos e, por um breve momento, deu um sorriso realmente sincero.

— Eu te garanto que, assim que entrar na minha casa, nunca mais ficará entediado! — Com essas palavras, se retirou do meu caminho.

Observei enquanto aquela garota ia embora. Minha mente, antes tão hostil, agora tinha tantos pensamentos confusos na mente. Essa pessoa era tão diferente de qualquer outra que conheci.

Não… Não é possível que eu realmente esteja intrigado por esse demônio! Mesmo depois de ver a cara dela enquanto brincava com meus sentimentos e me fazia ficar ainda mais irritado…

Sentei na cadeira ao lado de Lyra, encostando minhas costas e levando minha cabeça para trás. Estava realmente cansado depois de todos os acontecimentos do dia.

Nesse momento, Lyra estendeu mais uma vez o pacote de salgadinhos para mim. Olhei para ela, baixando as sobrancelhas, bastante triste. Ela ainda estava preocupada que não havia comido?

— Obrigado, Lyra. — Acabei cedendo e comendo um pouco. Meu estômago já roncava mesmo.

— Você tá irritado comigo? — perguntou com um tom monótono.

Desviei o olhar. Talvez estivesse com raiva há alguns momentos atrás, mas de alguma forma, parecia que isso não importava mais. Me sinto um idiota de certa forma.

Mesmo que a alienígena tenha provocado os agiotas, ainda estava lutando por mim, por minha família. Sem nem mesmo eu pedir. Isso é mais do que devia esperar de alguém que está na minha casa há tão pouco tempo.

Óbvio, Kuroda sempre me irritava, então era fácil gritar com ela, mas não conseguia sentir nem um pingo de ódio por essa loira na minha frente. Mesmo que fosse agressiva, mesmo que isso causasse problemas, isso não mudava nada.

Porque ela podia mudar… Assim como eu mudei com a ajuda de um certo cozinheiro teimoso, ela só precisava de alguém assim ao seu lado. Depois de salvar essa vida, é óbvio que eu tenho essa responsabilidade.

— Lyra, pelo que você luta? 

A garota inclinou sua cabeça para os lados, tentando entender do que eu falava. Parecia que essa pergunta não tinha algum significado para ela, mas, mesmo assim, tentou me responder:

— Porque sou uma guerreira.

— E por que guerreiros lutam? — Repeti a mesma linha de questionamento.

— Para ficar mais forte. — Deu de ombros. Para ela era tudo tão simples.

Dei uma risada. Conversar com alguém com um ponto de vista tão diferente, mas que não me dava nos nervos, era algo interessante. Não queria mudar totalmente a forma como via o mundo, mas adicionar a ela.

— Isso te torna mais fraca, sabia? — Provoquei de leve.

— Como ficar mais forte me torna mais fraca?

Reclinei na cadeira olhando para o teto. Falar sobre esse tipo de coisa me traz uma certa nostalgia. Porque lembro daquela vez em que meu velho teve a mesma conversa comigo.

— Não existe determinação quando se luta por lutar. Você está fazendo como hobbie, é quase uma diversão, um jogo. Mesmo que você perca. Mesmo que morra, não existem riscos nisso.

— A sua própria vida não é o bastante? — Seu olhar agora parecia capturado por minha fala.

— Se você luta por sua vida sem motivo, é apenas um suicida. Logo, ela não deve valer muito para você — retruquei rapidamente. — Não… o verdadeiro poder, a força que pode derrotar qualquer coisa, é quando você luta com ambição. Quando você quer algo que só pode ser conseguido assim e precisa conseguir de qualquer jeito.

Lyra recuou um pouco. Aparentemente, havia colocado essa pequena cabecinha para pensar. Me debulhei em satisfação. Era exatamente isso que eu queria.

— Então, se você tem algum objetivo para lutar, também tem que seguir ele para escolher quando não lutar. Por exemplo, porque você lutou, meu pai acabou tendo a mão quebrada e agora estamos sem casa. — Dei uma risada de nervoso. Por mais que odiasse lembrar disso, tinha que colocar isso na cabeça dessa criança grande.

— Então… Quando não lutar?

— Sempre que tiver outra forma de conseguir o que você quer, você não luta. A violência é cara e pode causar muitas coisas ruins para você e para todo mundo que quer proteger. — Terminei minha fala. — Lembre-se disso. Sempre que for lutar, pense “Por que vou lutar?” e “Tem outra forma de conseguir o que eu quero sem lutar?”.

Não esperava que ela entendesse isso tão rápido depois de anos de doutrinação por parte de seu pai, mas, se apenas um pouquinho do que falei passou pelo seu ouvido e ficou na alma, havia cumprido meu trabalho.

A realidade é que eu mesmo não sei porque motivo luto ou deixo de lutar. Isso é algo difícil de descobrir até quando entende o significado desses ensinamentos.

Por exemplo, estou lutando pelo restaurante? Ou pela minha família? Todas essas decisões difíceis que tenho que tomar agora se refletem nisso. Abandonar um estabelecimento que estivemos tocando por tanto tempo, independente do que eu sinta, é a melhor opção.

E isso é algo que nunca seria capaz de decidir se não tivesse alguém para me ensinar como fazer. Por isso, quando olho para essa pessoa na minha frente, percebo uma oportunidade. Uma oportunidade de passar o legado do meu pai para frente.

— Lyra, vamos para casa. — Me levantei da cadeira, olhando para frente.

Talvez não seja o melhor homem para fazer isso. Talvez não saiba nem cuidar de mim mesmo. Mas isso não importa. Eu prometo, por tudo que é importante para mim… que darei meu melhor!





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