Volume 2
Capítulo 42: O Renascimento da Devastação
A luz se foi. E por um instante, ninguém ousou se mover. O clarão que consumiu o campo havia sido tão absoluto, tão avassalador, que até os aliados de Cázhor ficaram estáticos, ofuscados não apenas pela intensidade da magia, mas pelo que ela representava. Nem mesmo os mais experientes entre eles sabiam descrever o que haviam acabado de presenciar. Era como se tivessem presenciado o toque direto de alguma entidade, algo primitivo e antigo.
A destruição era inimaginável. Boa parte da entrada da sede havia sido varrida. O chão, antes pavimentado em linhas retas de pedras firmes, agora era uma cratera de escombros fumegantes. Os corredores à frente, outrora fortificados, estavam derretidos, rachados ou simplesmente não existiam mais. Os cristais de iluminação haviam sido pulverizados, substituídos por focos de incêndio espalhados pelo cenário como chamas erráticas, projetando sombras grotescas nas paredes manchadas de sangue.
Ali, em meio à fumaça densa que se misturava à tempestade de neve, corpos carbonizados repousavam. Ou melhor, o que restou deles. Criaturas que minutos antes uivavam em fúria agora jaziam como manchas retorcidas de carne derretida. Ossos expostos se destacavam entre tecidos chamuscados. Alguns ainda soltavam pequenos estalos ao esfriar. O cheiro era insuportável. Carne podre, queimada, misturada com sangue fervido e enxofre.
Cázhor tombou de joelhos, apoiando o braço sobre a perna para não cair por completo. Seus ombros subiam e desciam em espasmos de exaustão. Estava ofegante, suando frio, e seus olhos, enevoados, mal conseguiam distinguir o que havia diante dele. Aquele feitiço o havia drenado praticamente por completo.
Lenna arfava, quase desabando. Suas mãos ainda tremiam, e o gosto metálico na garganta revelava haver passado dos próprios limites. Engoliu em seco, tentando manter a lucidez. Seus joelhos vacilavam. As pernas, rígidas, ameaçavam ceder a qualquer momento. Ela havia segurado o inferno com os próprios braços, e ainda estava de pé.
Varbbek não estava em condição muito melhor. Embora ainda sustentasse sua posição, as raízes ao redor de seus pés estavam secas e estaladas. Sua pele estava fria e os olhos, baixos. Havia gasto tudo o que podia, e mesmo assim, sabia que ainda não foi o suficiente.
Um silêncio mórbido pairava sobre os escombros. Apenas o som do vento, o estalo dos focos de fogo e a neve começando a cobrir a destruição. Então, algo se mexeu. No meio da devastação, onde antes estava o epicentro da explosão, uma sombra, uma específica sombra, começou a se erguer. Aquilo não deveria estar de pé. No entanto, estava. Thorm.
Seu corpo estava irreconhecível. Carbonizado, com a maior parte da pele transformada numa massa pastosa que escorria dos ossos e músculos expostos. Metade do rosto havia sido varrida, revelando um olho ainda brilhante e o maxilar enegrecido por fuligem. Pedaços das costelas estavam à mostra. Suas pernas estavam dilaceradas. Estacas deformadas sustentavam sua marcha. Mancando, arfando, sugando o ar em busca de algo que o mantivesse consciente. Seu pulmão, ou o que restava dele, inflava de maneira irregular, emitindo um chiado molhado. Mesmo assim, ele não parava.
— Vamos acabar logo com esse desgraçado — rosnou um dos guardas resgatados por Vladmyr, tomado pela fúria. Seus passos se apressaram rumo à criatura retorcida com a espada em mãos.
— Espere! — Ector tentou alertá-lo.
Tarde demais. Num instante, um golpe cortou o ar. Foi limpo. Cirúrgico. O soldado parou por um segundo, olhos arregalados, não compreendia o que havia acontecido. Até que sua visão começou a escurecer. Seus órgãos escorregaram do corpo partido, suas vísceras caíram sobre a neve que já começava a se acumular novamente.
Uma cauda negra, espessa e pulsante, balançava atrás de Thorm como uma foice viva. Era como uma extensão retorcida de sua coluna vertebral, um flagelo animado, ainda encharcado de sangue, tecidos e pedaços da pele rasgada quando emergiu. Ao mesmo tempo, Thorm gorgolejava um som asqueroso, algo entre uma risada e uma convulsão.
— Mas que merda... — Ector bufou, encharcado de raiva e incredulidade. Mal conseguia acreditar que aquela coisa ainda estava viva e havia ceifado mais um dos seus.
O som do corpo despencando no chão foi o estopim. Eduardh lançou uma sequência de flechas encantadas com precisão milimétrica. Cada uma cortou o ar em velocidades sobre-humanas. No entanto, a cauda de Thorm girou como um chicote, repelindo cada projétil com movimentos imprevisíveis. O impacto entre flecha e cauda criava faíscas escuras, como se a própria sombra explodisse em cada contato.
E então, Thorm se ergueu por completo. Suas costas se abriram como cascas, revelando duas asas membranosas, negras e imensas. Ao baterem com força, lançavam fumaça e poeira para todos os lados, cobrindo o campo com uma nova camada de terror. Seus pés já não tocavam o chão. Ele flutuava, arfando, renascido em forma ainda mais abominável.
Novas criaturas surgiram das sombras. Mas não atacaram. Foram atraídas por ele. Absorvidas como se fossem tragadas por um buraco negro. Seus corpos se contorciam, deformavam e colapsavam sobre si, sendo dilacerados até se tornarem um emaranhado de carne, sangue e ossos, absorvidos pelo corpo do demônio como água na terra seca.
Seus cabelos haviam crescido, caindo até quase a cintura em fios grossos e prateados. Na cabeça, dois enormes chifres curvados se projetavam, negros como breu, lembrando os galhos retorcidos de uma árvore morta. A pele, agora quase toda coberta por escamas reptilianas, reluzia com um brilho sombrio. A musculatura se expandia a cada segundo, definida, latejando com energia demoníaca. Das frestas entre os dentes, escapavam baforadas de chamas negras, ondulando pelo ar como serpentes famintas.
E então, ele sorriu. Um sorriso torto, irregular, com presas salientes e pontiagudas. Um sorriso que sangrava, que queimava. Um sorriso à beira da loucura, que anunciava a morte.
Sem mover um músculo do pescoço, Ector percorreu o campo apenas com os olhos. Não precisava ser um estrategista para compreender o quão precária era a condição de seus aliados. Estavam todos feridos, esgotados, cobertos de lama, sangue e medo. A fumaça negra pairava no ar como uma cortina de luto. As vísceras das criaturas absorvidas ainda pulsavam no chão, e o fedor de morte era tão forte que sufocava. A neve, antes pura, agora estava enegrecida, misturada ao sangue de combatentes e monstros.
Mesmo assim, suas mãos não tremiam. Seu espírito permanecia firme. Mas, ao encarar a nova forma de Thorm, a abominação nascida da escuridão e do sofrimento, Ector sabia. Não tinham chance. Não ali. Não nesse estado. E mesmo assim, não podiam recuar. Havia muito em jogo. Muito além da honra ou do orgulho. Era o futuro da Terra que pulsava frágil sob seus pés ensanguentados.
— Fazia tempo... que eu... não usava essa forma... A voz de Thorm ressoava como um coro profano, dezenas de tons sobrepostos, uma cacofonia viva que vibrava nos ossos.
Cada palavra era um golpe frio na espinha. Lenna cambaleou. O excesso de mana escura no ar parecia se enroscar em sua pele, como uma mão invisível apertando seu peito. Era como se essa maldita energia a reconhecesse. Como se uma precisasse da outra para existir.
— Não se preocupe, minha querida... nós ainda... temos grandes planos para sua luz...
Ela mal conseguiu reagir. Os escudos ao seu redor tremularam. Sua respiração ficou descompassada, errática, quase um soluço contido. O coração batia em pânico. A presença dele a invadia como um pesadelo consciente.
“Como ele... como ele sabe...” Lenna sentia de alguma forma que ele conseguia ouvir seus sentimentos, seu medo.
— Não o deixe entrar na sua mente, senhorita Weins. Isso é o que ele quer... — A voz de Cázhor veio fraca, mas lúcida, mesmo com um dos olhos cerrados e o rosto sujo de sangue e fuligem.
A dor da presença demoníaca corroía sua mente. Mas havia algo pior se insinuando ali.
“Não tente me ignorar, querido. Sua fraqueza me estimula, seu poder me excita... por que não se entrega logo...” A voz da demônia sussurrava clara como cristal.
A linha de mana que os ligava, há muito ignorada pelo mago, agora pulsava forte, visível aos olhos. Era como se o elo quisesse se fortificar na fraqueza de um dos lados. Como se ela estivesse ali, ao lado dele. E Cázhor sentia-se nu, exposto, e pela primeira vez... sem respostas. Nenhum plano, nenhuma ideia, nenhuma escapatória.
Varbbek percebeu. Era impossível não notar a tensão nos rostos ao redor. Cázhor, Lenna, Ector, todos à beira do colapso. O coração do druida pesava. Amava seu povo, porém, proteger aquele grupo fazia parte de algo maior. Ele era o líder de um reino. E, como tal, precisava agir.
O cansaço era extremo. A mana já mal respondia. Suas mãos tremiam de esforço e dor. Então, um nome ecoou em sua mente como uma fagulha de esperança: Galgard.
Ele então ajoelhou-se e afundou os dedos no solo negro. A terra estava fria, úmida, carregada com o fedor da morte. Para qualquer druida, aquela profanação seria suficiente para provocar ânsia até mesmo nos menos sensíveis à voz de Gaia. Mas Varbbek não tinha escolha. Precisava silenciar tudo em que acreditava, sufocar cada instinto que o guiava como druida. Reuniu, com o que restava de sua força, uma última tentativa. Uma súplica silenciosa enviada através de Gaia, cruzando raízes e pedra, na esperança de alcançar o guerreiro. Sua última esperança.
— Vocês não desistem... não... é mesmo? — As vozes de Thorm gargalhavam distorcidas, zombando. Ele sabia. Percebia o esforço do druida.
— Mais um... menos... um... matarei todos que vierem...
Os demais não entenderam de imediato o que Thorm quis dizer. Mas Varbbek sorriu de canto. Era discreto, cansado, mas era um sorriso. A resposta havia chegado.
E então, do fundo da estrada de cadáveres e fumaça, um som ecoou. Todos se viraram. Era Galgard. Ferido, mancando, com cortes profundos e sangue cobrindo o rosto, mas firme. Não corria para o grupo, corria para a entrada. Em suas mãos, uma garrafa de vidro, contendo um líquido escuro, mas, ao mesmo tempo, brilhava como algo vivo.
Lenna reconheceu o brilho. Era semelhante à poção usada por Varbbek para abrir o antigo selo da caverna.
— Você não pode! — suplicou, a voz embargada pelo desespero, correndo em direção a Varbbek assim que entendeu o que ele pretendia fazer.
— Eu já fiz! — Varbbek respondeu, com o mesmo sorriso debochado que tantas vezes lançava ao grupo. E então levantou a mão.
Do solo, uma onda massiva se formou com violência. Raízes, pedras, lama e corpos se moldaram numa avalanche avassaladora. O grupo foi arrastado com brutalidade até o que restava da entrada da sede. Não havia tempo para reação. Era como ser engolido por um terremoto.
Em um piscar de olhos, foram engolidos pelas ondas, todos caíram no chão gelado do corredor, amontoados e desorientados. Ao olharem para trás, viram Varbbek, solitário diante da barreira que começava a se formar. Sangue escorria de sua mão, o mesmo que ele havia derramado no frasco para lançar o feitiço de selamento.
Foi uma atitude tão inesperada que até mesmo Thorm se surpreendeu. Furioso, ele rugiu e lançou-se como um projétil flamejante, rápido demais para ser detido. Varbbek sabia que não teria como se defender; ergueu os braços como um escudo de carne, acreditando que aqueles breves segundos seriam suficientes para que o selo se completasse.
Aquele ataque atravessou o peito do druida. O sangue espirrou na barreira mágica que se fechou com uma luz opaca e vibrante. O brilho se misturou com o jato escarlate, criando uma cena gravada na memória de todos.
— Mas que droga! Você não tinha o direito de lutar sozinho! — Ector gritava, esmurrando a barreira com violência. Feriu a mão, mas a estrutura mágica nem se moveu. Era impenetrável.
Do pouco que ainda podiam ver através da barreira cintilante, o rosto de Varbbek parecia pálido, e seus olhos, outrora vibrantes, perdiam rapidamente o brilho. Ele tossia sangue, espesso e escuro, que escorria pelo canto da boca. Mesmo assim, sustentava o sorriso provocador enquanto encarava Thorm. O demônio rugia, frustrado, ao perceber que não conseguira impedir o selo, tampouco ultrapassar a barreira.
Varbbek cambaleou, mas permaneceu de pé, apoiando as costas na barreira enquanto se mantinha firme diante da criatura.
— Você... não é tão... rápido assim, não é mesmo? — murmurou Varbbek, entre uma golfada de sangue e outra, com o mesmo tom debochado de sempre.
Aquilo foi como derramar óleo no fogo. Enfurecido, Thorm explodiu num surto de mana escura, densa e violenta, envolto por uma aura que tremia o próprio ar ao redor. A energia se condensava como um furacão sombrio, prestes a romper tudo em seu caminho.
— Vamos! — A voz de Galgard soou firme, mas carregada. Nenhuma lágrima. — Ele não conseguirá nos dar muito tempo, não podemos desperdiçar a oportunidade que ele conseguiu...
Todos sabiam. Era amargo. Era injusto. Mas era real. Precisavam seguir. Precisavam impedir o renascimento de Vastyr. Tinham que seguir, mesmo que cada passo os afastasse daqueles que ficaram para trás. Varbbek havia confiado neles, apostado tudo numa chance mínima. O eco de seu sangue ainda parecia pulsar na barreira. E atrás dela, a loucura viva que era Thorm explodia em berros, envolto por uma mana escura tão intensa que o próprio ar parecia gritar.
Deixaram para trás um amigo, um líder. Agora, carregavam não só a missão, mas o peso da perda. E aquilo era apenas o começo.
“Quantos mais terão de pagar por isso? E o pior... ainda é só o começo.” Os pensamentos inundavam a cabeça da maga.
Lenna se virou, mas seus olhos ainda permaneciam fixos na barreira. O sangue escorrendo pela superfície mágica parecia uma assinatura final. Perguntava-se se seria mesmo um adeus selado com a própria vida. Apesar da chance de fuga, o gosto da derrota era inevitável.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios