Volume 1 – Arco 1
Capítulo 13: Amanhecer
Mais um dia passou no lago, e a tranquilidade daquele ambiente fazia com que aqueles tempos de violência se distanciassem tanto quanto nos esquecemos de um pesadelo da noite anterior ao longo de um dia comum. Voltamos a rir de coisas banais, a nos entediar com o cotidiano, a encarar as coisas do dia a dia com menor intensidade. Contudo aquelas impressões terríveis ainda permaneciam lá, soterradas no inconsciente, esperando apenas o momento certo para que fossem revividas.
E a noite seguinte foi a pior de todas. Lana teve febre alta e chegou a delirar por algumas horas. Apesar da elevada temperatura, o suor escorria gelado pela sua testa, e ela murmuravas coisas que faziam pouco ou nenhum sentido para Aline, que com um pano úmido tentava diminuir a temperatura da amiga. A ruiva soltava frases desconexas, algumas vezes sobre o seu pai, dizia também de um lugar chamado castelo das rosas e sobre fugir da rainha da morte.
O monge Daniel entrou na pequena tenda um pouco atrapalhado carregando um balde com água que respingava por toda parte.
Aflita Aline encarou o monge com um olhar arregalado, era uma súplica por ajuda.
— Continue passando o pano molhando pelo corpo da jovem.
A menina continuo a fitar o homem como se esperasse por algo mais.
— O que foi? Eu não tenho ervas milagrosas — disse o homem empurrando os óculos contra o nariz e retirando-se da tenda.
Aline jogou o pano com força para dentro do balde e saiu determinada logo atrás do religioso que havia sentado logo à frente. Ao ver a noite ela surpreendeu-se com a escuridão, nuvens encobriam a lua e quase não havia estrelas no céu. Não havia barulho algum nas proximidades, era como se tivessem desligado o mundo ao seu redor. Superando essa estranheza inicial a jovem contornou o homem e agachou na sua frente e decretou:
— Ela não pode morrer! — disse jogando com força os punhos para baixo. A voz saiu tremida e embargada, uma mistura de raiva e pavor.
— Ela não morrerá.
— Como pode ter tanta certeza? Tudo que você faz é ficar aí sentado?
Levou quase um minuto, o homem respirou profundamente e então abriu os olhos. Encarou com severidade a menina e disse:
— Eu sei que você espera que façamos mais, mas acredite em mim quando eu digo que você está salvando-a.
Aline sentiu como se estivesse esmurrando uma parede, por mais força que fizesse aquele monge jamais perderia a compostura. Não havia outro caminho e então a perplexidade passou, ela sentiu-se até mesmo exausta e a sua expressão de ira acabou por abrandar.
Derrotada ela arrastou-se de volta para a tenda. Olhou para o balde, lentamente abaixou, pegou o pano e deu uma leve torcida. Encarou a amiga e acariciou a sua fronte¹.
***
No dia seguinte, logo pela manhã, Lana abriu os olhos vagarosamente. Pela primeira vez tomava consciência, e percebeu que estava deitada numa pequena tenda. A dor no braço diminuíra consideravelmente, mas no geral o corpo todo ainda estava dolorido e apesar disso sentia-se relaxada e bem. Esticou os dedos dos pés e mãos e espreguiçou-se com muito gosto. Permanecia deitada, ainda analisando a situação. Sentia que não corria perigo, mas com os olhos buscava entender o que ocorria ao seu redor. Era de manhã, sol fraco e clima agradável.
De súbito ouviu um barulho de aproximação. Preferiu fechar os olhos e permanecer bem quieta. Era Aline que se abaixava para entrar pela tenda. Trazia uma vasilha com água e um pano umedecido, sentou-se ao lado de Lana e começou a passar gentilmente no rosto de sua amiga.
— Espero que melhore logo — disse a menina em tom melancólico.
Lana então deu um gemido. Surpresa Aline deu um pulo para trás. A ruiva murmurou ainda de olhos fechados:
— Mãe!
Logo o semblante da loirinha mudou, aproximou da amiga e continuou a passar o pano em seu rosto. Lana insistiu:
— Mãe!
Completamente sem jeito Aline relutou por alguns segundos e então resolveu arriscar:
— Sim filhinha? — disse fazendo uma cara que mesclava dúvida e estranheza.
— Que bom que a senhora está aqui. Eu tive um sonho estranho. — Continuou Lana em seu suposto delírio.
— Não se preocupe, já passou.
— Estava fugindo pela mata e havia uma menininha comigo.
— Menininha?
— Sim, ela tinha uma voz engraçada, parecida com a que a senhora está fazendo agora — falou a ruiva enquanto o riso tomava forma em sua face.
Aline a encarou indignada, pegou a pequena vasilha e despejou a água no rosto da amiga. Em seguida levantou-se e saiu resmungando:
— Todo mundo aqui resolveu ser engraçadinho. Você e esse monge tonto deveriam dar as mãos e se afogar no lago.
Lana tossia e sorria surpresa com a reação da amiga.
***
Minutos depois Lana resolveu sair da tenda. Sentir o sol e o ar da manhã fez com que se sentisse revigorada. Olhou em volta e não encontrou ninguém. Forçou a vista e do outro lado do lago avistou um espantalho. Havia alguns pássaros pousados nele. A garota resolveu ir até a lá pois era um aclive e ela pensou que poderia avistar a amiga a partir daquele local.
Contornou o lago e continuou andando distraída, olhando para os lados procurando pela presença de alguém e foi quando deu conta de que estava bem próximo do espantalho. Com sua aproximação as aves empoleiradas no boneco levantaram voo. Nesse momento o espantalho virou o rosto e disse:
— Bom dia! Vejo que finalmente resolveu despertar.
Lana esfregou os olhos e aproximou-se mais. Era o monge Daniel que estava a sua frente alimentando os pássaros. Ele baixou as mãos e despejou o restante dos grãos de volta ao bolso da túnica. Como sempre, ajeitou os óculos no rosto e então apertou as próprias mãos e continuou a falar:
— Você deve estar com fome. Alimente-se primeiro, depois conversaremos.
Lana balançou levemente a cabeça e fez uma cara de enjoo e respondeu:
— Não. Eu estou bem, talvez eu coma mais tarde.
— Entendo — falou o monge com um sorriso no rosto. — De toda forma não mais conversaremos, não agora. — E desceu em direção ao lago.
Lana o seguiu em silêncio. Estava aturdida, não conseguia entender o que havia ocorrido a pouco. Logo ela avistou Aline que estava sentada atrás de uma pedra, encolhida abraçando as pernas e com cabeça enterrada nos joelhos. Por um instante pensou em fazer alguma brincadeira, mas logo lembrou que a anterior não terminou bem.
A ruiva sentou-se ao lado dela, e apenas pousou a mão em seu ombro puxando-a para próximo de si. Esperou alguns segundos e disse:
— Me desculpe. Acho que não deveria ter feito aquela brincadeira. — Fez uma pequena pausa e continuou. — Sabe, eu não faço ideia de quanto tempo eu dormi, mas não me parece que foram mais do que algumas horas. Enfim, é muito bom ver você novamente. — E terminou o discurso com um leve sorriso amarelo no rosto.
Após alguns minutos Aline finalmente desenterrou o rosto dos joelhos e olhou com severidade para a amiga.
— Você poderia ter morrido!
— Mas eu não morri.
— Eu fiquei muito preocupada com você. Por acaso sabe quanto tempo você ficou dormindo?
— Não faço ideia.
Aline começou a contar nos dedos, mas logo percebeu que também havia perdido a conta e irritou-se.
— Droga! Nem eu.
Assim as duas se entreolharam e sorriram. Ali faziam as pazes.
— Me desculpe pela brincadeira. Foi sem pensar — insistiu Lana.
— Sei, e quanto ao tombo?
— Qual tombo?
— Aquele que você me deu, como pode esquecer que você me fez sair voando da paliçada.
— Ah! Aquilo foi diferente.
— Diferente? Até hoje você não pediu desculpas por aquilo.
— Desculpe – disse baixinho Lana.
— Assim está bem melhor! — disse Aline já sorrindo e abraçando a amiga. — Deu um trabalhão cuidar de você, mas estou feliz que deu tudo certo!
E assim passaram a tarde toda conversando e se divertindo, sempre sob os olhos cuidadosos do monge.
Nota:
1 – Fronte: testa.