Lorde Sem Olhos Brasileira

Autor(a): Sr. V


Volume 1

Capítulo I: “Efeito Descolorante”

A névoa sorrateira dava passagem a um sentimento estranho nestes que se aventuravam pelas ruas monótonas da noite. Essa noite era diferente, um frio cortante e uma quase canção ludibriante, a névoa deixava tudo preto e branco como em um filme antigo. Uma trama de mistério e comédia dirigida por alguma entidade doentia. 

O vento como sussurros conduzia as almas pelas ruas, perdidas, embriagadas tentando se achar, se abrigar do frio, se esconder do julgamento.

O velho letreiro balançava, de um lado para o outro, a velha madeira rangia o que fazia os olhos de todos se direcionarem para ele. “Mercado-Yang” era o que estava escrito, o velho mercado no fim do bairro, no fim de tudo.

Já era bem tarde da noite quando o silêncio foi quebrado, o toque comum do antigo sino na porta de entrada do velho mercadinho soou como um aviso. Um presságio, um som repentino que anunciava a entrada de mais uma alma.

Um jovem de cabelo bem bagunçado adentrou o lugar, seguido de suspiros e assobios. Ele assoprava suas mãos, luvas velhas que deixavam as pontas de seus dedos expostos, desprotegidos contra o frio da noite.

Cruzou seus braços abraçando de vez seu casaco amarrotado. O apertou contra si, o mesmo abraço caloroso que uma mãe dá em seu filho. Retirando um de seus fones, disse como em um sussurro:

— C-Com licença... — Adentra de vez o lugar.

Aquela figura chamou atenção da balconista, que o observou de relance. “Uma criança há essa hora?” Pensou enquanto fixava seus olhos no garoto. Seus dedos batiam ligeiramente no balcão, ela também começou a bater o pé o encarando, atenta aos seus próximos movimentos.

Ele por vez notou seu olhar, virou o rosto e ajeitou a gola da camisa. Parecia um pouco inquieto ao ver a senhora de cabelo crespo e nariz pontudo o encarando. Ele tentava não a encarar de volta, invés disso, olhava os arredores.

Não havia nada que chamasse muito sua atenção, era um mercadinho como muitos por aí, piso limpo, prateleiras bem organizadas e várias seções para encontrar aquilo que deseja.

Ele então puxou um bilhete do bolso. Desamassando o papel, perguntou-se: “O que era mesmo para comprar?” Em sua lista, a escrita estava borrada, o papel já amarelado com um cheiro de suor já comum. Lá estava escrito: 2- Caixas de leite, 2- Caixas de Cereal, 3- Pilhas palito, 1- Caixa de ovos, 1- Saco de Açúcar, 3- Maços de Marlboro, 2- Garrafas de Saquê. 

Ele então pegou uma das cestas próximas ao caixa e foi fazer enfim suas compras. Ele parecia perdido naquele enorme lugar, uma das lâmpadas em um corredor piscava, um cheiro de verduras e peixe estragados o fez tapar o nariz e trocar de seção.

Andou ele sem rumo, uma alma perdida, buscando algo ao seu redor. Procurando e procurando, sem saber o que de fato queria.

A moça no balcão, já não podia o avistá-lo, pois ele sumiu no fim daquela seção. Ela então direcionou seus olhos curiosos aos monitores, encarando o garoto pelas câmeras, parecia tentar decifrá-lo. 

O seu jeito de andar era desengonçado e acanhado, até mesmo para pegar as caixas de leite, parecia tomar bastante cuidado. Abriu uma das tampas e, cheirou o conteúdo, logo sorriu e guardou a caixa de leite na cesta.

— Hum. Que garoto esquisito! — disse a moça, já não se incomodando com ele, direcionando seus olhos agora para a TV de tubo onde passava uma novela. — Isso Carminha, acaba com ela.

Enquanto isso, o garoto continuou suas compras. Ele procurava e achava, pegava e olhava, decidia e colocava na cesta. Ele em alguns momentos suspirava profundamente, já em outros, parava e encarava o nada, pois tudo se tornava mórbido e sem cor nas noites de Quinta-feira. 

“Quem faz compras à meia noite? Que saco. Tive que vir nesse mercado do outro lado do meu bairro e, a maioria das coisas aqui tá estragando. Sério… Que noite de merda!” 

Até então tudo estava calmo, a mesma atmosfera mórbida, o mesmo jogo de cores sem vida, o mais completo silêncio. De repente, o som do sino na entrada, mais uma vez o sinal, o aviso de algo, a chegada de alguém, de outra alma se juntando ao lugar.

Ele estava de fones, não se importando com nada ao seu redor. Para ele tudo estava sem cor, sem graça, continuou pegando suas compras quando enfim avistou algo colorido.

Mais a frente, uma prateleira cheia de revistas e mangás pareciam trazer cor ao lugar. Ele de início deu um passo para trás, mas em seguida dando dois para frente. Seus olhos curiosos procuravam algo no meio de tantas histórias, foi quando viu um mangá que prendeu sua atenção. 

Colocando sua cesta de compras de lado, pegou o mangá já começando a folheá-lo.

Não podendo esconder sua imensa animação. "Hoo!! Isso. Finalmente lançou um novo volume do meu mangá favorito! Esperei tanto que achei que ia morrer…" Por um momento seus olhos lacrimejaram.

Ele suspirou fundo abraçando a revista, mais uma vez seus olhos desconfiados observaram a sua volta. Percebendo que não havia mais ninguém por perto onde estava, embora avistando ao longe uma moça e sua filha que pegavam algumas caixas de cereais.

“O que fazem há essas horas nesse lugar? Bem. O mesmo que eu talvez?” Pensou consigo não julgando muito a moça que vinha em sua direção, já se dirigindo  ao caixa.  Ele encarou a garotinha que por sua vez lhe deu a língua e o dedo do meio, o deixando surpreso.

“Até as crianças não me respeitam. Sério isso?”

Embora não se deixou abalar, direcionou sua completa atenção ao mangá novamente. Aquele era o novo volume daquela obra, ele não conseguia segurar seu sorriso. "Nossa, realmente só isso mesmo pra me animar um pouco hoje.” Continuou a folhear as páginas.

Via o mesmo de sempre: um herói, aventuras, inimigos, lutas e glória. Ele já não parecia mais animado, mas sim chateado.

Estava com inveja, apenas vendo o sorriso do herói seus lábios tremiam. Seus olhos procuravam, tentavam encontrar a luz, mas o que apenas sentia agora era inveja.

“Sabe Deus. Acho que o senhor poderia tornar minha vida mais interessante, não? Eu pelo menos, mais suportável." Continua folheando o mangá. 

Na capa da obra, estava um rapaz com roupa de fantasia e um escudo bem ao fundo, dando mais visibilidade a sua parceira de aventura, a qual segurava uma espada com um lindo sorriso. 

Tinha demorado um tempo para sair àquela continuação, seu mangá favorito que contava a história intrigante de um herói invocado, o qual usava um escudo ou algo assim… 

"Olha só a vida desse cara. Sim… ele teve um começo difícil e todos não gostaram dele de cara. Porém, ele se tornou forte, até tem essas garotas que cuidam dele agora. Com o tempo e o trabalho duro, ele prova que você pode tudo. Basta não desistir, né?”

Parou por um momento, olhando ao seu redor, percebendo que estava sozinho, suspirou direcionando seus olhos novamente a folha. Ele parecia realmente querer algo parecido, nem precisava dizer, pois seus olhos imploravam por isso. 

“Ele foi humilhado, mas conseguiu se erguer ainda mais forte. Mas na vida real, os fracos continuam fracos… e as mentiras tiram vidas antes de serem descobertas. E quando você cai, já é tarde demais quando decide levantar. Por isso… eu gostaria de ser um herói! Mas do jeito que as coisas estão, me contentaria em ser apenas um figurante em um mundo de fantasia ou até mesmo o vilão." Ele deu um sorriso sem jeito enquanto continuava folheando o mangá, logo retirando um pouco seus fones.

E continuou ele, lendo despreocupado. Como poderia saber que a loja em que estava nesse momento era assaltada? 

O ladrão por vez usava uma máscara de borracha com o rosto de coelho e, estava armado com um revólver qualquer. Ele gritava com a moça do caixa:

— Calada sua piranha — disse apontando a arma à moça — coloca o dinheiro no saco antes que eu meta uma bala na sua cabeça. Tá entendendo vadia?! Vamos. Vamos!

A moça tremia enquanto fazia o que ele mandou. Retirou todo o dinheiro do caixa, o olhar triste da senhora era perceptível, ela ainda hesitou em colocar o dinheiro no saco, mas era isso ou sua vida. 

Logo entregou o saco com o dinheiro, por vez o bandido pegando a grana correu em direção à saída. Seu plano havia dado certo, ele agora iria fugir e curtir uma noite incrível com aquele dinheiro sujo. Pelo menos era isso que achava, caso ele não fosse um louco desastrado…

Ele no momento de euforia indo rumo à saída e rindo como louco, deu um passo em falso, caiu ele assustando a moça e sua filha que iam em direção ao caixa.

— Droga… — disse ele já caído ao chão.

Ele já se levantava colocando a mão na cabeça, abrindo seus olhos e percebendo a situação em que se encontrava. Com dinheiro espalhado por toda parte no chão, sua máscara caída mais a frente, ele então olhou para o lado e lá estava a câmera que filmava toda a cena.

— Porra. Porra!! Mas que porra. Não fode comigo.

Ele parecia bem irritado, a mulher com a criança encarava ele. Elas pareciam preocupadas e assustadas:

— Ei, moço… desculpe. Você apareceu do nada e… o senhor está bem? — disse a moça se aproximando.

Ela ia em sua direção para ajudar, quando viu a arma que ele segurava e enfim notando o dinheiro espalhado no chão, o que foi suficiente para fazê-la entrar em choque e correr até sua filha, mas já era tarde demais. 

Hoje seria o dia onde duas vidas seriam ceifadas naquele lugar. O marginal disse se levantando:

— Sua vaca!! Quer fuder comigo?! — Falou ele já apontando a arma para ela. 

Seu dedo já ia ao encontro do gatilho. Enquanto isso, nosso pobre herói um pouco próximo deles continuava a ler despreocupadamente seu mangá, a música “Lonely Day” começou a tocar. Ele estava imerso, parecia que nada poderia tirá-lo do transe em que se encontrava.

“Cara eu amo essa personagem! Ela é tão fofa com essas asinhas. Eu-” Ele parou abruptamente o que estava fazendo, suas pupilas dilataram por um momento, por um segundo ele jurou ter escutado o sino da entrada tocar mesmo estando de fones. 

Um toque que parecia ecoar em sua mente, algo o mandou virar, era como se seu corpo o obrigasse a olhar para trás e assim o fez.

Instintivamente se virou dando de cara com a situação. Onde uma mãe abraçando sua filha com força, implorava por sua vida com muitas lágrimas.

— Por favor… Não. — Lágrimas saiam de seus olhos.

— Isso sua vaca! Chora mais. Você parece uma moça de fé? — disse, encarando o terço que ela possuía no pescoço.

— Por favor…

— Quem faz favor é Deus! E ele não vai te escutar. Já que mortos não falam — puxou o gatilho — vadia.

— POWWW-! POWW!

O som dos dois disparos parecia ecoar pelo lugar, fez até mesmo pessoas que passavam na rua correr, se despertando de seus pensamentos, saindo de seus sonhos. Um som ensurdecedor, mas rápido, seguido de passos ligeiros rumo à saída, alguém fugia deixando para trás o choro de uma mãe que segurava sua criança nos braços. 

Por sorte, sua filha também chorava. Elas estavam bem, agradeciam a Deus, embora, havia outra pessoa a qual também agradeceriam eternamente...

— O que aconteceu…? — Se perguntou caído ao chão.

Deitado em uma poça de sangue que se formava ao seu redor, lá estava ele. O primeiro disparo do ladrão foi falho embora o segundo acertasse as costas de nosso herói, que saltou bravamente para salvar duas vidas.

A mulher correu até ele, ele por vez se virou no chão encarando a luz forte das lâmpadas. Por um momento cobria os olhos com suas mãos. A mulher enfim chegando até ele, segurou sua mão, agora recitando um versículo da bíblia:

— “Quando você atravessar as águas, eu estarei com você; quando você atravessar os rios, eles não o encobrirão. Quando você andar através do fogo, não se queimará; as chamas não o deixarão em brasas.” Obrigada por salvar minha vida e a de minha filha! Eu espero que Deus te acolha em seus braços…

“Hm? O que essa mulher tá falando? Como assim? Até parece que eu vou morrer. Cala a boca minha senhora… eu não vou morrer porra. Eu não vou morrer!! Eu não vou.” Ele com suas últimas forças empurrou a mulher para o lado, se virando no chão, desejando chegar até o mangá caído mais a frente. 

Ele queria mais que tudo naquele momento, permanecer vivo e assim terminar de ler aquela obra magnífica. E com suas últimas forças se arrastou pelo chão, mas não podendo se arrastar muito, esticando sua mão em uma tentativa frustrada de pegar aquilo que queria.

— Está tão perto… tão perto…

“Deixe-me ler pelo menos esse volume! Eu… eu… eu esperei tanto por isso. Só esse volume… por favor, morte… só esse… Só esse volume.” — Ainda conseguiu tocar com seus dedos as folhas do mangá, o qual agora foi manchado com sangue.

***

“Não. Não. Não!!

“Não…”

Ele ainda estava com medo, mas o tempo não o esperava. Nada acontecia, assim, enfim decidiu abrir os olhos, seus sentidos ainda estão confusos. Mas já podia ver algo ganhando vida em sua frente, algo que o fez arregalar os olhos rapidamente. 

Ele estremeceu, engoliu a seco, sentiu momentaneamente suas entranhas se revirando em seu íntimo.

Uma névoa vermelha cobria aquele lugar mórbido, um cheiro forte de ferro junto de algo podre tomou seu nariz. Ele enfim percebe o sangue no chão, com o susto se levanta recuando para trás e tropeçando em algo, caindo em meio ao sangue. 

— Droga...

Já ia se levantava, quando se deu de cara com a pilha de corpos na sua frente, juntamente com o choque seus sentidos voltaram a toda velocidade. Ele já podia escutar:

— Maldito! 

Olhando para trás, avistando pilhas e mais pilhas de corpos mutilados e desmembrados, juntamente de armas quebradas enfincadas ao chão. O sangue que fugia dos cadáveres dava passagem ao lago vermelho que crescia cada vez mais.

E então correria, gritos, um exército batalhava ferozmente. Iniciando uma chacina contra o inimigo, tudo diante de seus olhos atentos, embora ainda descrentes no que presenciava.

Foi quando bem adiante, avistou algo surgindo de em meio ao sangue e a pilha de corpos retorcidos. Um homem gigante portando uma armadura preta surgia. E com um simples movimento, dividiu ao meio cinco soldados com armaduras prateadas.

Ele parecia cair em risadas enquanto cortava a carne de seus inimigos já mortos. “O quê está acontecendo? É um sonho? Eu estou sonhando, né?” Pensou ele enquanto o homem o avistou de longe.

— Hm... Carne nova? — disse ele, enquanto abriu um sorriso tenebroso.

Seus olhos brilhavam como tochas de fogo, sua armadura preta gotejava sangue, sua espada gritava com as almas que ceifou. O monstro agora vinha em sua direção, cada passo pesado que dava, fazia com que o sangue respingasse nos olhos daqueles já caídos.

O pobre garoto apenas encarava a cena em choque, sem poder fazer nada, ele estava petrificado de medo. Embora seu corpo implorasse para ele correr, ele agora nem sequer podia piscar, sua respiração acelerava e seus batimentos também. 

O monstro continuou indo em sua direção, matando qualquer um em sua frente, rindo enquanto se banhava do sangue inimigo e amigo.

— E-en-então esse é o in-inferno…? — disse ele, com um sussurro escapando de sua boca trêmula.

 

Continua...



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