Volume 1
Capítulo I: “Efeito Descolorante”
A névoa sorrateira, dava passagem a um sentimento estranho nestes que se aventuravam pelas ruas monótonas de Tóquio.
Essa noite era de algum modo diferente.
Um frio cortante e uma quase canção ludibriante, onde a névoa indesejada deixará tudo preto e branco. Como em um filme antigo, uma trama de mistério e suspense, dirigida por alguma entidade doentia.
O vento como sussurros conduzia as almas pelas ruas, perdidas, embriagadas em sonhos, tentando encontrar seu lugar, se abrigar do frio, se esconder do julgamento e dos olhares atentos à espreita.
Vvvvv, Vvvv, Vvvv…
O velho letreiro balançava, de um lado para o outro. A velha madeira rangia o que fazia os olhos de todos se direcionarem para ele: “Mercado-Yang”, era o que estava escrito, o velho mercado no fim do bairro, no fim de tudo.
Já era bem tarde da noite quando o silêncio foi quebrado, com o toque comum do antigo sino na porta de entrada do velho mercadinho. Soou como um aviso, um presságio, um som repentino que anunciava a entrada de mais uma alma naquele local.
Um jovem com o cabelo bem bagunçado adentrou o lugar, seguido de suspiros e assobios. Assoprava suas mãos tremendo, luvas velhas que deixavam as pontas de seus dedos expostos, desprotegidos contra o frio da noite.
Cruzou então seus braços, abraçando de vez seu casaco amarrotado, apertando-o contra si, com o mesmo abraço caloroso ao qual uma mãe dá em seu filho depois de um reencontro.
Retirando um de seus fones, disse em um sussurro acanhado:
— C-Com licença… — Encara a balcão.
Aquela figura estranha chamou atenção da balconista, que o observou de relance. “Uma criança há essas horas?” Pensou enquanto fixava seus olhos no garoto.
Seus dedos batiam ligeiramente no balcão, também começava a bater o pé o encarando, atenta aos seus próximos movimentos.
Ele por vez notou seu olhar, virou o rosto ajeitando a gola da camisa e seguindo em frente. Embora, parecia um pouco inquieto ao ver a senhora de cabelo crespo e nariz pontudo o encarando com tamanha intensidade.
“O que ela quer?”
Ele tentava não a encarar de volta, invés disso, olhava os arredores.
Não havia nada que chamasse muito sua atenção, era um mercadinho como muitos por aí. Piso bem limpo, prateleiras bem organizadas e várias seções para encontrar aquilo que deseja, aquilo que busca.
Ele então puxou um bilhete do bolso. Desamassando o papel amarelado, perguntou-se: “O que era mesmo para comprar?” Em sua lista, as palavras quase indecifráveis e borradas se misturavam às manchas de suor no papel.
Lá estava escrito: 2- Caixas de leite, 2- Caixas de Cereal, 3- Pilhas palito, 1- Caixa de ovos, 1- Saco de Açúcar, 3- Maços de Marlboro, 2- Garrafas de Saquê.
Ele então pegou uma das cestas próximas ao caixa e foi fazer enfim suas compras. De início parecia perdido naquele enorme lugar, uma das lâmpadas em um dos corredores piscava, um cheiro de verduras e peixes estragados, o fez tapar o nariz e trocar de seção.
Andou ele sem rumo, uma alma perdida, buscando algo ao seu redor. Procurando e procurando, sem saber o que de fato queria.
A moça no balcão, já não podia o avistá-lo, pois ele sumiu no fim daquela seção. Ela então direcionou seus olhos curiosos aos monitores, encarando o garoto pelas câmeras, parecia tentar decifrá-lo.
O seu jeito de andar desengonçado e acanhado, até mesmo para pegar as caixas de leite parecia tomar bastante cuidado. Abriu uma das tampas e, cheirou o conteúdo, logo sorriu e guardou a caixa de leite na cesta.
— Hum. Que garoto esquisito! — disse a moça, já não se incomodando com ele, direcionando seus olhos agora para a TV de tubo, onde passava uma novela. — Isso Carminha, acaba com ela!!
Enquanto isso, o garoto continuou suas compras. Ele procurava e achava, pegava e olhava, decidia e colocava na cesta, em alguns momentos suspirava profundamente. Parecia cansado, bem cansado:
“Por quê tudo se torna tão mórbido e sem cor nas noites de Quinta-feira?”
Pegou algumas caixas de cereal na estante.
“Quem faz compras à meia noite? Que saco! Tive que vir nesse mercado do outro lado do meu bairro e, a maioria das coisas aqui tá estragando. Sério… Que noite de merda!”
Até então tudo estava calmo, a mesma atmosfera mórbida com o mesmo jogo de cores sem vida, o mais completo silêncio. De repente, o som do sino na entrada, mais uma vez o sinal, o aviso de algo, a chegada de alguém, de outra alma se juntando ao local.
Ele estava de fones, não se importando com nada ao seu redor. Para ele tudo estava sem cor, sem graça, continuou pegando suas compras. Foi quando enfim avistou algo colorido, algo que de fato o trouxe uma alegria momentânea, com um breve sorriso.
Mais a frente, uma prateleira cheia de revistas e mangás pareciam trazer cor ao lugar. Ele de início deu um passo para trás, mas em seguida dando dois para frente. Seus olhos curiosos procuravam algo no meio de tantas histórias, foi quando viu um mangá que prendeu sua atenção.
Colocando sua cesta de compras de lado, pegou o mangá já começando a folheá-lo.
Não podendo esconder sua imensa animação: "Hoo!! Isso! Finalmente lançou o novo volume. Esperei tanto que achei que ia morrer…" Por um momento seus olhos lacrimejaram.
Ele suspirou fundo abraçando o mangá, mais uma vez seus olhos desconfiados observaram a sua volta. Percebendo que não havia mais ninguém por perto onde estava, embora avistando ao longe uma moça e sua filha que pegavam algumas caixas de cereais.
“O que fazem há essas horas nesse lugar? Bem. O mesmo que eu talvez?” Pensou consigo não julgando muito a moça que vinha em sua direção, se dirigindo ao caixa. Ele encarou a garotinha que por sua vez lhe deu a língua e o dedo do meio, o que o deixou surpreso.
“Até as crianças não me respeitam…”
Embora não se deixou abalar, direcionou sua completa atenção ao mangá novamente. O novo volume de uma obra magnífica, não conseguia segurar seu sorriso. "Nossa, realmente só isso mesmo para me animar um pouco hoje!” Continuou a folhear as páginas.
Observava o mesmo de sempre: Um herói incomum, aventuras épicas, inimigos formidáveis, lutas e glória. Vendo tudo isso em cada página, ele já não parecia mais tão animado, mas sim chateado.
Estava com inveja, apenas vendo o sorriso do herói seus lábios tremiam. Seus olhos procuravam, tentavam encontrar a luz, mas apenas sentia inveja agora.
“Sabe, Buda. Acho que o senhor poderia tornar minha vida mais interessante, não? Ou pelo menos, mais suportável." Continuou folheando o mangá.
Na capa da obra estava um rapaz com roupa de fantasia e um escudo, e estava bem ao seu lado sua parceira de aventura, a qual segurava uma espada e possuía um lindo sorriso além de fofas orelhas de Tanuki.
Tinha demorado um tempo para sair àquela continuação, seu mangá favorito que contava a história intrigante de um herói invocado, qual usava um escudo, ou algo assim…
"Olha só a vida desse cara! Sim… ele teve um começo difícil e todos não gostaram dele de cara. Porém, ele se tornou forte, até tem essas garotas que cuidam dele agora! Com o tempo e o trabalho duro, ele prova que você pode tudo. Basta não desistir, né?”
“Basta não desistir…”
Parou por um momento, olhando ao seu redor, percebendo que estava sozinho, suspirando e direcionando seus olhos novamente às folhas. Ele parecia realmente querer algo parecido, nem precisava dizer, pois seus olhos imploravam por isso.
“Ele foi humilhado, mas conseguiu se erguer ainda mais forte. Mas na vida real, os fracos continuam fracos… e as mentiras tiram vidas antes de serem descobertas! E quando você cai, já é tarde demais quando decide levantar. Por isso… eu gostaria de ser um herói!”
“Mas do jeito que as coisas estão, me contentaria em ser apenas um figurante em um mundo de fantasia ou até mesmo o vilão dele."
Deu um sorriso sem jeito enquanto continuava folheando o mangá. E como poderia saber que a loja em que estava, nesse momento era ameaçada?
O ladrão por vez, usava uma máscara de borracha com o rosto de coelho e, estava armado com um revólver qualquer. Gritava com a moça do caixa, enquanto olhava para todos os lados com medo de ser pego:
— Calada sua piranha! — disse apontando a arma — Coloca o dinheiro no saco antes que eu meta uma bala na sua cabeça. Tá entendendo vadia?! Vamos. Vamos!
A moça tremia enquanto fazia o que ele mandou. Retirou todo o dinheiro do caixa, seu olhar triste era perceptível, ela ainda hesitou em colocar o dinheiro no saco, mas era isso ou sua vida.
Logo entregou o saco com o dinheiro, por vez o bandido pegando a grana correu em direção à saída. Seu plano havia dado certo, ele agora iria fugir e curtir uma noite incrível com aquele dinheiro sujo.
Pelo menos era isso que achava, caso ele não fosse um louco desastrado…
No momento de euforia indo rumo à saída e rindo como louco, deu um passo em falso, caindo em uma pilha de enlatados, o que assustou a moça e sua filha que iam em direção ao caixa.
— Droga… — disse ele caído ao chão.
Se levantou colocando a mão na cabeça, abrindo seus olhos percebeu a situação em que se encontrava. Dinheiro espalhado no chão em meio às latas, sua máscara caída mais a frente, foi então que olhou para o lado percebendo a câmera que filmava toda a cena.
— Porra. Porra!! Mas que porra! Não fode comigo!!
A mulher com a criança encaravam ele, embora, não notassem o perigo:
— Ei, moço… desculpe. Você apareceu do nada, e… O senhor está bem? — disse a moça se aproximando.
Ia em sua direção para ajudar, quando viu a arma que ele segurava e enfim notando o dinheiro espalhado no chão. Que foi suficiente para fazê-la entrar em choque e correr até sua filha, mas já era tarde demais.
Hoje seria o dia onde duas vidas seriam ceifadas naquele lugar. O marginal disse se levantando:
— Sua vaca!! Quer fuder comigo?! — Falou ele já apontando a arma para ela.
Seu dedo já ia ao encontro do gatilho…
Enquanto isso, nosso pobre herói um pouco próximo deles continuava a ler despreocupadamente seu mangá. A música “Lonely Day” repentinamente começou a tocar em sua playlist.
Ele estava imerso, parecia que nada poderia tirá-lo do transe em que se encontrava.
“Cara eu amo essa personagem! Ela é tão fofa com essas asinhas… Eu–” Ele parou abruptamente o que estava fazendo, suas pupilas dilataram por um momento, por um segundo ele jurou ter escutado o sino da entrada tocar mesmo estando de fones.
Um toque que parecia ecoar em sua mente, revirando seu estômago. Algo o mandou virar, era como se seu corpo o obrigasse a olhar para trás, e assim o fez.
Instintivamente se virou dando de cara com a situação. Onde uma mãe abraçando sua filha com força, implorava por sua vida com muitas lágrimas.
— Por favor… Não.
— Isso sua vaca! Chora mais. Você parece uma moça de fé? — disse, encarando o terço que ela usava no pescoço.
— Por favor…
— Quem faz favor é Deus! E ele não vai te escutar. Já que mortos não falam — puxou o gatilho — vadia.
— POWWW–... POWW!
O som dos dois disparos parecia ecoar pelo lugar, até mesmo pessoas que passavam na rua, correram assustadas, despertando de seus pensamentos hediondos e saindo de seus sonhos ingratos.
Um som ensurdecedor, mas rápido, seguido de passos ligeiros rumo à saída, alguém fugia deixando para trás o choro de uma mãe que segurava sua criança nos braços.
Por sorte, sua filha também chorava. Elas estavam bem, a moça agradecia a Deus, embora havia outra pessoa a qual também agradeceria eternamente.
— O que aconteceu…? — Se perguntou caído ao chão.
Deitado em uma poça de sangue, a qual se formava ao seu redor. Lá estava ele, o primeiro disparo do ladrão foi falho, embora o segundo acertasse as costas de nosso herói, que havia saltado bravamente para salvar duas vidas.
A mulher correu até ele, ele por vez se virou no chão encarando a luz forte das lâmpadas. Por um momento cobriu os olhos com suas mãos, quando a moça enfim o alcançou, segurou sua mão e recitando um versículo bíblico:
— “Quando você atravessar as águas, eu estarei com você; quando você atravessar os rios, eles não o encobrirão. Quando você andar através do fogo, não se queimará; as chamas não o deixarão em brasas.” Obrigada por salvar minha vida e a da minha filha! Eu espero que Deus te acolha em seus braços…
“Hm…? O que essa mulher tá falando?”
“Como assim? Até parece que eu vou morrer… né?”
“Cala a boca minha senhora. Eu não vou morrer! Eu não vou morrer. Eu não vou morrer!!”
Com suas últimas forças empurrou a mulher para o lado, se virando no chão, desejando mais que tudo chegar até o mangá caído mais a frente.
Ele queria naquele momento, permanecer vivo e assim terminar de ler aquela obra que tanto esperou. E com suas últimas forças se arrastou pelo chão, mas não podendo se arrastar muito, esticando sua mão em uma tentativa frustrada de pegar aquilo que queria.
— Está tão perto… tão perto…
“Deixe-me ler pelo menos esse volume! Eu… eu… Eu esperei tanto por isso. Só esse volume… por favor, morte… só esse… Só esse volume.”
Ainda conseguiu tocar com seus dedos as folhas do mangá, que agora foi manchado com sangue.
***
“Não. Não… Nãoooo!!”
Ainda estava com medo, mas o tempo não o esperava. Nada acontecia, assim, decidiu abrir seus olhos. Seus sentidos ainda estão confusos, mas já podia ver algo ganhando forma em sua frente, algo que o fez arregalar os olhos rapidamente.
Ele estremeceu, engoliu a seco, sentiu momentaneamente suas entranhas se revirando em seu íntimo, como serpentes que buscavam a saída em sua garganta..
Uma névoa vermelha cobria aquele lugar mórbido e imundo, um cheiro forte de ferro junto de algo podre se fez presente. Ele enfim percebe o sangue no chão, com o susto se levanta recuando para trás e tropeçando em algo, caindo em meio às poças de sangue.
— Merda...
Já se levantava, quando deu de cara com uma pilha de corpos. O choque trouxe seus sentidos de volta, estavam a toda velocidade agora.
E ele já podia escutar algo ao longe:
— MALDITO!!!
Olhando para trás, avistando pilhas e mais pilhas de corpos mutilados e desmembrados, juntamente de armas quebradas enfincadas ao chão, o sangue que fugia dos cadáveres dava passagem ao lago vermelho que crescia cada vez mais.
E então correria, gritos, um exército batalhava ferozmente. Iniciando uma chacina contra o inimigo, tudo diante de seus olhos atentos, embora ainda descrentes do que presenciava.
Foi quando bem adiante, avistou algo surgindo de em meio ao sangue e a pilha de corpos retorcidos.
“O-O que é aquilo…?”
Um homem gigante, portando uma armadura preta surgiu, causando pavor nos corações de todos.
Erguendo uma espada gigantesca e enferrujada, a desceu com um simples movimento pesado, que dividiu da cabeça aos pés um dos soldados com armadura prateada.
— Ah– AHHHHHHH!!!
Em seguida, dividiu cinco ao meio com um corte lateral que dissipou uma onda de vento, vento o qual passou por aquele que o observava atento ao longe.
Ele parecia cair em risadas enquanto cortava a carne de seus inimigos. “O quê está acontecendo? É um sonho? Eu estou sonhando, né?” Pensou ele enquanto o homem o avistou.
— Hmmm... Carne nova por aqui? — disse ele, enquanto abriu um sorriso tenebroso.
Seus olhos brilhavam como tochas de fogo, sua armadura negra gotejava sangue, sua espada gritava com as almas que ceifou. O monstro agora vinha em sua direção, cada passo pesado que dava, fazia com que o sangue respingasse nos olhos daqueles já caídos pelo caminho.
O pobre garoto apenas encarava a cena em choque, sem poder fazer nada, ele estava petrificado de medo. Embora seu corpo implorasse para ele correr, mas nem sequer podia piscar, sua respiração acelerava enquanto seu coração tentava romper seu peito.
O monstro continuou vindo em sua direção, matando qualquer um em sua frente, rindo enquanto se banhava do sangue inimigo e amigo.
— E-en-então, esse é o-o in-inferno…? — disse o garoto com um sussurro escapando de sua boca trêmula.
Continua...