Livro 1
Capítulo 07 (Ray): Visita indesejada
O enorme cabelo de Ray parecia ter vida própria quando o vento batia nele. Já tentou se livrar dele antes, mesmo que todos a sua volta sempre dissessem que ela não servia para ter cabelos curtos. Uma moça bonita e recatada como ela deve sempre ter longos cabelos. Foi o que Jaden disse ter ouvido da boca de Cristina, sua vizinha mais falsa, certa manhã. Ela costumava ser indiferente a opinião dos outros, estava acostumada e até gostava do cabelo, mas quando o vento batia e ele levantava voo... chegava o momento em que rezava por uma tesoura.
Agora ocupava-se em lavar o montado de roupas sujas da semana. Sua mão vermelha de tanto esfrega-las eram um recado para não deixar se acumularem mais. Já tinha se estressado o suficiente por um dia e a fome, sono e o suor escorrendo por todo corpo não ajudavam ela a relaxar. O sol estava tão quente no meio do nada onde morava que jurou ter desmaiado de calor quando Jaden a pegou desacordada atrás da casa outro dia.
— Eu juro, Jaden! Desmaiei de calor!
— Não seja mentirosa! Até trouxe um travesseiro pra dormir.
— Eu... — Não teve defesa depois dessa. Tinha esquecido totalmente do travesseiro em sua cabeça.
Não era sua culpa sentir tanto sono.
Ao menos estando à beira do córrego poderia se refrescar. Um lado bom para a situação, não é?
— Ray! Anda logo com isso — Jaden gritou do varal de roupas.
A tarefa dela era simples: esfregar as roupas e estende-las no varal. Mas bastou uma suplica ao primo para ele dividir o trabalho com ela.
— Calma! Estou quase terminando! — Olhou para a cesta de roupas e quantidade a assustou. — Na verdade... talvez... demore um pouco.
— Ray! Não! — Ray ouviu seus resmungos e quase sentiu pena — Eu vou entrar! Quando terminar me chama!
— Quê? Não! — berrou.
Jaden não respondeu então ela decidiu ir até ele. Subiu o moro que levava até a casa e entrou.
Não esperou o primo reclamar e sentou no sofá. Respirou aliviada quando suas costas relaxaram.
— Você não deixou as roupas beira ao córrego, deixou? Se elas se perderem nele, minha mãe vai ficar furiosa. Vai sobrar até pra mim...
— É claro que não. — Não lembrava em como as deixou, mas não poderia dizer isso — Coloquei bem longe dele.
— Menos mal. — Ele deitou a cabeça no sofá e fechou os olhos. — Descanse um pouco e volte pra terminar. Minha mãe já vai chegar com o Alexandre.
— Não vou descansar agora. Só vim pegar mais sabão. — Ray era boa em se fazer de sonsa. — Deixei o que estava usando cair no córrego. Onde está mesmo?
— Embaixo do armário, no pote branco. Você sempre deixa os sabões cair. Preste mais atenção.
— Sim, desculpa. — E correu de volta ao córrego torcendo para as roupas ainda estarem em terra.
Estavam. Se sentiu segura quando viu que elas nem estavam tão perto do córrego assim. Não havia contado mentiras para Jaden, afinal. Revirou as roupas três vezes para garantir que nenhuma tinha se perdido e só deu falta de uma peça: uma saia sua comprada há uma semana. Usou tudo que tinha nela e agora estava perdida. Quase chorou. Seria esse o karma por mentir e ser preguiçosa? Foi pesado demais.
Colocou todas as roupas na bacia e voltou a subir o moro. Não lavou nem metade do que devia, mas não importava. Perder a saia a frustrou o bastante para deixar de trabalhar.
Entrou na casa e jogou a bacia no chão, nem tão bruta, nem tão delicada, só alto o bastante para acordar Jaden. Ela suspirava alto.
— Que isso? — Jaden perguntou. — Terminou de lavar?
Ray quase não respondeu.
— Não — falou sentando ao sofá.
— E cadê o sabão?
— Aah, sei lá! Por que se preocupa tanto com esses sabões? Devo ter deixado cair no córrego de novo. Tanto faz.
Isso a irritou mais do que devia.
— Ray! Esses sabões são caros! Minha mãe vai te castigar por isso. E você nem terminou de lavar as roupas...
— Eu perdi minha saia! A que comprei semana passada! Deixei cair no córrego também...
Jaden tentava segurar o riso.
— E você usou essa saia? Por que estava na roupa suja?
— Não usei, mas quis lavar. Sabe que ela não é nova.
— Bom, sinto muito por sua saia, mas você ainda tem que lavar as roupas. Isso se ainda tiver sabão...
Errava muito com Jaden. Sabia.. Ele sempre a ajudava com suas tarefas e ela não conseguia se esforçar um pouco para conclui-las? Sentiu-se uma garota rica e mimada. Dando ênfase no mimada e tirando o rica da frase. Amava sua família e sempre foi grata por tudo que eles se dedicavam a fazer por ela, mas não reclamaria (e tinha certeza que eles também não) se o patrimônio deles fosse maior. Eram tão pobres que Ray tinha certeza de que um mendigo da capital do reino vivia em condições melhores.
Decidiu que lavaria as roupas. O estoque de sabão da casa acabou, mas Ray achou um coberto por terra no fim do moro. Só ficou na dúvida se seria o primeiro ou o segundo... bom, não importava. Tinha o sabão em mãos e uma tarefa a cumprir. Jaden ainda teve coragem de oferecer ajuda e ela estaria mentindo de novo se dissesse que não pensou em aceitar. No fim, precisou recusar.
Faltando poucas peças a serem esfregadas, Ray ouviu alguém gritando não muito longe de onde estava. Uma cerca de arame cercava quase toda a área em que morava, e o grito que ouviu vinha da direção onde poucas pessoas tinham coragem de estar.
Ray nunca viu nada. E pensava que se nunca viu, nada existiria para além da cerca. Conhecia sua vizinhança bem o suficiente para saber que não era a única mentirosa morando ali. Os boatos de lá ser perigoso começaram quando sua vizinha Cristina jurou pela vida de seus filhos (Ray duvidava que ela tivesse filhos) que viu um Hakan se alimentando de uma cabra no âmbito do campo. Rose, a mãe de Jaden, estava com Ray nessa e não duvidou que Cristina havia inventado isso para chamar atenção. A mulher gostava de se gloriar.
Depois do segundo grito, Ray começou a temer por algo que nem acreditava. Largou as últimas roupas na bacia e subiu mais uma vez o moro. Olhou na direção de onde o grito veio e não enxergou nada. O sol forte a impediu de ver qualquer coisa. Se aproximou cobrindo os olhos e viu o talhe de três pessoas correndo para a cerca.
Gritou por Jaden e ele veio no mesmo instante. Juntos, eles se aproximaram da cerca esperando que os desconhecidos chegassem até eles. Mesmo que parecessem despreparados, Jaden deu sinal verde para Ray fazer o que tivesse que ser feito caso a situação fugisse do controle.
Agora que Ray conseguia enxergá-los com nitidez, percebeu que errou na contagem. Havia quatro pessoas no grupo; sendo um homem, uma grávida, uma criança e um (ou uma, ficou na dúvida) adolescente. Estavam horríveis e pelo cheiro não tomavam banho há muito tempo. Tinham pequenos cortes pelo corpo e suas roupas pareciam ter entrado em uma briga com algo bem afiado para estarem tão rasgadas. Sem dúvidas o pior estado era o do homem. Ray não saberia dizer exatamente o porquê, mas as mangas da camisa queimadas e a bota que ele usava meio derretida, meio inteira, traziam um aspecto problemático. Foi o que conseguiu observar do grupo a primeiro momento. A mulher estar grávida também a intrigou, mas perdeu o raciocínio quando o homem começou a falar.
— Boa tarde a vocês, jovens. — Mesmo com a cerca os separando, Ray julgou estar perto demais do estranho. O forte cheiro vindo dele estava a incomodando, então deu um discreto passo para atrás. Ele pareceu ter notado seu recuo, mas prosseguiu com a fala. — Serei direto com vocês porque gosto que sejam comigo. Não queremos abrigo, comida, água ou qualquer outra coisa que estranhos costumam pedir a vocês. Como podem ver, estamos em um estado lamentável e minha mulher está grávida...
O homem parou de falar. Talvez estivesse esperando algum comentário de algum dos primos. Ray não disse e nem diria nada. Acabou sobrando para Jaden dizer um conciso “sim”.
— O problema é que o bebê está para nascer — voltou a falar —, e sem auxilio para o parto eu temo pela vida dele. Dele e de minha esposa. Não quero força-los a serem transigentes, mas se puderem ajudar... terão minha eterna gratidão.
E o que ganhamos com sua gratidão? Ray pensou em dizer, mas não podia ser tão desaforada com estranhos. Deixaria para Jaden resolver a situação. Até simpatizou com o moço e sua família. Gostaria de ajuda-los. Não costumava se vangloriar, mas já havia assistido diversas crianças nascerem e tinha certeza de que conseguiria ser a parteira da mulher. Melhor que isso só se Rose estivesse em casa. Ela sim estava costumada com o trabalho.
Ray já estava conformada que faria o parto da mulher. Mesmo temendo, sentiu vontade de ajuda-los. “Quem faz o bem recebe em dobro”, era o que diziam por aí. Talvez até ganhasse outra saia do universo se a criança nascesse saudável.
— Gostaríamos de ter sua gratidão... mas infelizmente não podemos ajuda-los — Jaden respondeu, frio e inexpressivo. Ele se tornava isso quando precisava negar algo. Ray ficou surpresa com a resposta. Não imaginou que o primo os dispensaria tão depressa, mesmo que por motivos óbvios. No fim, eles eram só estranhos batendo à porta. O risco de confiar seria alto.
O homem teve reação. Sem se indignar, aproximou-se mais da cerca. Queria chegar o mais perto que podia de Jaden. Ray estranhou e chegou mais perto do primo também. No primeiro ato agressivo do homem ela estaria pronta.
— Desculpa, ainda não me apresentei — disse o homem. — Me chamo Hidel. — Sorriu de canto. — Gostaria de saber o nome de vocês também.
— Meu nome é Jaden. É um prazer, Hidel. Mas como disse, não podemos ajuda-los.
— Entendi essa parte, Jaden. Entretanto, tenho outro pedido. Se não pode nos ajudar, peço que nos deixe passar por sua cerca. Há uma comunidade perto daí, não há?
— Há, sim — Jaden encarou a prima, parecia aflito e ela também estava ficando.
— Ótimo! Alguém de lá certamente nos ajudará.
Como Jaden diria a este homem que não poderia deixa-lo passar?
Ray pressentiu sua fúria, então se concentrou e esperou.
— O que foi? — Hidel perguntou. — Também não vai nos deixar passar?
— Desculpa, é que... é que não dá. — Agora Ray sentia a lamentação do primo.
Hidel assentiu com a cabeça, e mesmo que seus olhos mostrassem inquietação, ele não fez nada.
— Eu que me desculpo. Me enganei em achar que um marcado ajudaria outro. Mas não é minha culpa, é? — Colocou a mão sobre a cerca, apertando-a. — Não é minha culpa achar que todos são como eu.
— Pai... não — disse a adolescente, mas já era tarde.
Aconteceu tão rápido que Ray mal teve reação. Seus olhos arderam e sua pele ganhou o reflexo do fogo. E pela primeira vez, ela sentiu o poder de outro marcado.
Como seu cabelo ao vento, as chamas pareciam ter vida própria consumindo toda a extensão de arame da cerca. Em menos de três segundos ela não existia mais.
Os primos ficaram sem movimento quando Hidel passou ao lado deles. Sua família o seguia e Ray pôde ouvir um sussurro de desculpas entre eles. Não viu de quem, mas viu o que importava. Rose. Ela inviabilizava o passo de Hidel. Estava parada sem dizer nada. Era incrível a segurança que ela conseguia passar apenas de estar presente. Sua facilidade em ser forte inspirava Ray todos os dias.
— Crianças — Rose chamou —, venham para cá.
Hesitação foi a última coisa que Ray sentiu ao ouvir o chamado de Rose. Foi na frente e Jaden a seguiu. Prometeu não olhar para Hidel, mas contava mentiras até para si mesma. O encarou de esguelha e viu que ele teve a mesma ideia. Um calafrio a percorreu antes de finalmente chegar em Rose. Deu-lhe um meio abraço e pediu desculpas. Achou que devia isso a ela. Cumprimentou Alexandre, o caçula, estava dormindo em pé, coitado, e ficou para assistir o que Rose faria.
— Parece que minha cerca foi queimada. O senhor... tem algo a me dizer? — Ouvir essas palavras destinadas a outra pessoa era recompensador demais para Ray.
— Houve uma precipitação de minha parte. Me perdoe, poderia ter entrado de outra forma.
— Não, não poderia.
— Como?
— O senhor me ouviu. Invadiu minha residência mesmo após avisos, queimou minha cerca e ameaçou meus filhos, crianças indefesas! Como acha que poderia ter entrado de outra forma?
— Não ameacei seus filhos e nós sabemos que eles não são tão indefesos assim. Senhora... minha mulher...
— Sua mulher está, grávida, sim. — Rose aproximou-se dele. — Entenda, ser marcado não te garante impunidade. Você usou sua marca em território idealista. Não sabe que isso pode trazer problemas para nossas famílias?
— Eu sei. Eu sei de tudo isso. E não seria tolo em usar minha marca sem antes me certificar de ocultar minha energia.
Ray não entendia nada disso, mas Rose parecia surpresa.
— Você... ocultou sua energia?
— Ocultei. Agora, senhora, minha mulher está vermelha e com as veias da testa estourando de tanto impedir que o bebê venha. Nos ajude e eu prometo que saio da sua propriedade antes do amanhecer.
— Se idealistas aparecerem por aqui...
— Não vão. Eu te garanto.
Hidel encarava firme os olhos de Rose.
— Ray, prepare a cama. Jaden, preciso que pegue água no córrego. E você. — Apontou para Hidel. — Leve sua mulher para dentro.
— Você não sabe o tamanho da dívida que terei com você.
— Diga isso depois que o bebê nascer. Sua mulher aguentou muito embaixo desse sol. O parto pode ser complicado. Vamos entrar? — perguntou Rose a grávida.
— Ela não fala — disse a criança do grupo.
— Não fala? — Rose encarou Hidel e ele assentiu com a cabeça. — Bom, não fala, mas vai gritar. Vamos entrar de uma vez. Ray, preciso que prepare logo a cama.
— Sim. Já vou.
Mesmo que Hidel tenha causado certa angustia em Ray, ela não negaria estar feliz por ele. Faria o que pudesse para fazer a criança nascer bem.
Isso se houvesse criança na barriga.
Após horas tentando achar o bebê, Rose percebeu o que estava à sua frente. Aquilo não era normal. A barriga estava lá. Os sintomas estavam lá, mas o bebê não existia. A gravidez não existia. Tudo na mulher era energia. Sua pele cinza e fundida em energia. Turva, mas queimava. Enfraquecia... enfraquecia Ray. Ela saiu da casa sozinha. A cabeça girando, a consciência sumindo. No céu via o preto. A fumaça. A morte.
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