Volume 1 – Arco 1
Capítulo 23: Interlúdio 1 – A história de Indiah (2)
Após o terrível pesadelo em que ela revivia o fatídico dia de sua tribo Indiah acordou com um grito. Com suas mãos tremulas e a muito ofegante, ela respirava com dificuldade, mas não havia fumaça. Seu corpo doía, mas não tinha troncos pesados e nem sinal de queimaduras. Nem mesmo gritos de dor e desespero. Apenas o frio e um desesperador silêncio. Então quando seu ser é quase que tomado completamente por essa agonia, quando se sente finalmente num completo vazio, um resquício de razão lhe traz de volta ao mundo real.
Indiah acorda todos os dias assim. Já faz um ano.
Finalmente desperta ela olha para fora de sua caverna e vê os primeiros raios de sol despontar. Deveria estar com fome, mas como todas as manhãs seu estomago está embrulhado. Provavelmente devolveria instantaneamente qualquer comida que ingerisse.
Com um enorme desanimo ela se arrasta para fora do abrigo. Olha para o céu buscando uma forte razão para viver, um motivo qualquer para sair de sua toca. Então olha para baixo, e vê a enorme coluna de pedras que terá que descer até chegar à margem do lago.
Não é difícil descer o desfiladeiro, não depois de se acostumar. Seus pés descalços e calejados já conhecem cada pedra, cada degrau, cada pequena armadilha do seu caminho para o solo. As vezes ela pensa que se jogar seria um atalho mais rápido para o chão, para além dele. Outras vezes pensa em acidentes. Acidentes acontecem. Uma pedra poderia se soltar e ela poderia acidentalmente cair. Mas não somente cair. Cair e morrer.
Em meio a tantos pensamentos nebulosos, seus pés finalmente alcançam a grama macia. Nenhum acidente aconteceu hoje. Faz tempo desde a última vez em que caíra acidentalmente. Levou um bom tempo para sarar o braço. Foi muito difícil caçar com uma mão só. Mas agora ela está bem. Pelo menos fisicamente.
Como de costume Indiah dá seus primeiros passos nas pontas dos pés, a mata gelada pelo orvalho da manhã lhe dá cócegas e pequenos arrepios. Assim chega ao lago para lavar seu rosto. A água cristalina reflete nitidamente a sua imagem. Ela permanece ali por minutos se encarando, logo a expressão de dor e indiferença é substituída por uma rotineira sessão de caretas. Ela se desafia, dia após dia, a fazer uma expressão mais assustadora ou cômica que a do dia anterior. Nos dias inspirados isso culmina numa pequena sessão de risos. Sinal de que ela finalmente está pronta para encarar o novo dia.
Olhando para o alto ela contempla o céu azul de poucas nuvens e então respira bem fundo.
— Bom dia mundo! — exclama com vontade.
Ninguém responde.
A jovem se dirige para um arbusto próximo, dentro dele tira uma pequena e improvisada sacola de folhas trançadas. Hora de coletar algumas frutas para o desjejum.
Durante a breve refeição matinal, sua mente vagueia para o passado. Era quando observava atentamente, sua mãe separar os frutos mais maduros, grandes e suculentos do demais. Observava com admiração, pois esperava um dia também ter a mesma habilidade e quem sabe um dia ensinar a sua futura filha.
Enquanto navegava no inconstante oceano de recordações o seu coração se enchia de nostalgia, um breve sorriso cobria sua face e uma leve esperança lhe fazia seguir em frente. Por um breve instante ela não mais estava sozinha, por aquele momento suas lembranças eram muito mais fortes que o presente. Isso suplantava a dor, ao menos temporariamente. Não era conveniente pensar na dor. Não agora, até mesmo porque ela viria de qualquer jeito à noite.
— É preciso ter fé. Não vou desistir. — Se consolava num tom de voz suave.
Após algumas horas caminhando pela mata, Indiah via se aproximar a hora de caçar, então a jovem procurou subir numa árvore alta para poder ter uma visão melhor do ambiente.
Do alto ela procurou aguçar a visão, seus olhos percorriam a mata abaixo com a minúcia de um autêntico predador. Sua feição mudara completamente. Ela estava em completo silêncio e seus olhos penetrantes não deixavam nada escapar.
Alguns filhotes de pássaros choravam por comida no topo de uma árvore próxima. Alto demais, não valeria o esforço. Uma lebre passeava displicentemente no meio da mata, bonitinho demais. O gato do mato que espreitava a lebre também não lhe despertava interesse, sua carne não era das mais macias.
Escolher o que comer sempre era uma tarefa difícil.
Pacientemente ela espreitava e após uma longa espera por fim ela achou o que valeria a pena. Empunhou seu pequeno arco que carregava preso ao ombro e da cintura tirou uma das três flechas que carregava consigo juntas ao laço que prendia sua túnica.
Ela esticou o arco ajustando a flecha com a ponta dos dedos, então ela fechou um dos olhos para ajustar a mira enquanto cerrava os lábios. A presa finalmente estava no alcance e com a mão fazia pequenas correções seguindo seu alvo com arco.
O cervo comia a grama sem suspeitar que estivesse na mira de seu predador. Comida por uma semana inteira ou mais, comemorava Indiah silenciosamente. E assim a flecha cruzou o ar, em poucos segundos o animal havia caído morto sem chance alguma de reação. Nem mesmo um grito de agonia. Caiu em silêncio.
Em seguida, a jovem se jogava no meio da mata, parecia suicídio, mas toda sua coreografia já estava premeditada. Com os braços se apoiava nos troncos mais abaixo, depois impulsionava o corpo para agarrar um cipó, em questão de segundos seus pés atingiam o solo.
Quando a caçadora finalmente encarava o seu troféu, um som percorreu a mata ao seu redor. Seus ouvidos captaram folhas discretamente sendo amassadas.
Ela não estava mais sozinha.
A poucos passos do animal abatido Indiah buscava na mata o seu novo alvo. Sua mão buscava a segunda flecha. Ela quase não se mexia, suava frio. Sentia-se desprotegida. Não era como na copa das árvores.
Por um minuto ou mais, fez-se silêncio absoluto. Nem mesmo o vento ousava atrapalhar aquele momento. A mata era densa e escura, sua única chance era encontrar primeiro o par de olhos que a espreitava.
Por mais que olhava, nada encontrava e isso a deixa mais tensa. Por mais irônico que seja o fato dela desejar sua própria morte pelas manhãs, agora ela temia pela sua vida, ou melhor, pelo fim dela.
Arco esticado, flecha pronta. A esta distância, teria tempo apenas para um único disparo. Tinhas duas flechas, mas não teria tempo suficiente para rearmar o arco e efetuar para um segundo ataque. Uma leve brisa bate contra sua direção, quase instantaneamente os sons dos passos se fizeram presente. Ela não teve dúvidas, virou cento de oitenta graus e disparou.
O enorme corpo que havia se lançado no ar, caía com todo seu peso contra a jovem franzina que era arremetida com toda violência ao solo. Os trezentos quilos do tigre era mais que o suficiente para subjugar a menina. Mas a fera não estava morta, ela rugia de ódio e dor. A flecha fincada no meio da boca a impedia de dar a mordida fatal na jovem que se debatia desesperadamente embaixo do animal.
Uma forte patada lhe arranhou o peito, rasgou sua túnica e o sangue jorrou ao ar. Ela gritou de dor. Com sua mão esquerda ela tentava a todo custo, segurar a enorme fera pelo pescoço enquanto sua mão direita tateava o solo.
Quando a fera finalmente conseguiu quebrar e flecha e abrir a sua boca em sua envergadura máxima, o gigantesco tigre convulsionou e por alguns segundos, urrou de dor e enquanto suas presas se debatiam no ar. Foi Indiah que havia alcançado a sua última flecha a cravou com toda força no olho do animal.
O monstro sucumbiu sobre o seu corpo. O seu sangue se misturava ao dela. Indiah tremia e chorava de pavor. Ela não conseguia se livrar daquele peso imenso.
***
Levou um certo tempo até se recuperar e apesar de todos os ferimentos, ela ainda se deu ao trabalho de esconder suas duas caças cobrindo-as com folhas e rezando que o vento não entregasse aos carniceiros o seu precioso mantimento.
A jovem improvisou um curativo com algumas folhas de uma planta que ela não se recordara do nome, mas jurava já ter visto sua mãe usá-la como cicatrizante. A pior parte, depois daquele pesadelo todo é claro, foi ter que limpar seu ferimento. Banhar seu corpo as margens do lago, a floresta inteira só não escutou seu grito de agonia porque ela resolvera morder o cabo do arco.
Naquela tarde, Indiah levou pouco mais de duas horas na escalada de volta para sua toca. Era uma pequena caverna no meio de um enorme desfiladeiro, normalmente ela levava algo em torno de vinte minutos.
No começo da noite finalmente ela terminara de se arrastar para dentro de seu abrigo. Sentia frio e fraqueza. Pensou que finalmente fosse morrer.
A última da tribo finalmente iria sucumbir. Mas enquanto delirava de febre e tremia de frio, sua mente voltava no tempo. Num tempo de alegria e felicidade.
Indiah voltava aos catorze anos, quando a jovem já se preparava para casar. Tradicionalmente a sua família iria escolher um nobre e valoroso pretendente para ela. E assim ela se casaria, o amaria e seria feliz, tal como sua mãe era. Assim como todas em sua vila, da forma que a tradição ensinava.
A noite Indiah tentava dormir, mas não podia, estava ansiosa e entre as frestas da palha do teto da cabana em que vivia, ela contemplava o céu estrelado e sonhava pelo seu futuro marido. Pelo homem a quem dedicaria um grande amor. Seu pai ainda não havia escolhido o pretendente ideal, não sabia quem era, mas sentia que logo o conheceria.
Observava as estrelas e conversava com elas enquanto sua mente viajava num sonho de pura fantasia. E fora naquela noite, durante suas longas preces que uma estrela cadente cintilou rapidamente e pode ser vista por entre as frestas do teto da cabana.
Indiah arregalou os olhos. “Meu amor? Finalmente o encontrarei? ” Pensou exaltada. Mas para sua surpresa, as estrelas não paravam de cair.
Depois da chuva de flechas, as enormes tropas inimigas vieram, elas portavam grandes espadas e ceifavam a vida de todos. Nem mesmo as mulheres e as crianças eram poupadas.
Então a jovem gritou. E tudo ficou escuro.