Magia Gênesis Brasileira

Autor(a): Rafaela R. Silva


Volume 1

Capítulo 4: Sem tempo para descanso

O tempo estava mais frio que o normal. Vladmyr sentou-se em cima de um punhado de folhas que despencavam aos montes das árvores nessa época do ano. Soltou um leve suspiro de desapontamento e apoiou suas costas em uma árvore de caule grande, aparentemente bem resistente, enquanto aguardava o passar da noite.

Já na manhã seguinte, o dia começou em silêncio, com um clima pesado devido à noite anterior. Cázhor, de todos, era o que menos demonstrava algo sobre o que aconteceu. De fato, nunca foi de muita comoção por quase nada.

Avançando conforme o mapa, fizeram uma breve parada para os cavalos beberem água. Estavam a quase um dia do destino. O cenário estava bem diferente do início da viagem. A cada hora, a floresta aumentava, fechando em torno das colinas.

Sem novidades, o tempo passou. Novamente, o pôr do sol se aproximava, exigindo uma pausa para montar acampamento e descansar. Estavam bem próximos às fronteiras de Mizuyr, o que demandava uma atenção maior, uma vez que não se podia prever qual seria a recepção dos habitantes.

Dessa vez, quem se prontificou a pegar a lenha foi Ector. Cázhor, como sempre, estava fazendo seus rituais de proteção. Lenna fazia a conhecida sopa e Vladmyr apenas a observava. Foi quando ele reparou que o punho dela estava envolto por ataduras, o mesmo que ele, na noite anterior, havia segurado e pressionado com bastante força. Quando ela o manejava, fazia uma grande feição de dor.

Enquanto ela separava as tigelas para servir a sopa, Vladmyr percebeu que ela colocou somente três. Após isso, pegou novamente sua pequena bolsa de couro com os pedaços de phadors, pediu licença e se dirigiu ao local onde se encontravam os cavalos.

Mesmo contra sua vontade, mas no dever de se redimir pelo seu ato grosseiro do dia anterior, Vladmyr levantou-se e foi em direção onde ela estava, mas foi logo impedido por Ector, que voltava com os galhos ainda em seus braços.

— Garoto, vai implicar de novo com ela? Chega de acusações sem motivo — sussurrou Ector.

— Não... dessa vez vou fazer a coisa certa, senhor — disse Vladmyr com a cabeça baixa e num tom levemente impaciente.

Mesmo claramente preocupado, Ector abriu passagem e se sentou para alimentar a fogueira com os galhos que havia colhido. Ele torcia para que, dessa vez, tudo desse certo.

Ao se aproximar das montarias, Vladmyr presenciava a mesma cena de quando estavam tomando café em Ancor. Lenna comia seus phadors e tagarelava com os animais ali. Isso o deixou surpreso, pois não imaginava que de fato ela preferiria estar na companhia de animais do que de pessoas.

Foi quando, por instinto, o animal se balançou na tentativa de se livrar das moscas que o incomodavam, esbarrando fortemente contra a mão que estava com as ataduras. Isso a fez soltar um leve grito de dor, que conteve logo em seguida, pois ela não queria assustar os animais. Sua comida, no entanto, acabou caindo.

Vladmyr percebeu que, ao invés de se zangar com o animal, ela sorriu docemente, abaixou-se para pegar o pedaço de phador, limpou-o e deu uma boa mordida. Logo em seguida, voltou a acariciar e conversar com o animal. Era perceptível notar sua mão trêmula e os olhos marejados, parecia doer bastante.

Aquela cena, de uma forma estranha, irritou Vladmyr. Não podia aceitar que ela, um transmorfo, fosse alguém de boa índole, tão meiga e tão gentil. Ele acabou se perdendo em seus próprios pensamentos, não percebendo ser atentamente observado por Ector, que ao confirmar que Lenna estava segura, retornou à fogueira como se nada houvesse ocorrido.

Vladmyr sem saber como agir nesse momento, optou por retornar à fogueira sem dizer nada.

— E então, como foi a conversa? — questionou Ector, com um leve sorriso.

— Perdão, senhor, mas cuide de sua vida! — Ele pegou uma manta e a jogou em sua direção, enquanto revirava os olhos. Irritado, foi para sua barraca.

Ector com um sorriso sarcástico e um pouco malicioso, apenas acenou a cabeça em sinal de negação e foi se acomodar para montar a guarda daquela noite.

— Como mentor dele, creio que você deveria ter dito algo, não? — Cázhor estava intrigado.

— Ele ainda é muito novo e tem tudo à flor da pele. Precisava aprender muito ainda, mais do que só espadas e brigas, mas também sobre pessoas e relações.

— Difícil aprender sobre pessoas, quando está sempre se apontando as armas.

— Dê tempo a ele, uma hora ele entenderá — Ector sorria, um pouco preocupado com seu oficial.

Na manhã seguinte, o tempo estava bem nublado e o céu escuro, quase como se ainda não tivesse amanhecido. Tudo indicava que a qualquer momento começaria um temporal.

Ector se dirigia à pequena e improvisada tenda de Vladmyr, o garoto podia até ser um prodígio, mas dormia como um urso em época de hibernação. Com o pé, ele deslocou um dos grandes gravetos que sustentavam toda a armação da barraca, fazendo com que o manto caísse bruscamente sobre Vladmyr, que devido ao susto se levantou rapidamente em posição de batalha.

Lenna deu uma leve risada, virando seu rosto quando percebeu que ele estava usando apenas calças de tecido leve e a encarava com um olhar bem enfurecido, pelo constrangimento da situação que seu comandante o fez passar.

— Como os reinos podem ter como comandante alguém que se porta de forma tão infantil, mesmo sendo tão velho? — Cázhor revirava os olhos numa atitude de reprovação enquanto se questionava.

Tal comentário o fez receber um leve cutucão de Lenna o repreendendo, mesmo que ela mesma ainda tentava esconder a risada.

Em meio a toda essa situação, não puderam reparar o quanto o tempo havia se fechado. Escurecendo ainda mais, o ar estava bem úmido, as grandes árvores e montes ajudavam a tornar o local mais escuro ainda.

Quase terminado os preparativos para continuar a jornada, Cázhor chamou sutilmente a atenção dos demais. Seu olhar indicava algo errado. Ector supôs que poderia ser algum problema com a barreira mágica que ele sempre montava ao redor do acampamento, o que logo foi, de fato, confirmado pelos estranhos ruídos que vinham por trás das árvores e arbustos que os cercavam.

Vladmyr então, sem movimentos bruscos, agachou-se e estendeu seu braço, conseguindo alcançar sua espada. Feita de um metal produzido e lapidado pelos ferreiros do reino de Carmim, uma espada reta e bem afiada, usada pelo exército mundial.

— Vocês dois, venham pra cá! — Sussurrou Vladmyr.

O grupo tentava se aproximar dos cavalos. Uma batalha contra o inimigo em um ambiente desconhecido não seria a melhor ideia. Foi quando, de repente, o silêncio foi quebrado pelos relinchos, seguido de vários sons similares a rosnados.

Ector ao olhar ao redor, pode confirmar estarem cercados. O que quer que fosse, havia muitos e a melhor estratégia era se manterem juntos para chegar quanto antes às montarias. Porém, ao se aproximarem, perceberam que as cordas que prendiam os cavalos estavam totalmente arruinadas e os animais, pelo susto, se entranharam floresta adentro em uma velocidade impressionante. Visto que a fuga não seria facilitada, o único modo para se proteger era organizar-se para o provável ataque. Nesse momento se ouviu um grande estalo e uma forte luz no céu, desabando uma imensa chuva, o que só dificultava a visão.

Uma criatura saiu por trás da vegetação e avançou à frente do grupo, expondo finalmente a origem dos rosnados. Um quadrúpede, quase do tamanho de uma pantera, com espinhos que se iniciavam do topo da cabeça até o fim da longa e grossa cauda.

Em volta do pescoço uma mistura de folhas e galhos formavam uma espécie de juba. Seus olhos negros pareciam vazios, mas, ao mesmo tempo, emitiam uma espécie de chama azul vivida. Grandes caninos e garras bem à mostra, era difícil deduzir o que aquela criatura era, principalmente quando mais e mais, se acumulavam ao redor do grupo.

Cázhor juntamente com Lenna, recitava um breve encantamento para conjurar escudos contra os ataques desferidos. Mas se quisessem sair dali, teriam de derrotar todas aquelas criaturas.

— Cubra minha retaguarda! — Ector, empunhando seu machado, partiu para cima da criatura mais próxima.

Segurando seu machado em duas mãos, desferiu um poderoso golpe contra a criatura, fazendo um grande rasgo em seu torso, o que a fez recuar. Estranhamente a criatura não sangrava como um ser vivo, mas sim derramava uma espécie de líquido esverdeado.

Enquanto olhava a inusitada cena, outra criatura saltou na expectativa de surpreender seu inimigo. Felizmente, Ector era um guerreiro experiente, e apesar de seu grande porte, moveu agilmente seu machado para sua mão esquerda, em direção à criatura, desferindo outro golpe crítico. Dessa vez, atingindo fatalmente parte da cabeça, descendo o corte pelo pescoço.

Vladmyr se posicionou de costas para seu comandante e próximo aos magos. Na tentativa de afugentar as criaturas que se acumulavam ao redor deles, lançou uma grande investida com sua espada e acertou, em um único golpe, dois inimigos.

Enquanto tentava visualizar a posição das demais, outra criatura saltou em sua direção. O monstro se posicionou bem no ponto cego do guerreiro. Quando percebeu o ataque, sua única reação foi levantar sua espada na tentativa de bloqueá-lo. Já não havia mais tempo, ele seria pego em cheio.

Para seu espanto, Lenna conjurou uma pequena barreira em sua frente, evitando o golpe da criatura que estalou suas garras devido ao impacto do ataque refletido, fazendo-a recuar. Ela não somente enunciava os cânticos da conjuração de proteção ao seu redor, como nos demais ali presentes, evitando todos os ataques lançados. Entoava com tanta eficácia e rapidez que Vladmyr mal conseguia acompanhar a movimentação de seus lábios.

Cázhor iniciou um novo ritual, deixando o término da barreira aos cuidados de Lenna. Ele falava de forma mais passiva e serena, segurando um desgastado grimório, focando toda sua atenção no feitiço.

As criaturas continuavam a surgir, pareciam brotar da terra. Em pequena quantidade, não apresentavam grande perigo ao grupo, porém, naquela situação, já havia mais de vinte os cercando. Dentre golpes de machados e espadas, a cada cinco criaturas abatidas, surgiam outras dez. Parecia não ter fim.

— Venham todos pra cá! — gritou Cázhor quando terminou de enunciar o ritual.

Lenna percebendo que seu mentor havia finalizado o encanto, rapidamente pronunciou algumas palavras, aparentemente em élfico. Logo em seguida, com todos reunidos, ergueu-se um grande escudo em formato de cúpula semi transparente, com pequenos pontos brilhantes e em furta-cor que encobriu a todos.

Liberatherus! — disse Cázhor, logo após finalizar seu feitiço.

Uma grande torre de chamas desmoronou do céu, surpreendendo até mesmo seus próprios companheiros pela poderosa magia que ignorava a presença da insistente chuva. A magia carbonizou a maioria das criaturas. As que restaram, feridas e amedrontadas, fugiram. O ataque foi um sucesso. Finalmente, tudo se encerrou.

Pouco tempo depois, a chuva começou a cessar. O céu ainda estava bem escuro, apenas com pequenos e intermitentes sinais de raios de sol.

Cázhor fechou seu grimório soltando um leve suspiro de alívio, enquanto Ector soltava uma longa e alta gargalhada. Batalhar o fazia feliz. Conseguir usar seu machado com tal maestria em sua idade não era para qualquer um.

— É assim que vai ser daqui em diante. Então, Vlad, melhor não depender de escudos mágicos e ser mais ágil em batalha! — disse Ector entre uma gargalhada e outra. Ele não perdia a oportunidade de implicar com seu mais novo oficial.

Vladmyr sentou-se em um grande pedregulho com um leve sorriso por finalizar a batalha. Estava bem constrangido por depender, mesmo que por um momento, da proteção daquela transmorfo.

 Contudo, a vitória foi certa, aquelas criaturas não retornariam tão cedo. No entanto, o grupo, devido à batalha, adentrou mais que o previsto na floresta e precisavam se reorientar para chegar ao destino.

Agora, sem montaria e apenas carregando os equipamentos e suprimentos que levavam no corpo, seguiram adentrando a floresta cada vez mais.

Cázhor parecia incomodado com tanta vegetação e insetos. Vladmyr olhava aquela situação e isso o deixava irritado.

“Será que esse cara nunca esteve em uma missão em campo?” Ele se questionava até ser interrompido por Ector, que direcionava um pouco de sarcasmo ao grande mago.

— Parece que os mosquitos estão sendo mais perigosos do que as criaturas que enfrentamos, não é mesmo Cázhor? — Ele, claramente, adorava provocá-lo.

Mesmo reconhecendo a verdade, Cázhor tentava manter a seriedade e postura, por mais que essa situação fosse, de longe, a que ele mais detestava. Aparentemente, os insetos se esforçavam para atacá-lo através da grande capa que envolvia seu corpo.

Apesar de o reino ser conhecido, as florestas de Mizuyr eram pouco exploradas. Seus habitantes não apreciam visitas e raramente se expõem, a fim de evitar qualquer tipo de contato.

Ector abria caminho pela floresta conforme as instruções de Cázhor, seguido de Lenna e Vladmyr que vigiavam a retaguarda. O terreno era bem irregular, em vários lugares, o grupo teve que esgueirar-se entre as árvores e plantas ou desviar da rota em razão dos grandes pântanos e corredeiras de água.

Finalmente chegaram a uma parte na qual a mata não predominava. O lugar que encontraram era uma grande província com várias construções feitas de madeira, cipós, barro e demais materiais encontrados nos arredores.

Chegando próximo ao que pareciam ser construções abandonadas, Ector notou uma grande área aberta ao redor, como uma gigantesca clareira, vários blocos enormes de pedras que se espalhavam pelo local. Estranhamente, parecia não haver, nenhum ser vivo próximo.

O local estava realmente abandonado, mas as boas condições das construções indicavam que não havia muito tempo. Apesar da grande vista para o céu, o local ainda permanecia bem escuro. Os poucos raios de sol que persistiam em sair não eram suficientes para gerar uma boa iluminação, causando bastantes sombras e deixando o lugar ainda mais ameaçador.

Vladmyr analisava o cenário na tentativa de localizar alguma armadilha ou traços do que poderia ter acontecido.

— De acordo com esse caos que a Srta. Truman chama de anotação, o que procuramos deve estar nas redondezas — disse Cázhor.

Lenna andava desconfiada, próximo às gigantescas pedras. Seu forte não era exploração, então deixava todos os detalhes com seu mestre.

— As pedras estão tão interessantes assim a ponto de encará-las tão insistentemente? — disse Vladmyr num tom irônico.

— Algo me parece estranho. Sinto magia nelas.

Após ouvir isso, Cázhor se aproximou para tentar identificar que tipo de magia podia ser. Enquanto todos aguardavam a resposta de sua averiguação, perceberam uma expressão preocupante em sua face.

— Isso não é um bom sinal. — Ele se afastou.

— Ei, mago! Por que dessa resposta? — Ector estava claramente preocupado com a reação dele.

— Não lembro de ter visto algo semelhante, mas os rastros de magia indicam um encanto de proteção — continuou ele — são normalmente combinados com magia de invocação, algo usado para defender o local de seus invasores.

— Nos livros que li, os antigos diziam que esse tipo de magia era o que movia os poderosos golens de Mizuyr — Lenna completou.

— Mas é só uma lenda, não é? Esse tipo de criatura mágica nunca foi de fato comprovada a existência — disse Ector, meio desacreditado.

— Se realmente fosse um Golem, nós estaríamos bem fer... — Vladmyr não teve tempo de finalizar sua frase.

Nenhum deles acreditava na cena que viam. Olhavam incrédulos todos aqueles pedregulhos enormes começando a se juntar, dando forma ao lendário gigante de pedra.



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